Ética, Política e Sociedade (Os conceitos islâmicos aplicados para o Tahsin)

Por: Isma’il Ahmad

Em Nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

O Islam, em todos os seus aspectos, se fundamenta no que é denominado de Fitrat (natureza primordial). Portanto, sua efetivação em qualquer nível ou campo da vida humana é a concretização do propósito original dessa natureza.

Diante dos desequilíbrios e conflitos presentes nas sociedades humanas e com o agravamento desses problemas no atual momento histórico da humanidade, torna-se premente a conscientização global sobre o Islam.

Sistemas e ideologias que, de um modo ou de outro demonstram acertos, provam-se bastante limitados quando confrontados com a realidade prática. Esses sistemas e ideologias embora diferentes entre si demonstram uma característica comum: seu limitado alcance e compreensão das razões e da natureza dos problemas sócio-políticos os quais, em última análise, refletem parcialmente a dimensão real do dilema humano.

Reformadores e revolucionários tem se empenhado em implementar sistemas e ideologias, enfatizando ora o progresso econômico, ora o aprimoramento de um regime ou sistema político e econômico. O Tahsin, de acordo com a abordagem islâmica, trata-se de um melhoramento ou progresso que abrange todos os aspectos da existência humana e que apresente soluções para seus desequilíbrios e conflitos.

O ponto de vista islâmico nessa questão é que nada de avanço real pode ser conseguido se uma sociedade tornar-se materialmente próspera enquanto que no plano espiritual, ético e moral se mantiver atada e escravizada às paixões de domínio, ânsia de poder, ignorância e egoísmo. Tal sociedade permanecerá submetida à injustiça, sua riqueza material não a conduzirá ao bem estar, e qualquer parcela que usufruir disso, o fará ao preço da infelicidade de muitos. Mesmo a paz, será quando muito a ausência de um conflito armado, desde que a paz não coexiste com a injustiça. Daí a falência de todos os sistemas e ideologias de alcance e de natureza puramente política – econômica.

Essa abordagem levanta múltiplas questões de âmbito teórico e prático. Neste trabalho trataremos de algumas dessas questões, que auxiliam a compreensão da natureza e da sutil relação entre a política e a sociedade e de como essas relações precisam ser equilibradas e resolvidas, caso algum progresso seja realmente desejado.

A Questão de um Avanço Qualitativo da Política

É comum que, à medida que um povo tome consciência de seus problemas, surja na sociedade um apelo por governantes justos e honestos, que ajam com correção e correspondam aos anseios populares, trabalhando para o bem da nação. Porém, não raro a sutil relação entre a ética dos políticos e governantes e a ética comum da sociedade é subestimada.

O primeiro ponto a se compreender é que a classe que governa (seja ela eleita democraticamente ou tendo tomado o poder pela força ditatorial) não obstante, os regimes políticos variem entre si e disponham de diferentes graus de exercício ou abuso do poder, no que é essencial em sua prática, sempre agem segundo o senso comum do povo que governam.

Se um governo exerce a tirania e a opressão, se é corrupto ou brutal com seus opositores, se adere ao populismo e a demagogia, em qualquer desses casos o fato é que o governo se estabelece e exerce o poder segundo os valores éticos dominantes na sociedade que governam.

A bem da verdade, os ditadores (que possuem quase como uma segunda natureza o caráter demagógico) empenham sempre grandes esforços para destruir as qualidades éticas do povo e fortalecer nele as deformações morais sobre as quais seu poder político é exercido. Assim, um governo belicista insufla em seu povo a crença no poder da nação pelas armas, instiga a sociedade aos ideais de domínio territorial, ao ódio às nações vizinhas, com freqüência alimenta os conflitos étnicos corrompendo os jovens e iludindo as massas populares para perpetuar-se no poder.

Contudo, nenhum ditador é bem sucedido nessa empreitada exceto se essas distorções e tendências perversas já não existam ao menos em forma latente no espírito da sociedade. O processo e a prática aqui mencionada não se restringem ao caso das ditaduras, mesmo nas chamadas democracias, desde que essa perversão nacionalista exista na sociedade, vemos governantes exercendo o poder baseando-se nisso. Porque a regra é que o governante sempre siga em direção às ambições e inclinações básicas do povo que governa.

Podemos dizer que, em todos os casos o governo é o ápice da pirâmide, sua qualidade ética ou a ausência dela corresponde a do povo, da nação que governa. Esse fenômeno explica a razão de que, com muita freqüência, uma revolução ou mesmo uma eleição democrática conduz ao poder líderes ou partidos que repetem todos os desmandos e erros (ou ainda maiores) dos que os precederam no poder.

Existem casos excepcionais, em que por um breve período um povo ou nação tenha sido governado por um líder possuidor de qualidades morais e éticas superiores às de seu povo, e que tenha de algum modo buscado conduzir a nação a algo que representasse um melhoramento real. Mas, em todos esses casos são sempre as inclinações do povo que terminam por triunfar, seja na figura dos interesses das elites econômicas, dos golpes militares ou de uma liderança populista que iluda a maioria.

Portanto, é essa sutil relação entre os valores éticos e morais da nação e os de seus governantes que a priori deve ser considerada, porque esta é a chave da compreensão dos meios corretos para que uma nação alcance o Tahsin (melhoramento).

Um avanço qualitativo no que se refira aos governantes e na aplicação de um sistema político e econômico não é possível sem que ocorra um avanço qualitativo no espírito e no caráter da nação. Esse é um princípio que vale para qualquer época, cultura ou povo.

Ao analisarmos os fundamentos ideológicos e práticos do Islam estabelecidos pelo Alcorão, pela experiência prática do Profeta (S.A.A.S.) na construção sócio-política do Estado Islâmico em Medina, e pelos princípios expostos nas tradições fiéis do Profeta (S.A.A.S.) e dos Imames dos Ahlul Bait (A.S.), encontramos conceitos abrangentes denominados princípios gerais ou textos estipulantes (Nusus) que enfatizam todos os aspectos importantes a serem observados para a implementação do Tahsin numa sociedade. Diante da vastidão dessa área do conhecimento islâmico nos limitaremos a certos princípios concernentes à questão específica aqui abordada.

Encontramos nesses Nusus (princípios gerais) a ênfase em 3 aspectos relativos ao tahsin (melhoramento, fortalecimento) da nação:

Os valores religiosos
Os valores éticos e morais
A educação e a cultura

Os Valores Religiosos

Compreendamos que o contexto apresentado por esses Nusus é o da construção de uma nação islâmica. Portanto, quando aqui nos referimos aos valores religiosos de uma nação nos referimos aos valores que o Islam preconiza como tais, incluindo certos valores que outras tradições religiosas por razões diversas passaram a desconsiderar (embora esses valores tenham existido desde o princípio em todas as tradições nascidas de revelações divinas). Destacamos:

A prática da religião, a formação religiosa presente na família, o espírito de caridade, a solidariedade, o respeito aos pais, aos parentes, aos vizinhos próximos (o espírito comunitário), o senso de justiça e de lealdade ao que é bom e correto.

O valor religioso do senso de justiça merece especial destaque, uma vez que o Islam o considera indissociável dos demais valores religiosos e que a ordem do bem e a coerção do mal é uma obrigação para o muçulmano, o que difere da posição passiva e contemplativa da concepção religiosa alardeada como “religiosidade” por muitos na cristandade (concepção que tem sempre sido questionada no decorrer da história cristã por uma minoria mais consciente e atuante).

Em suma, o Islam denomina como religiosidade autêntica aquela que se expressa em todos os aspectos da vida do indivíduo: na devoção (prática devocional), nas suas relações familiares, comunitárias e sociais (num sentido mais amplo).

Valores Éticos e Morais

Sob o ponto de vista islâmico, esses valores são uma continuação ou uma expressão específica de certos valores religiosos. Porém, ética e moral não necessariamente correspondem a uma expressão confessional, mas sim, a um senso comum expresso em certos princípios que regulam as atitudes, o comportamento e as relações dos indivíduos entre si.

Todavia, o Islam ressalta como valores éticos e morais os valores permanentes (que não podem ser alterados ao sabor das inclinações e preferências temporárias desta ou daquela sociedade ou cultura).

Roubar por exemplo sempre foi e sempre será uma ação condenável, a licenciosidade sexual (o adultério, a fornicação) também. Mesmo que qualquer sociedade decida “que o roubo ou o adultério não são imorais” tal sociedade nunca escapará das consequências dessas práticas, os efeitos são provas conclusivas o bastante para que uma sociedade que conte com bom senso rejeite a ambos.

Com efeito, os Nusus enfatizam que o fortalecimento de valores éticos e morais permanentes “guiados pela religião e pela razão” é um dos pilares para uma firme construção da sociedade e da nação.

A Educação e a Cultura

O terceiro e não menos importante fator de fortalecimento (Tahsin) de um povo, é o que se compõe pela instrução e o acesso à cultura. Este fator habilita o povo a adquirir um forte senso crítico, a exercer com responsabilidade seus direitos, a discernir corretamente quanto a suas escolhas; o investe de respeito próprio e num sentido prático o capacita para uma condição de autossuficiência para a solução dos problemas relativos ao progresso material (a produção e o desenvolvimento tecnológico).

Dada a importância desses três fatores para o fortalecimento de uma nação (no sentido islâmico do termo), os maus governantes, os regimes e partidos opressores que representam os interesses e privilégios de uma determinada classe (ou um grupo de classes) que eventualmente domina o resto da nação, sempre mantêm um constante esforço e utilizam de vários meios para destruir, impossibilitar ou ao menos corromper esses fatores essenciais.

Não nos é possível definir cada variante dessa ação insidiosa tal é a vastidão de estratégias empregadas por essas forças destrutivas quando se tornam dominantes numa nação.

Em linhas gerais duas estratégicas básicas são adotadas: A supressão pela força ou o controle sistemático institucional.

O primeiro método é o característico dos regimes tirânicos, onde a força é empregada para destruir qualquer possibilidade libertadora, moralizante ou progressista da sociedade, o terror e a repressão são exercidos sob o pretexto da segurança nacional (os opositores, quem quer que sejam, são todos declarados inimigos da nação). Porém, os que adotam essa estratégia são conscientes de sua limitação. Na verdade, torna-se absolutamente necessário recorrer a uma segunda estratégia: o controle sistemático institucional.

Essa estratégia visa por meio da propaganda de estado e do controle das instituições não suprimir valores religiosos, éticos e morais, ou a educação e a cultura, mas sim, corromper tudo isso, exercer um controle ideológico que produza distorções e que torne estéril toda a potencialidade libertadora desses valores.

Os verdadeiros valores religiosos são substituídos por meros rituais, dá-se ênfase às festas religiosas populares, por meio de privilégios e favores o clero é corrompido e assimilado e se põe a colaborar com os dominadores ensinando apenas o que não represente perigo ao sistema.

Com a corrupção dos verdadeiros valores e princípios da Religião, a ética e a moral logo se deterioram: a hipocrisia passa a ser a regra dominante na sociedade: a questão não é mais “ser” honesto, justo, respeitador dos direitos, fiel a esposa ou ao esposo, mas sim “parecer” ser. As relações sociais passam a ser reguladas por uma lógica que aceita tudo que “resulte em alguma vantagem”, não obstante, não se reserva perdão algum para “aquele ou aquela que seja descoberto em delito”.

No que refere a educação e a cultura do povo, ou são completamente desprezadas ao ponto de se manter cidades inteiras sem escolas, ou se garante um ensino precário dirigido para formar mão de obra minimamente capacitada. O sistema educacional popular é mantido atrelado ao Estado, sob um rígido programa que visa perpetuar a cultura das classes dominantes, treinar as crianças a cooperar com o sistema e a identificar os interesses das classes dominantes como “os interesses da nação”.

Esse programa educacional pode ser denominado “educação para a submissão”, voltado para formar uma imensa massa amorfa de indivíduos desprovidos de qualquer senso crítico e respeito próprio. Sob tais condições o espírito autêntico da cultura e da educação como fatores de fortalecimento da nação são corrompidos.

Nas chamadas democracias o processo sistemático de destruição desses fatores essenciais embora em muitos pontos sigam o mesmo curso de operação, a supressão pela força, raramente se faz necessária, já que o processo eletivo credita o governante ou o partido pelo consenso da maioria.

De fato, historicamente a democracia burguesa alcança os mesmos objetivos guiada por uma outra motivação: viabilizar os privilégios de uma classe (ou de um grupo delas) que detém o poderio econômico, dando vazão às más inclinações e ao individualismo, permitindo que se tornem predominantes na sociedade para que, por si só a própria nação rejeite os verdadeiros valores religiosos e transforme a ética e a moral naquilo que lhe pareça mais conveniente.

Esse potencial degenerativo dos valores superiores do homem presente na democracia (que na verdade é uma consequência da predominância da visão materialista sobre a religiosa) levou Platão em “A República”, ao discorrer sobre os cinco regimes de governo, a destiná-la em sua classificação apenas o penúltimo lugar.

Um aspecto positivo nas democracias, quando conduzidas por governantes que detenham algo de bom em si, ou seja, quando a nação não é governada por demagogos e corruptos, é que surge uma possibilidade de fortalecimento da educação e da cultura, e da franquia de seu acesso a uma grande parcela da população.

Esse tem sido um fator verificável nas ricas democracias europeias mas, não podemos tomar como regra pois a realidade ainda é bem outra nos países em desenvolvimento, onde as desigualdades sociais e econômicas ainda condenam a maior parte da população a um estado de ignorância e indigência cultural.

O Papel do Islam e dos Muçulmanos

Diante da clara posição do Islam, de que nenhum fortalecimento (Tahsin) pode ser alcançado numa sociedade sem que se considere estes fatores essenciais (valores religiosos autênticos, ética e moral correlatas a religião e a razão, a formação educacional e cultural), é um dever da comunidade islâmica zelar por esses valores seja na família, no campo comunitário ou na sociedade como um todo. Seja numa nação islâmica (ou de maioria muçulmana) ou nos locais onde os muçulmanos sejam uma comunidade minoritária.

Ao atentarmos para a situação predominante no mundo árabe, no qual nações se encontram submetidas a monarquias corruptas, ditaduras laicas ou governos civis títeres comprometidos com os países ricos, encontramos como ponto comum a todos a sistemática e histórica destruição dos 3 fatores essenciais pelo predomínio da corrupção dos autênticos valores do Islam, a consequente degeneração dos valores éticos e morais e a indigência educacional e cultural. Os índices de analfabetismo (especialmente entre as mulheres) nos países citados são vergonhosos e indignos para qualquer um que diga professar a religião de Mohammad (S.A.A.S.), que veio para suprimir a ignorância com a luz do conhecimento.

Todos os governos citados empenham-se em manter uma imagem pública de fé e comprometimento ao Islam, (o que para as massas tem um forte apelo emocional) formando um quadro político dos mais lamentáveis. Nenhum tahsin real e duradouro que possa tirar a Ummah da condição em que se encontra poderá ser alcançado senão por um direcionamento popular (que conte com lideranças autênticas) no sentido de reconstruir essas sociedades pelo zelo dos 3 fatores essenciais.

O século XX foi marcado por um acontecimento singular para os muçulmanos: A revolução Islâmica Iraniana. Essencialmente, essa revolução foi movida por uma onda popular consciente e bem dirigida para o plano objetivo de:

1. Revitalizar os verdadeiros valores do Islam.
2. Adotar os princípios éticos e morais fundamentados na religião e na razão.
3. Optar seriamente pela educação e a cultura.

É evidente que a reconstrução da nação iraniana é um desafio que ainda se encontra em seu prelúdio, e que depara com uma gama considerável de desafios. Eu cito aqui esta revolução a título de exemplo, para ilustrar o axioma apresentado como autêntico meio para o fortalecimento de uma nação e a consequente solução do dilema dos maus governantes. Quando um povo detém esses 3 fatores essenciais em seu espírito (e só quando isso acontece) torna-se impossível que continue a ser submetido à governantes ou regimes corruptos ou tirânicos. Sua libertação nesse caso, preexiste em seu caráter e se torna manifesta inevitavelmente. Por isso a ênfase em diversos Nusus (textos estipulantes), a maioria das tradições fiéis fomentam o espírito de cooperação, a responsabilidade individual e coletiva, a fraternidade islâmica, a abnegação, a justiça e a compaixão pelas aflições alheias. Buscam afastar do homem os comportamentos viciosos da avareza, do individualismo, da covardia, da transgressão dos direitos dos demais, do oportunismo e da inveja.

Em outra categoria de Nusus encontramos uma extensão desses valores ao campo político e social em que todos os princípios religiosos, éticos e morais devem ser exigidos dos líderes políticos, ou seja, o caráter da nação deve ser forjado de modo a que esteja firmado nesses valores, ao ponto de rejeitar sistematicamente qualquer apoio a lideranças que não os possuam.

O Tahsin portanto, se estabelece nessa sutil ligação entre o fortalecimento da nação e o fortalecimento do exercício do poder político, o aprimoramento do caráter do povo e o consequente aprimoramento da qualidade de seus líderes.

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