A Eutanásia

A eutanásia gera uma discussão ampla a respeito de sua definição e as condições de sua aplicação, entre outras questões que a religião e a ciência devem responder, cada uma sob a sua ótica e de acordo com o seu ponto de vista. Apesar da palavra “cérebro” não ocorrer nos textos religiosos, os sentimentos e a devoção humanas estão geralmente ligados à noção de “coração”, como se este órgão vital fosse o centro das emoções. Assim, ao longo do tempo, causou-se um pouco de confusão entre algumas pessoas, que consideram que há um vazio entre as duas definições: a científica e a religiosa. Sua Eminência, o Jurisconsulto Sayyed Mohammad Hussein Fadlallah, esclarece essa questão, emitindo sua opinião abalizada, esclarecedora e detalhada sobre o tema.

A mente e o cérebro no Alcorão Sagrado

“O Alcorão Sagrado não analisa de forma detalhada as funções orgânicas ou psicológicas do cérebro. Ele não explica como o cérebro armazena as informações que o ser humano adquire na sua vida. A mente, em nosso ponto de vista, é similar ao espírito, sendo uma espécie energia que o ser humano armazena para organizar as informações que adquire, estudá-las, e onde origina-se o sentimento e o pensamento. Assim, a mente não é um elemento orgânico, mas uma energia oculta, não visível.” Em outras palavras: “uma energia espiritual, que se desenvolve por meio do conhecimento e experiências, no sentido da reflexão.”(1)

Enquanto alguns, baseados no conhecimento moderno, associam todas as atividades, consciência, pensamento, e convicções humanas ao cérebro, o Alcorão considera todas as ações humanas como decorrência da atividade do coração, como é citado no sagrado versículo: “Todavia, a cegueira não é a dos olhos, mas a dos corações que estão em seus peitos!” (22:46). Sua Eminência, em sua interpretação a respeito da ciência e do Alcorão, opina que as palavras de Deus, exaltado seja, são figurativas, porque o peito mostra a frente humana, levando-se em consideração que ele abrange os órgãos que conservam a vida, também ligados ao cérebro, e porque ele orienta todos os órgãos existentes no corpo. A questão não reside na limitação à região do coração, mas no aspecto figurativo das afirmações corânicas. Da mesma forma que o rosto representa o ser humano, significando que ele fala da própria pessoa, como esclarece o Altíssimo: “Tudo perecerá, exceto o Seu Rosto!” (28:88).(2) Uma vez que Deus não possui rosto, Ele está falando de Si próprio.

A Morte Cerebral

A respeito da morte cerebral, que é considerada pelos médicos como a morte real, Sua Eminência diz: “Emitimos o parecer jurídico de que se a morte cerebral é verificada sem nenhuma dúvida, sistemas auxiliares empregados para fazer funcionar o coração não devem ser instalados; também não é proibida a retirada dele, se for verificada a morte cerebral definitiva (da pessoa).”(3)

Porém, Sua Eminência sabe que o significado jurídico da morte é problemático, uma vez que não há definição precisa da morte. Quando o homem morre? Quando o coração pára de bater ou quando o cérebro morre? Será que as batidas do coração após a morte cerebral representam que a pessoa está viva, ou representam vida vegetativa? Isso permanece uma questão aberta ao debate.”(4)

“A opinião geral considera a morte como a parada do coração. Muitos médicos também, quando desejam saber se uma pessoa está viva ou não, medem a pulsação. Se não houver pulsação, então a pessoa está morta. Esta é a experiência humana da morte, que cada um conhece. Quanto à morte cerebral, só é conhecida pelos especialistas.”(5).

“Por isso, perguntamos: Será a morte definitiva a morte do cérebro, uma vez que todos os sistemas do corpo pararam e, portanto, o corpo não está mais vivo? Nós também perguntamos sobre a pulsação do coração, de onde vem? Será que do sistema respiratório ou da energia vital ainda presente no coração? Alguns juristas dizem que se a pulsação é o resultado da respiração artificial, isso significa que a pessoa está morta. Mas, se houver qualquer resquício vital no corpo, isso significa que ela está viva. Esse ponto continua controverso.”(6)

“Há outro ponto lançado à discussão jurídica, distante da compreensão do que é morte e qual é a extensão da vida. Alguns podem dizer que pode ser que a pessoa morra e algumas células continuem vivas. Por exemplo, quando extraímos o olho e lhe fornecemos as substâncias necessárias, ele continua vivo por um longo tempo. Outro exemplo é o da cobra que morre, mas cujo rabo permanece vivo e se movendo. Esta é uma vida celular ou “vegetativa”. É uma vida artificial e não uma vida normal. Se deixarmos essa discussão de lado, continuamos a perguntar: Será a morte a morte cerebral ou a morte de ambos, cérebro e coração? Aqui surge outra questão: ‘O que me compele a conservar essa pessoa ou instalar-lhe um sistema auxiliar? O que me impede de remover o sistema?’ Pode ser dito que eu devo instalar o sistema auxiliar porque é meu dever preservar a vida da pessoa. Quando vejo que a vida da pessoa está correndo perigo, tenho de salvar-lhe.”(7)’

“Por que é proibido remover o sistema auxiliar? Porque é considerado assassinato. Há alguns juristas que dizem que há evidências na Lei Islâmica (Shari’a) que indicam a obrigatoriedade da preservação da vida. O que significa aqui é a vida do corpo, a vida do ser humano, mesmo que esteja paralisado. Essa forma de vida, porém, que depende do sistema auxiliar, de tal forma que se o removermos, a pessoa morre, não é a vida que iríamos salvar. Portanto, remover o sistema auxiliar não é assassinato; assassinato é a matança de uma vida estável, mesmo de metade do corpo, caso a outra esteja paralisada.

Por isso, não opinamos que o sistema auxiliar deva ser instalado e não opinamos que seja proibido removê-lo. Certamente, há muitas reservas entre alguns juristas. Mas, quando estudamos a questão do ponto de vista da nossa compreensão e das informações médicas à nossa disposição, achamos que não é um dever instalar o sistema auxiliar, se estamos 100% certos que a pessoa em questão está em estado de morte cerebral e a vida que ela está levando é vegetativa. Nesse caso, a instalação do sistema auxiliar não é obrigatória e removê-lo não é proibido, uma vez que a instalação não seria um ato de preservar a vida e a remoção não seria um ato de assassinato.”(8)

“Há diferença entre essa morte e a eutanásia. Há uma pessoa que está sofrendo de dores terríveis e que pode morrer daqui a 6 meses, ou mesmo um mês. Nesse caso, não é permitido matá-la, mesmo que ela ou a sua família peçam isso. Não temos nenhuma autoridade sobre a vida da pessoa e a própria pessoa não está autorizada a acabar com a sua vida, porque a medicina pode, uma hora depois, ou no dia seguinte, descobrir algo que possa eliminar a dor ou salvar a sua vida.

Por isso, a eutanásia é sem sentido nesse caso. Pode ser considerada um ato misericordioso naquele instante em particular e cruel se for julgada tendo-se como escopo toda a vida da pessoa. Pode ser até o oposto da misericórdia.”(9)

“Quanto ao encerramento da vida e à paralisação do tratamento de doenças fatais, isso significa deixar a pessoa doente morrer sem salvá-la, o que contradiz a teoria de respeito à vida humana. Temos o dever de permitir que a vida se defenda ou termine por si só. Não temos o direito de terminar com a vida, quer sejamos o médico ou o paciente… O ponto que eu gostaria de ressaltar a respeito da eutanásia, do ponto de vista da ética médica, é que: Na ética islâmica, e provavelmente também na cristã, a religião, no sentido da vontade de Deus exercida por meio dos entendimentos que auferimos da cultura religiosa, não apenas protege o ser humano dos outros, mas também de si mesmo. Como não é permissível matar a outros, não é permissível matar-se. O princípio é o mesmo: Respeitar a vida, em ambos os casos. Ele não se aplica ao morto, às plantas ou às coisas inanimadas; proíbe matar um ser humano porque não é permissível exterminar a vida. Portanto, não há diferença entre a vida do outro e a minha própria vida. Essa vida não me pertence. Ela é uma dádiva de Deus e uma confiança depositada em mim e no outro. Não tenho permissão de me matar, bem como de causar a mim mesmo qualquer dano, porque estaria cometendo pecado contra mim mesmo, expondo-me a qualquer dano, físico ou não. É por isso que em nosso parecer jurídico proibimos fumar, o que pode causar câncer, mesmo depois de vários anos. Daí a sentença jurídica (fatwa) que proíbe tudo que causa prejuízo ao corpo.”(10)

“Da mesma forma que o Islã considera a sua vida, considera a vida dos outros e aplica em você o que aplica nele.”(11)

“A moral não pode ser dividida. Não é apenas o que se pratica contra os outros, mas o que se pratica contra si próprio. É uma questão de equilíbrio. Assim, quando se verifica o caso de uma pessoa que não sofre de doença fatal, ela está sendo morta de maneira cruel. E não há diferença entre matança negativa e positiva. O indivíduo tem de preservar a vida dos outros como a sua mesma.”(12)

A partir desse princípio, rejeitamos a eutanásia como forma de misericórdia. A morte é por sua natureza física, cruel, porque tira a vida e transforma a pessoa em coisa. Ela confisca a vida e a existência. Portanto, existe, islamicamente, o direito de se matar, porque o suicídio é pecado: ‘Não cometais suicídio.’ (4:29). ‘…sem permitir que as vossas mãos contribuam para vossa destruição.’ (2:195). Não é permitido ao paciente pedir ao médico uma injeção para terminar com a sua vida, como não é permitido para o médico atender ao apelo, pois não ele tem autoridade sobre a vida de seu paciente.”(13)

Então, quando aqueles que falam sobre a eutanásia justificam-na devido às dores físicas que atingem o paciente, se legalizarmos isso, como foi legalizado na Holanda, devemos também legalizá-lo para os que sofrem de dores psicológicas e acreditam que a morte para eles é melhor que a vida. É o que deduzimos das palavras do poeta árabe:

“Onde há morte para eu comprá-la, a vida é inútil”.

Se abrirmos a porta da eutanásia, devemos legalizá-la para a garota que experimenta um choque emocional ou para o jovem que sente intranquilidade e sofre de distúrbios, que sente que sua vida não tem valor. Devemos legalizá-la para o empresário que amarga perdas na bolsa ou crises financeiras. Quando aceitamos o princípio, não podemos confiná-lo em um círculo. A intensidade das dores físicas é, muitas vezes, a mesma das dores espirituais ou psicológicas. Além do mais, as dores psicológicas podem afligir mais do que as dores físicas. Podemos, então, legalizar o ato que acaba com a vida da pessoa, tirando-lhe o valor de sua existência?”(14)
Por outro lado, por que prejulgamos as potencialidades da medicina? Não seria possível que uma hora depois da morte do indivíduo fosse descoberto um tratamento para a doença que causou a sua morte? Todas as descobertas médicas, antes de serem colocadas em prática, eram extremamente esperadas por muitas pessoas acometidas por doenças fatais. Deixemos que a vida se defenda! Se a pessoa está sofrendo dores, podemos recorrer aos valores espirituais, que a ajudam fisicamente a suportá-las.”(15)

A morte por suicídio

Quanto ao fato de a morte por suicídio ser a mesma morte que Deus determinou para todo ser humano, Sua Eminência diz: “Sim, porque Deus, glorificado e exaltado seja, sabe que Fulano irá morrer, por sua vontade, por meio de suicídio. Deus, glorificado seja, quando predeterminou as coisas, as fez com as suas causas e sabe da realização das causas. Como Deus conhece os acontecimentos futuros, sabe que Fulano irá morrer por ataque cardíaco, ou por causa de uma doença específica e também sabe que Fulano morrerá atingido por um tiro, ou suicidando-se. Deus, o Altíssimo, não tem duas medidas. Mesmo quando se diz que ‘há um destino traçado e um destino furado’. Isso não quer dizer que Deus, o Altíssimo, fixou uma idade para determinada pessoa e outro a antecipou ou postergou. O destino predeterminado é o destino natural, que acontece pela natureza do corpo humano com seus elementos, quer por causa de enfermidades que ele contrai ou coisa similar. O destino ‘furado’ significa o destino ao qual o ser humano se dirige devido a suas escolhas, como o suicídio e o que o causa.” (16)

Fontes:

1) Pensamento e Cultura, as Questões do Alcorão, número 316.
2) Pensamento e Cultura, as Questões do Crença, número 315.
3) Pensamento e Cultura, as Questões de Jurisprudência, número 309.
4) A Medicina e a Religião – Palestra no “Hospital do Oriente Médio”, Beirute, 12-09-1995.
5) Id.
6) Id.
7) Id.
8) Id.
9) Id.
10) A Ética Médica e a Ética da Vida – Palestra proferida na Universidade Qadis Yussif, início de março de 2002.
11) Id.
12) Id.
13) Id.
14) Id.
15) Id.
16) Pensamento e Cultura: as Questões da Crença, número 362.

 

 

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