A Misericórdia

Todos os dias, os canais de televisão e estações de rádio, os órgãos de informações falados e escritos exibem e divulgam notícias e cenas apavorantes que mostram a crueldade do ser humano, que pratica crimes vis contra os seus irmãos. A cada dia, vemos cenas de injustiça, assassinatos, torturas, expulsões, agressões e inimizade selvagem, que são exibidas na tela da televisão, transmitidas pelas ondas de rádio ou impressas nos jornais, revistas, livros e relatórios. Vemos os corpos dos mortos e dos feridos enchendo a terra, os bombeiros procurando cadáveres sob os destroços dos edifícios que desmoronaram sobre seus habitantes ou vítimas da opressão e da falência da consciência. Nas prisões e nos campos de concentração, a fera que se move em forma humana prepara os instrumentos de tortura contra suas vítimas. A crueldade torna-se mais grave quando os cruéis selvagens enterram as suas vítimas vivas.

Além dessas cenas apavorantes, vemos o sangue e as lágrimas sendo derramados, ouvimos os gritos dos torturados e seus pedidos de socorro. Vemos também as filas dos refugiados e as cenas de miséria, de fome e privações apavorantes dominando as pessoas. Essas cenas assustadoras são transmitidas de diferentes partes do mundo e muitos de nós as testemunhamos dentro do lar ou nos locais de trabalho. São cenas que expressam e demonstram a crueldade do ser humano, a ausência de misericórdia.

Contudo, muitas vezes, o criminoso não se contenta com o seu crime, mas considera o seu ato heróico, como se tivesse sido feito em defesa de valores em que ele acredita. Para justificar os seus crimes, utiliza-se de conceitos como patriotismo, progresso, princípios, interesses legais, o direito internacional, entre outros. Esquece-se que estes termos e conceitos existem para proteger o ser humano e garantir-lhe segurança e tranqüilidade. O que ele está cometendo é crime, selvageria, desumanidade.

O maior problema do homem civilizado contemporâneo é o problema da falência da sua consciência, a ausência de sentimento de culpa, expressa pela crueldade. Ao perder o senso de misericórdia, o ser humano anula o lado mais importante de sua condição humana. A falência da consciência e a ausência de sentimento de culpa acabam tornando-se naturais para o ser humano desequilibrado, que não crê no Criador do Universo e no Dia do Juízo Final. Assim, ele pavimenta o caminho para a inobservância dos valores morais.

Essas questões de ordem humanística não podem ser resolvidas a não ser com o retorno aos valores morais e ao Clemente e Misericordioso, Que criou todas as criaturas e lhes concedeu a Sua misericórdia: “O Clemente. Ensinou o Alcorão. Criou o homem, e ensinou-lhe a eloquência” (Alcorão Sagrado, 55:1-4). “Ó Senhor nosso, Tu, Que envolves tudo com a Tua misericórdia e a Tua ciência” (Alcorão Sagrado, 40:7).

No Glorioso Livro de Deus, a Revelação é sempre iniciada com o nome do “Clemente e Misericordioso”, para reforçar o atributo de misericórdia divina no ser humano, fazendo-o sentir que está se relacionando com o Clemente e Misericordioso, Sutil e Amabilíssimo. O Alcorão Sagrado descreve o Profeta Mohammad (S) como compassivo e misericordioso para com a humanidade. Ele é descrito assim: “Chegou-vos um Mensageiro de vossa raça, que tem pena do vosso infortúnio, anseia por proteger-vos, e é compassivo e misericordioso para com os crentes” (9:128); E ainda assim: “E não te enviamos, senão como misericórdia para a humanidade” (21:107).

O Profeta (S) incorporou o aspecto da misericórdia em todas as suas condutas e pensamentos, a ponto de se perturbar ao ouvir o choro das crianças, mesmo durante suas orações. Ele cumulava seus inimigos com sua misericórdia e sentimento, direcionando-os até mesmo aos animais. Os historiadores relatam que o Profeta (S) estava, um dia, caminhado com seus companheiros, em uma de suas campanhas. Eles passaram por um ninho de pássaro e encontraram nele filhotes. Alguém os pegou e afligiu a mãe deles. Ela começou a piar alto e revoar sobre as pessoas, como se estivesse pedindo socorro para salvar os seus filhotes do perigo. O Profeta (S) olhou para a mãe dos pássaros com amabilidade e misericórdia e disse a seus companheiros: “Quem a afligiu com seus filhotes? Que sejam devolvidos a ela.” Os filhotes foram devolvidos ao ninho e à mãe aflita.

Vemos nesta cena o sentimento de misericórdia incorporada à conduta do Nobre Profeta (S), o que se revelou, também, no tratamento aos seus inimigos. Os historiadores relatam a resposta que deu a Saad Ibn Ubáda, no dia da conquista de Meca. Saad Ibn Ubáda estava gritando: “Hoje é dia de carnificina, hoje as mulheres serão raptadas!”. O Profeta (S) o censurou, dizendo-lhe: “Diz: hoje é dia de misericórdia!”.

Observamos os mais elevados sentimentos de misericórdia do Nobre Profeta (S) por intermédio do que narraram os seus biógrafos. Eles citam que algumas mulheres levavam suas crianças para as mesquitas. Deixavam o filho ao lado para orar e a criança sentia a separação da mãe, chorando em voz alta. O Profeta (S) ouvia o choro da criança, o que o perturbava. Por isso, abreviava a oração, por misericórdia pela criança, para que as mães pudessem tomar conta dos filhos. Então, dizia: “Ao ingressar na oração, desejo prolongá-la. Porém, ao ouvir o choro das crianças, eu a encurto, por saber da preocupação da mãe por causa do choro de seu filho.” Relata-se, também, que os coraixitas pediram ao Profeta (S): “Suplica a teu Senhor para que transforme a colina Assafa em ouro; assim acreditamos em ti.” Ele perguntou: “Vós o farieis?” Responderam: “Sim!” Ele, então suplicou. O arcanjo Gabriel apareceu-lhe e disse: “O teu Senhor, exaltado seja, te cumprimenta e te diz: ‘Se quiser, transformo Assafa em ouro. Quem descrer, depois disso, sofrerá o mais doloroso dos castigos. Se quiser, abrirei para eles as portas do arrependimento e da misericórdia.” Ele disse: “Prefiro o arrependimento e a misericórdia.” O homem não necessita do ouro e da prata, mas da misericórdia de Deus. Ele necessita ser misericordioso. Consegue viver sem o ouro e prata, mas não consegue ficar sem a misericórdia e o arrependimento”.

O Profeta (S) convocava a sua comunidade para ser misericordiosa, educando-a nessa conduta, para criar nela o sentimento de perdão e a observação da consciência. Foi narrado que o Nobre Profeta (S) disse: “A misericórdia só é arrancada do criminoso.” Ele também disse: “Deus só tem misericórdia de Seus servos misericordiosos.”

O Mensageiro de Deus (S) condena a dureza do coração, considerando isso afastamento de Deus, glorificado seja, e afastamento da benevolência. A sua nobre orientação diz: “Não deveis endurecer os vossos corações, pois o coração endurecido afasta-se de Deus.” São aspectos de convocação para a misericórdia, da educação da consciência, do sentimento em relação às dores dos outros, solidarizando-se com eles. Trata-se de incorporar os sentimentos à unidade da espécie humana, fazendo a pessoa tratar o próximo como gostaria de ser tratada. Percebe-se, pois, que os valores do Islã foram edificados na misericórdia, na piedade e na compaixão, enquanto o seu oposto, o comportamento materialista, gera o terrorismo, a crueldade e o sentimento de inimizade.

Triste realidade

As estatísticas registram cifras desconcertantes que demonstram a crueldade, a atrocidade e a selvageria do ser humano. O Banco Mundial informa que uma criança é assassinada a cada 92 minutos nos Estados Unidos, vítima de disparo de arma de fogo. Uma revista semanal russa, a “Argumenti i Fakti”, sob o título “Encarcerem as Mães”, informa que 14 milhões de crianças sofrem ferimentos devido às agressões ministradas pelos pais. O jornal italiano “Panorama” publicou uma reportagem a respeito da violência na Itália contra as mulheres e as crianças. Diz o texto: “A pessoa fica pasmada diante da violência em um país desenvolvido como a Itália, com quase três mil anos de existência”.

Relatório do Banco Mundial cita um doloroso acontecimento nos Estados Unidos, que envolveu a pequena menina Íon. Ela possuía uma beleza ímpar, sendo descrita pela sua professora como um “anjo resplandecente”. Era a filha da ex-miss do Estado de Virgínia Ocidental de 1977. A pequena Íon obteve vários títulos nos concursos de beleza infantil. Porém, no dia seguinte a um feriado de Natal, o pai de Íon, o Sr. Rafri, encontrou o corpo da inocente filha no sótão de sua casa. Ela tinha sido assassinada de forma horrível. Foi amordaçada, sofreu agressões sexuais e foi estrangulada com uma corda de plástico. Foram constatados vários golpes em seu corpo.

O documento cita também que um milhão e meio de crianças foram mortas em guerras nos últimos dez anos, sendo que 12 milhões tornaram-se órfãs, como resultado das guerras e conflitos sangrentos. O jornal Chicago Tribune, do estado norte-americano de Illinois, relata outro caso pavoroso, em que quatro crianças foram violentadas pelos próprios pais. Citando um juiz, a reportagem revela: “As crianças são um menino de quinze anos e três meninas com a idade de 10, 11 e 12 anos. Eles foram obrigados, várias vezes, a praticar sexo com seus pais Gerald e Barbara Heal. Os pais costumavam drogar os filhos com injeções de cocaína. O período de tortura durou quatro ou cinco anos, entre o final do ano de 1989 e o início de 1994.”

Esta falta de amor ao próximo, estas demonstrações de selvageria e falta de escrúpulos, são praticadas não só contra crianças e mulheres, mas, muitas vezes, contra populações inteiras. Recordemos o genocídio praticado contra a aldeia palestina de Deir Yassin, perto de Jerusalém, em abril de 1948. No dia 9 daquele mês, dois grupos terroristas judaicos, o Irgun e a Gangue Stern, atacaram-na. Um dos habitantes da aldeia, Abu Mahmud, que sobreviveu, relata que “o fogo explodiu repentinamente na aldeia”, devido ao ataque dos dois grupos terroristas. Os sionistas massacraram, casa por casa, os habitantes. Ordenaram que fossem arremessadas granadas nas casas, antes de serem invadidas. Foram mortos homens, mulheres, crianças e idosos. Ezra Yakhin, líder da Gangue Stern, considerado por alguns como herói da independência de Israel, disse categoricamente: “Era impossível invadir o local dos inimigos sem ferirmos as famílias.” Foram mortos na aldeia mais de cem homens, mulheres e crianças. Muito poucos conseguiram se salvar e fugir para Jerusalém.

Em Ruanda, temos a luta entre os hutus e os tutsis: As tribos tutsis dominaram Ruanda. Eles conseguiram isso depois que o colonialismo belga lhes concedeu privilégios naquele país. Quando Ruanda conseguiu a sua independência, os hutus dominaram paulatinamente a situação até 1993, quando ambas as partes firmaram um acordo de paz, que não durou muito. Ruanda ingressou em nova luta e numa guerra civil. Após isso, começaram as ondas dos genocídios que ceifaram mais de meio milhão de vidas dos tutsis. As cenas de massacres coletivos ficaram vivas na mente dos ruandeses até hoje em dia.

Relatório anual da Organização dos Médicos sem Fronteiras revela que o número de vítimas civis das guerras cresceu assustadoramente. Enquanto os civis representavam, historicamente, 10% das vítimas nas diferentes guerras no início do século passado, nos primeiros anos deste século o número de vítimas civis alcançou 90% do total. Deve-se citar que muitos civis atingidos pelo aparato militar foram vítimas de guerras internas, cujos números verdadeiros muitas vezes não são revelados para a opinião pública. Outro ponto digno de nota é que os civis passaram a ser atingidos intencionalmente por grupos armados rivais, não sendo mais vítimas acidentais do fogo dos canhões, mísseis ou armas automáticas. Um exemplo foi o ataque de Israel ao Líbano, em meados de 2006. Para, supostamente, forçar a libertação de dois soldados raptados no Sul do Líbano, Israel bombardeou cidades e aldeias libanesas, incluindo a capital, Beirute, por 30 dias. O resultado foi o assassinato de cerca de 1.350 pessoas, das quais 1.100 civis e 250 militares.

O relatório anual da Organização dos Médicos sem Fronteiras informa que o número de pessoas expulsas de suas casas, cidades e aldeias por causa das guerras atingiu a cifra de 45 milhões de pessoas, ou seja: mais que o dobro do número dos anos oitenta.

Quanto aos crimes e selvageria dos sérvios, lemos: “Quando testemunhas oculares informaram a respeito das ações genocidas que os sérvios praticaram na Bósnia, em Srebrenica em particular, depois de invadirem essa cidade muçulmana e perpetrarem atos de limpeza étnica contra os habitantes muçulmanos, muitos não acreditam na proporção da catástrofe humana. Talvez alguns achassem que há exagero no caso, até serem encontradas várias covas coletivas na cidade após o acordo de cessar fogo e o projeto de divisão da autoridade na Bósnia e Herzegovina entre sérvios, muçulmanos e croatas.” As testemunhas oculares atestam que os sérvios mataram em um só local, próximo de Pratonates, 2.500 civis inocentes, isso depois que os sérvios lhes tinham garantido segurança caso se entregassem. Eles estavam espalhados nas florestas antes de serem cercados pelos sérvios. As testemunhas que relataram o fato se salvaram milagrosamente, pois ficaram debaixo dos corpos e órgãos dos mortos, prendendo a respiração, imóveis até os sérvios abandonarem o local. Eles fugiram pelas florestas na direção da cidade de Tusla. Alimentavam-se, durante todo o caminho, com frutas silvestres. Depois disso, as organizações internacionais encontraram 200 covas coletivas, que possuíam cada uma de cem a mil corpos amontoados uns sobre os outros. Depois de um longo silêncio das organizações internacionais sobre os direitos humanos, os órgãos de imprensa ocidentais revelaram a existência de milhares de vítimas enterradas coletivamente. A República Muçulmana de Bósnia informou, ainda, que há mais de 20 mil desaparecidos. Além disso, muitas mulheres casadas e solteiras, algumas delas adolescentes, sofreram abusos sexuais. Algumas engravidaram e deram à luz as crianças. Os sérvios assassinaram muitas dessas mulheres. Algumas delas cometeram suicídio, devido às torturas e aos maus tratos.

 

 

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