Conhecendo o Islam – Parte 3

Em nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso.

1. Há um propósito para a vida humana?

Em todas as épocas, sociedades e culturas, o ser humano que tenha alcançado um certo grau de maturidade emocional, sempre se viu diante dessa questão. Seria a vida humana obra do acaso? Um mero fenômeno material? Diferentes atitudes diante da questão são observáveis entre as pessoas. Por um lado, filósofos, pensadores e teólogos se dedicaram a meditação sobre o assunto, por outro, a maioria das pessoas prefere não pensar sobre isso ou aceitar uma explicação simplista. De qualquer modo, as culturas são moldadas segundo concepções sobre o significado da vida humana. Todos os traços culturais de uma sociedade são marcados sobre a idéia que esta sociedade tem sobre o significado da vida humana. Ao olharmos para o modo de vida predominante na sociedade moderna, sua complexidade e seus problemas, estamos diante do resultado de uma interpretação, de uma concepção acerca desse significado. As realizações materiais, o conforto, a satisfação das necessidades básicas e dos desejos formam o que seria, para o pensamento dominante, o conjunto essencial dos objetivos da vida humana. A idéia de um propósito superior, para uma parte considerável das pessoas de nosso tempo, ou não faz sentido ou não é relevante.

Entretanto, não precisamos refletir muito sobre essa concepção para encontrarmos várias contradições e incoerências nela. Quando pensamos nas sociedades prósperas do mundo ocidental, nas quais as realizações e o bem estar material estão ao alcance de uma boa parcela da população, quando pensamos no seu estilo de vida auto-destrutivo, os crescentes índices das doenças emocionais, do alcoolismo, da dependência de drogas, constatamos porque a vida humana é uma “mercadoria de tão pouco valor” na escala de valores dos que advogam tal idéia.

O Islam nos propõe uma perspectiva muitíssimo mais ampla. Nos ensina a entender a existência a partir dela própria e não das idéias que nos sejam convenientes. E é precisamente a partir dessa nova maneira de ver as coisas que, podemos identificar mais e mais contradições no ponto de vista dominante sobre essa questão. Ao refletirmos sobre a complexidade do corpo e da mente humana, sobre a grandeza do universo do qual fazemos parte, sobre a abundância de recursos naturais que foram postos a nossa disposição, como poderemos aceitar que o propósito da vida humana seja apenas e tão somente comer, beber, procriar, acumular bens materiais e morrer? Se admitíssimos tal hipótese, teríamos que admitir a ausência de lógica na ordem universal, o que é algo inteiramente descartado por nossa própria razão. Todas as atividades elementares para a sobrevivência, a segurança e a perpetuação da espécie são perfeitamente realizadas por todas as espécies animais, seríamos dotados de maneira tão distinta para cumprir o mesmo propósito?

Um Propósito Elevado revelado pelo Raciocínio

O Islam nos diz que a vida humana tem um propósito elevado; o qual se comprova pela própria complexidade da natureza humana. As realizações materiais cumprem uma importante função em nossa vida, porém, estão circunscritas a dimensão física, isto é, estão fadadas ao perecimento. Diante da abundância de evidências em nós mesmos e no universo que nos cerca, somente os que abdicam da capacidade de raciocínio podem dizer como aqueles que o Alcorão Sagrado menciona: “E dizem: Não há vida além da terrena. Vivemos e morremos…” (45:24) Esta atitude perante a vida está na base da maioria dos males na sociedade humana; não apenas os males que o ser humano causa a seu semelhante, mas sobretudo, os males que causa a si mesmo.

Assim, o Alcorão Sagrado nos orienta à reflexão sobre nossa própria criação e sobre o universo. Quem o fizer não poderá atribuir a existência ao acaso ou a um fenômeno acidental e sem propósito.

O fato de termos a capacidade de raciocínio e o livre-arbítrio, o que nos distingue das outras formas de vida, indica que esse propósito elevado está relacionado a essas características.

2. A Posição do Ser Humano no Cosmos

A questão levantada anteriormente inevitavelmente nos leva a outras: que idéia fazemos de nós mesmos? Que tipo de valor nos atribuímos? Assim como na sociedade moderna impera uma concepção materialista sobre o propósito da vida humana, também padrões materialistas costumam ser adotados na avaliação do ser humano. Ainda que encontremos uma variedade de respostas e opiniões, basicamente dois pontos de vista são apresentados: a visão materialista que relativiza o valor do homem (ou não lhe reconhece qualquer valor intrínseco) e a visão humanista que, em sua tendência extremada, põe o homem numa posição de “medida para todas as coisas.” A primeira conclui que o homem deve ser um tipo de “escravo de todas as coisas”, uma vez que seu valor depende do que possui, da posição social que ocupa ou da sua origem. A segunda conclui que o homem, ao contrário, deve ser um “senhor de todas as coisas”. Evidentemente, as duas posições se baseiam num mesmo equívoco, ainda que cheguem a conclusões diferentes.

O Islam nos diz que o homem não deve ser nem um escravo de todas as coisas tampouco considerar-se “um senhor de todas as coisas.” Novamente, pela reflexão, podemos compreender que não fomos criados para nenhum tipo de servidão; que o valor real do ser humano não pode ser relativo, isto é, não pode depender do que está fora dele, do que não faz parte dele. Não há nenhuma ordem natural que nos obrigue a viver como animais, apenas para satisfazer nossas necessidades de alimento, moradia, sexo e segurança ou os nossos desejos e caprichos. Não há também nenhum fundamento na realidade para os conceitos materialistas que definem o valor de uma pessoa por meio do que ela possua, sua origem ou posição social. Todos esses conceitos só podem nos arrastar à infelicidade e frustração, pela simples razão de que nos levam a atribuir a nossa vida propósitos para os quais ela não foi criada. Por outro lado, o Islam nos auxilia a ver que o homem também não pode considerar-se “senhor de todas as coisas.” Seu intelecto, seu potencial criativo e destrutivo, seu livre arbítrio, nenhuma de suas qualidades confere-lhe o direito de servir-se do mundo a seu bel-prazer. Desde que o homem não criou a si mesmo e não criou o universo, não pode julgar-se acima das leis universais, não pode dar a Lei Divina sua própria medida. Ao fazê-lo, apressará sua ruína.

Ao mencionar a verdadeira posição do homem no cosmos, o Alcorão Sagrado nos relata:

“E quando teu Senhor disse aos anjos:” Vou instituir um legatário na terra!” Perguntaram: Estabelecerás nela quem ali fará corrupção, derramando sangue , enquanto nós celebramos Teus louvores, glorificando-te?” Disse: “Eu sei o que ignorais.” Ele ensinou a Adão todos os nomes dos seres e das coisas e depois apresentou-as aos anjos e lhes falou: “Nomeai-os para mim se estiverdes certos.” Disseram: “Glorificado sejas! Não possuímos mais conhecimento além do que Tu nos concedeste; porque somente Tu és Prudente, Sapientíssimo.” Ele ordenou: Ó Adão, revela-lhes os seus nomes. E quando ele lhes revelou os nomes, asseverou (Deus): “Não vos disse que conheço o mistério dos céus e da terra, assim como o que manifestais e o que ocultais?” (2:30 a 33)

Os versículos apresentam primeiro a posição em que o homem foi criado por Deus: a de legatário (encarregado). Para esta finalidade o homem foi dotado de suas qualidades (intelecto, livre arbítrio, criatividade, etc.) de modo distinto de todos os demais seres da criação. A posição de “legatário de Deus” significa que o homem não é efetivamente dono de coisa alguma, pois segundo o Islam, tudo pertence a Deus. Essa honrosa posição, esse encargo, demonstra que a vida humana foi criada para a “responsabilidade”, não para a negligência. As qualidades imprimidas na natureza do homem exigem “responsabilidade”, sobre seus atos, sua vida, seus semelhantes, em relação a seus bens, a sua família, etc. O encargo, em sua perspectiva cósmica, significa que o propósito da vida humana é honrar o que Deus lhe confiou, realizar Sua vontade e servi-lo.

Entretanto, os versículos relatam a seguir que, fosse pelo exercício do livre arbítrio ou pelas limitações de sua natureza, o homem corromperia a terra. O que nos lembra que, não obstante sua posição elevada na criação, o homem depende inteiramente da orientação e da misericórdia divina; pois ainda que conte com o intelecto e com o poder de escolha, ambos podem levá-lo a destruição, se não for amparado por Deus.

Introduzia-se um elemento inteiramente inédito na criação: a liberdade humana. Com ela, a ação moral. Ou seja, o homem diferentemente de todas as outras criaturas, exerceria um grau superior da Vontade Divina. Dentre todas as criaturas (e mesmo os anjos) o homem recebia a potencialidade da ação moral, a qual requer a liberdade, a vontade para sua execução.

O terceiro ponto destacado pelos versículos é o conhecimento especial que o homem recebeu de Deus. O conhecimento potencial da “natureza dos seres e das coisas”. O que significa que o homem foi devidamente capacitado para cumprir seu encargo, desenvolvendo suas potencialidades e utilizando-as para seu benefício e o equilíbrio do planeta.

A consciência da posição do homem no cosmos é de grande importância para que nos libertemos das falsas concepções, que nos condicionam a viver em conflito com a nossa verdadeira natureza. A esse estado ou condicionamento o Islam chama de jahilyyah (ignorância).

3. O Objetivo Essencial da Religião

Quer seja na conotação da palavra árabe “din” (religião) como “caminho”, ou no sentido da palavra latina “religare”, a palavra religião envolve um sentido de orientação ou reorientação para um propósito original que tenha sido abandonado. O homem afastou-se de sua origem, de seu Criador, apegou-se a desorientação de suas próprias paixões e idéias, assim, o objetivo da religião (a Orientação Divina) é possibilitar ao homem um retorno, uma redenção. Os Profetas e Mensageiros de Deus se engajaram nesse longo programa de reeducação do gênero humano para libertá-lo da inconsciência e da ignorância. Como vemos, a palavra religião, em seu verdadeiro sentido, nada ou quase nada tem a ver com a babel de seitas e crenças corrompidas que hoje predominam em várias partes do mundo.

A religião por excelência busca reeducar o ser humano, libertá-lo da escuridão das múltiplas formas de idolatria e politeísmo com a luz do tawhid; libertá-lo do seu egoísmo, de sua avareza, de seu orgulho, ensinando-o a generosidade, o amor e a humildade. O Islam nos ensina que o homem, na condição de afastamento de seu Criador, é um opressor de si mesmo. Suas escolhas e inclinações fatalmente o conduzem a injustiça, a corrupção e ao egoísmo pela simples razão de que são orientadas por seus desejos e conveniências. A reeducação promovida pela Orientação Divina tem por finalidade fazer com que o homem adote os padrões e a vontade de Deus em sua vida, em suas ações e escolhas.

O Alcorão Sagrado nos diz que “Para Deus a religião é o Islam” (3:85), ou seja, a “submissão a Ele”, porque o homem não pode orientar a si próprio naquilo que está além do seu conhecimento, não pode impor a Deus condições para acatar suas leis; e a Orientação que o libertará neste mundo e o salvará no outro é uma graça de Deus, isto é, pertence a Deus.

É da natureza da Lei divina oferecer ao homem “o melhor”. Isto é, Deus Altíssimo separou o lícito do ilícito para o bem do homem, não para sobrecarregá-lo. Por conhecer a natureza humana melhor do que o próprio homem, Deus determinou o lícito e o ilícito para que o homem não promovesse sua própria ruína. Não obstante, a decisão de obedecer a Deus ou não, permanece em nossas mãos. Por isso, a religião por excelência, não se molda aos padrões e idéias humanas, os quais são transitórios e inconstantes. Se tal ocorresse, o objetivo essencial da religião, que é “transformar o homem e libertá-lo” estaria perdido; o homem se tornaria o agente do processo, isto é: daquele que precisaria da orientação o homem passaria a ser aquele que orientaria. É a natureza transcendente da religião que torna disponível ao homem os meios para o auto-conhecimento, a purificação e a adoção de uma ética renovada.

4. Responsabilidade e Ação Moral

Nos três capítulos anteriores tratamos dos propósitos da vida humana e da religião. Na realidade, não abordamos senão aspectos da responsabilidade intrínseca do homem e da ação que é requerida dele no mundo. O homem foi criado livre para que exercesse essa liberdade de modo responsável e promovesse no mundo a ação moral que, em última análise, é a expressão da vontade de Deus. A palavra “moral’ aqui não deve ser entendida segundo as concepções humanas que a identificam com valores convencionais limitados pela cultura ou a época. “Ação moral” a qual nos referimos é a ação segundo os padrões de Deus. O homem está naturalmente apto a cumpri-la e tem a responsabilidade de fazê-lo, mudando a si mesmo, sendo agente dessa ação na sociedade e no mundo em que vive. Ao adotar os padrões de Deus, em suas ações e em seu modo de avaliar as coisas, o homem estará a seguir o propósito para o qual foi criado. Este caminho, segundo o Islam, é o caminho que leva ao sucesso. A palavra “falah” tem o sentido de felicidade, sucesso ou bem estar adquirido pelo esforço. Sua raiz árabe literal significa “vegetação que cresce”, o que pode ser entendido como sendo “o cumprimento da ordem divina.” A felicidade ou sucesso aqui referido é algo que está muito além da felicidade ou sucesso mundano (material). O mais próximo de seu sentido preciso poderia ser exemplificado pelo prazer interior que sentimos a fazer algo de bom ou justo, sem qualquer intenção de ganho ou recompensa material envolvida.

A responsabilidade humana, relacionada com o propósito de nossa vida, é apresentada pelo Islam em vários versículos do Alcorão Sagrado, que claramente nos dizem que não receberemos senão a conseqüência de nossos atos, que Deus não é injusto para nenhuma de suas criaturas, e que no fim, nosso destino será a expressão daquilo que quisermos para nós.

A condição humana é tal, que essa responsabilidade intrínseca nos acompanha sempre e enquanto estamos conscientes; ou seja, não há como fugir dessa responsabilidade enquanto exista razão ou consciência em nós.

Essa condição, tal como é definida pelo Islam, não admite qualquer interpretação que venha a delegar a responsabilidade a Deus, ao que muitos chamam de destino, ou mesmo a culpa de nossos insucessos a outros. Muito embora possamos ser vítimas da injustiça alheia em determinada situação, isso não altera o fato de que sempre podemos ajudar a nós mesmos na busca do que é melhor. Na realidade, o Islam nos educa para o esforço e o uso de nossas capacidades, para que abandonemos a atitude de “sujeição ao destino” o que na prática é a abdicação da responsabilidade que temos sobre nossa própria vida. A atitude de muitas pessoas chamadas de “religiosas”, de “esperar a ajuda de Deus” não é de modo algum aprovada pelo Islam. Devemos sim, confiar no amparo de Deus, acreditar que todo bem provém Dele, sem nunca abdicarmos de nosso esforço e de nossa inteligência nem esquecermos que a responsabilidade sobre a vida que recebemos de Deus, é nossa.

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