Faixa de Gaza – O Conflito na Palestina

Por: Ismail Ahmed

Parte 1

A ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza mobilizou a atenção do mundo de maneira impressionante. Durante vinte e dois dias, um dos exércitos mais bem armados do planeta desencadeou uma agressão desproporcional sobre uma população civil sitiada, sob o argumento de destruir o potencial bélico do grupo islâmico Hamas. A violência empregada e o alto número de vítimas civis chamou a atenção da opinião pública mundial, mais uma vez, para a realidade do conflito palestino-israelense, que continua sem uma solução. Assistíamos a mais um ato da longa sucessão de erros políticos e, sobretudo, da desastrosa opção pelo uso da força, uma vez que a construção de uma paz duradoura e digna significaria para Israel e seus aliados estabelecer uma justiça que se recusam a aceitar.

De fato, a ofensiva israelense era a continuação lógica de um criminoso processo que se iniciara com a eleição democrática, livre e inquestionável do grupo Hamas. A decisão soberana do povo palestino foi imediatamente rejeitada por Israel e por todos seus parceiros ocidentais. Todos os “paladinos da democracia” estavam decididos a rejeitar as regras que eles mesmos consagraram e, em nome de seus interesses, ignorar e minar um governo eleito de forma legítima. Ao iniciarem o boicote internacional ao governo do Hamas, EUA e as potências européias se tornariam cúmplices das conseqüências terríveis que o povo palestino hoje sofre.

Com o pretexto de que “não poderiam reconhecer um governo que não reconhecia o direito de existência do Estado de Israel”, deram início a um sistemático processo de destruição do governo do Hamas. O boicote econômico, a prisão de 42 ministros por Israel, a campanha internacional para isolar o Hamas, a desestabilização interna que provocou o conflito aberto entre o grupo e o Fatah, seguiram um programa que evidentemente resultaria mais uma vez na destruição das bases mínimas para a paz e a construção de um estado palestino.

Os que passaram anos tentando destruir a unidade política dos palestinos, subitamente apontavam a cisão entre o Hamas e o Fatah como uma justificativa para isolar o Hamas.

O Argumento do Não-Reconhecimento

A argumentação do não-reconhecimento buscava fundamento na carta de fundação do grupo. O argumento em si demonstra a total negação de qualquer diálogo possível. O grupo Hamas, fundado como grupo de resistência a Israel, coerente com seu programa, se tornava um partido político. Como outras organizações pelo mundo, como o IRA, por exemplo, o Hamas não estava inteiramente fechado à possibilidade de uma transformação em seus princípios. Contudo, isso requeria negociação. O Hamas estaria disposto a uma mudança desde que Israel estivesse igualmente disposto a mudar sua política para com os palestinos.

Recentemente, o Le Monde publicou uma declaração oficial do Hamas em que o grupo demonstrava-se disposto a reconhecer o estado de Israel, desde que as forças israelenses se retirassem incondicionalmente dos territórios palestinos. Portanto, a “intransigência dos fundamentalistas islâmicos” como a mídia do ocidente costuma afirmar, não é uma verdade incontestável. Por outro lado, o princípio sionista de “não-reconhecimento de um direito histórico palestino sobre o território jamais foi ressaltado como um fator que impossibilitasse a paz na região. Por gerações, o povo judeu sob o domínio sionista tem sido “doutrinado” a ver a Palestina como “terra de ninguém” na qual a Israel histórica seria reconstruída. Todo o planejamento político de assentamentos nessas seis décadas atende a uma progressiva ainda que lenta, “destruição da cultura árabe” na região. Assim, o reconhecimento exige uma visão ambivalente, se é que se pretende construir a paz entre palestinos e judeus.

Ao não tentar o diálogo em bases realistas com o governo democraticamente eleito do Hamas, a comunidade internacional cometeu um erro histórico. Mas não foi um erro inconsciente, foram mais uma vez induzidos a seguir a vontade de Israel e dos EUA, ou seja, a política americana para a região que é e sempre foi a de “fazer valer os interesses de Israel;” e para isso, o diálogo não só é desnecessário como também é um empecilho.

Para a administração Bush, nos últimos oito anos, a questão palestino-israelense foi sempre uma questão de guerra, não de paz. Portanto, essa mesma lógica efetivou o cerco a Gaza por dezoito meses. Foi em plena vigência desse cerco desumano e covarde, que o acordo de cessar-fogo foi implementado. Durante esta trégua, cerca de 42 palestinos foram mortos pelas forças israelenses; o que na prática significa que, Israel tratou a questão da trégua sempre segundo suas conveniências. Mussa Abu Marzuk, porta-voz do Hamas em recente artigo disse, “a trégua fracassou porque Israel não abrirá as fronteiras de Gaza, porque Israel é antes um carcereiro que um vizinho e sua liderança intransigente monopoliza nosso destino (…), é evidente que haviam opções. Israel poderia ter abrandado há meses sua determinação criminosa de matar Gaza de fome, cortando a maior parte de seu combustível, sufocando o comércio e impedindo organizações humanitárias de entregar alimentos e remédios. Somente o observador mais cínico chamaria tal opressão de adesão de “boa-fé” à trégua.”

Na realidade, o cerco, com todas as conseqüências ao povo palestino, foi uma clara demonstração de que nunca houve uma trégua por parte de Israel. A exigência para que o Hamas parasse de lançar foguetes contra Israel em tais condições, soaria como ridícula se a lógica da política internacional se pautasse pelo direito natural e a decência. O modo como reagiram as potências ocidentais à ofensiva demonstra que não é assim. Por dezoito meses, os governos ocidentais ignoraram completamente a situação do povo palestino. Os relatórios das organizações humanitárias e de direitos humanos denunciando as condições de Gaza sob o tirânico cerco de Israel eram simplesmente desprezados.

Mesmo dentro de Israel vozes se levantavam contra o cerco. Amira Ras, jornalita do Haretz, afirmou sobre a situação: “Eu como judia digo, Gaza é um campo de extermínio”

O cerco a Gaza foi e continua a ser tolerado pelas potências ocidentais, o que imobiliza a ONU, por dois simples, e cruéis, motivos: Primeiro, o cerco é sempre suportável para quem não está nele. Segundo, mantém a esperança de que o Hamas perca o apoio popular e por fim, capitule. Assim, a política de “punição coletiva ao povo palestino” a qual Israel não pretende abandonar, pelo menos até a ofensiva iniciada a 27 de dezembro não despertou nenhum protesto efetivo na comunidade internacional.

Lamentavelmente, mesmo depois do massacre, dos crimes de guerra, das condições desumanas dos habitantes de Gaza serem plenamente conhecidas por todos, somente débeis pedidos são encaminhados a Israel para que levante o cerco.

A Ofensiva

A campanha militar, com a liderança do premiê Olmert, o Ministro da Defesa e líder do Partido Trabalhsita, Ehud Barak, e a ministra das Relações Exteriores, também candidata a premiê, Tzipi Livni, desde o início não escondia suas pretensões eleitorais. Seguia a mentalidade comum da política dominante em Israel: apostar na força e vender ao povo judeu a idéia de que a solução está na guerra; uma versão regional da mentalidade rasteira e criminosa da administração Bush.

O início da ofensiva marcou o início de uma guerra paralela: a guerra midiática. O governo israelense se preparou para esta tanto quanto o fez para a guerra militar. Um exército de porta-vozes, uma ação sistemática de embaixadores, a articulação com colaboradores na mídia ocidental e uma série de atividades na internet entraram em ação mesmo antes do primeiro bombardeio a Gaza.

Philip Knightley, correspondente de guerra do “Sunday Times” ao tratar da máquina midiática de Israel, ressalta o grande número de porta-vozes, todos bem treinados para falar bem e repetir as mesmas mensagens. E diz, “A repetição de modo profissional e sem recuo, acaba por fixar a idéia. Eles não param de dizer que “toda nação tem o direito de se defender”, “toda nação tem o direito de proteger seus cidadãos, estamos protegendo os nossos.” Ficam dizendo isso o tempo todo e as pessoas acabam por acreditar, como se tratasse apenas disso.”

Essencialmente, o discurso de Israel se apoiou na mesma e conhecida ladainha de argumentos que há décadas repete: uma interpretação muito particular do “direito de defesa” e a demonização dos “inimigos”. Estes dois pontos merecem uma análise mais cuidadosa.

O Direito de Defesa

O argumento simplista de Israel de um direito de defesa tem sido utilizado de forma abusiva. Não é questionável um direito natural de defesa a qualquer nação ou povo. O que é inaceitável é que em nome de um direito de defesa, Israel desconheça o direito internacional, se coloque acima dele, tome a iniciativa da agressão contra seus vizinhos e, sobretudo, assuma a doutrina paranóica da “guerra preventiva”. Qualquer pessoa pode perceber a irracionalidade desse princípio reinventado por Bush e que desgraçadamente arruína e desmoraliza o direito internacional. O que pensaríamos de uma pessoa que, supondo que seu vizinho representasse algum perigo para ela, se armasse, invadisse sua casa e o matasse com seus familiares? É óbvio que ninguém em sã consciência aceitaria isso. No entanto, o princípio de “guerra preventiva” é apresentado como justificativa sem despertar assombro.

A guerra midiática do governo de Israel desde o início se pautou nesse entendimento do direito de defesa. Seus porta-vozes se lançaram à mídia ocidental repetindo “que o Hamas havia rompido a trégua e, em resposta aos foguetes lançados era preciso defender o povo israelense”. Uma meia-verdade que como sabemos, é muito mais eficiente do que muitas mentiras.

O argumento primário de que “estamos nos defendendo” despertou o repúdio não só de pessoas ligadas às atividades humanitárias na região, mas também de vozes isoladas na mídia israelense. Poucos souberam e tiveram a coragem de tomar uma posição moralmente digna como Gideon Levy, jornalista judeu do Haretz, dizendo: “Qualquer um que justifique esta guerra também justifica todos os seus crimes, qualquer um que a vê como uma guerra defensiva deve assumir a responsabilidade moral por isso. Qualquer um que encoraja políticos e o exército a continuarem também terá que portar a marca de Caim que será impressa em sua testa. Os que apóiam a guerra também apóiam o horror”.

A Demonização do “Inimigo”

Com grande e maquiavélica eficiência o governo israelense travou a guerra midiática evocando outro sofisma: a demonização do “inimigo”. Não há nada de original nisso. Desde o início da chamada “guerra ao terror” conclamada por Bush após os atentados de 11 de setembro, Israel tem se empenhado em “associar” a causa palestina e o Hamas a uma “rede internacional de terrorismo islâmico.” Tenta provar, sem conseguir, uma suposta ligação entre o Hamas e a Al Qa’ida. De qualquer maneira, com considerável eficiência a Casa Branca e Israel sustentam o discurso de que o Hamas e o Hizbullah são entidades terroristas, ainda que os órgãos de direito internacional não aceitem essa definição. Em recente entrevista, Richard Falk, relator da Onu para a situação humanitária nos territórios palestinos, disse: “Israel e os EUA foram muito hábeis em induzir a União Européia a rotular o Hamas como organização terrorista. Isso minou qualquer ímpeto imparcial europeu.”

Contudo, a percepção da opinião pública mundial demonstrou no decorrer da brutal ofensiva israelense, uma relativa rejeição a esse argumento. Alguns orgãos da mídia ocidental curiosamente evitaram a referência ao Hamas como grupo terrorista. Israel não teve muito sucesso na sua guerra pela simpatia à sua “causa.” No decorrer de sua ação militar, de seus crimes de guerra e com a evidência da desproporção de forças, com a impossibilidade de esconder do mundo as cenas de civis mortos e desmembrados, os porta-vozes de Israel tiveram que recorrer a argumentos risíveis para sustentar sua posição. Ainda assim, o fanatismo sionista foi longe demais, ao ponto de chamar a atenção por sua paranóica disposição em dizer ao mundo que “vocês não estão vendo o que estão vendo.”

Cláudia Antunes, jornalista da Folha de S. Paulo em um de seus artigos comentou: “O governo israelense trata de enquadrar as críticas à ofensiva em Gaza na lógica totalizante de “guerra ao terror.” Se alguém condena a investida, chama a atenção para os mortos palestinos e teme as conseqüências, é acusado de relativismo, de apoiar o Hamas.”

Pois justamente a intenção de destruir qualquer legitimidade a causa palestina, reduzindo-a a uma “escalada de terror” foi o ponto que a própria ação israelense demoliu. A tentativa de vitimizar o povo israelense e justificar a ação, aos olhos do mundo foi desmascarada pela brutalidade da suposta “defesa”.

A interpretação enganosa do “direito de defesa” e a demonização do inimigo são dois pontos de uma investida ideológica maior do sionismo, também empregada pelos norte-americanos, a qual trataremos mais tarde.

A Ofensiva em Marcha

Iniciada a ofensiva, e naturalmente com o alto e sempre crescente número de vítimas civis do lado palestino, tornava-se evidente o descompasso entre a realidade e as justificativas de Israel. Mais do que isso, o descompasso entre as pautas frias e pretensamente “imparciais” da grande mídia, as reações tímidas do secretário-geral da ONU e as primeiras manifestações populares pelo mundo de repúdio à ação israelense. O governo israelense insistia nos “objetivos da ação”: “Tratava-se de uma ofensiva que visava destruir o potencial bélico do Hamas e os túneis de abastecimento de armas para que cessassem os lançamentos de foguetes contra Israel.”

Contudo, a flagrante desproporção entre as forças beligerantes e o absurdo excesso de força empregada por Israel, o que já se traduzia pelo alto número de vítimas civis, começou a despertar protestos em todo o mundo. Mesmo os sempre tão comedidos líderes das potências ocidentais, sempre tão “amigos” de Israel se viam forçados a “publicamente” manifestar um “certo mal-estar com a ofensiva israelense”. Ainda que no campo prático e efetivo em momento algum levantassem um dedo sequer para dissuadir o governo sionista.

Enquanto o Conselho de Segurança ensaiava uma reunião, Israel prosseguia em sua ofensiva. Sob o pretexto de combater os militantes do Hamas seguia um programa de destruição sistemática de toda estrutura de Gaza, tendo como alvos, além dos campos e bases do Hamas: postos e forças policiais (que são considerados por tratados internacionais, elementos neutros), autoridades de trânsito, a estrutura portuária, as universidades, os ministérios, o complexo presidencial, o Parlamento, as mesquitas, residências e escolas.

Miguel D’Escoto, presidente da assembléia geral da ONU, uma das primeiras vozes a abertamente condenar a ação israelense, após visitar áreas de Gaza, classificou a ofensiva de um genocídio em curso. Enquanto o Conselho de Segurança mantinha sua habitual indolência, os países não-alinhados já se posicionavam condenando a ação israelense, mesmo antes de vir a público as primeiras denúncias de crimes de guerra.

No Conselho de Segurança, uma condenação era sistematicamente vetada, ora porque o documento não citava as vítimas do lado israelense, ora porque segundo alguns era preciso condenar também os foguetes lançados pelo Hamas contra Israel. A administração Bush cumpria fielmente seu papel de blindar Israel contra qualquer medida coercitiva.

Depois de sucessivas reuniões infrutíferas o Conselho de Segurança aprovou uma “condenação formal a ação israelense”, com a abstenção dos EUA. A abstenção na verdade, foi uma aceitação tácita da ofensiva. Não como nas dúzias de vezes em que os EUA usaram de seu direito de veto para proteger os interesses de Israel, dessa vez, a abstenção num momento tão crítico soava quase como uma chacota. Os reiterados “pedidos” para um cessar-fogo bilateral cumpriam uma praxis retórica. Somente os EUA teriam o poder de parar Israel, e Bush não o faria. Ao contrário, no curso da ofensiva a Casa Branca prestaria apoio a Israel e discutiria uma ajuda no sentido de bloquear o envio de armas ao Hamas através da fronteira egípcia. Enquanto isso, a situação em Gaza se tornava caótica e desesperadora: hospitais à beira de um colapso funcional incapazes de atender o número assustador de feridos.

Richard Falk (relator da Onu), impedido de chegar à Cisjordânia, (foi detido por Israel e expulso do país), afirmava: “É uma das mais graves crises humanitárias da história recente. O pior é Israel impedir os civis de abandonarem Gaza, os israelenses estão utilizando armas sofisticadas, algumas delas ilegais. Israel também não provê suprimentos básicos e remédios, numa violação clara do direito humanitário internacional, o que representa um crime de guerra e contra a humanidade. Os responsáveis devem ser julgados”.

A acusação de Falk, na realidade, apontava uma das já antigas violações de Israel às leis internacionais: o não-cumprimento dos deveres estabelecidos de uma força de ocupação (saúde, educação, infra-estrutura, etc. dos territórios palestinos). Algo que só se explica pela fraqueza moral do Conselho de Segurança, que não vê como anormal que os territórios palestinos sejam sujeitos à humilhante condição de se manterem apenas e tão somente com as “esmolas” da ONU. E esta mesma fraqueza moral está entre as principais razões dos inúmeros crimes de guerra cometidos por Israel, que não se deteve nem mesmo de transformar as dependências da ONU em alvo de seus ataques.

Os Crimes de Guerra escreveram um capítulo sinistro à parte nessa ofensiva. Os ataques às escolas mantidas pela ONU foram um recado evidente do desprezo de Israel a qualquer acordo civilizado que entenda como um obstáculo a seus objetivos. Também demonstrou sua absoluta confiança na impunidade e na ineficácia dos tribunais internacionais. As alegações de Israel de que haveria militantes do Hamas nas dependências atacadas foram prontamente negadas pelos funcionários da ONU.

John Ging, diretor da agência humanitária da Onu aos refugiados palestinos, afirmou após o primeiro local atingido: “Estou convicto de que não havia atividade de militantes na escola. Se alguém tiver provas do contrário, que as apresente”.

Naturalmente, Israel não apresentou provas do que afirmava, porém, tentou forjá-las. Pouco depois do ataque, as forças israelenses enviaram e-mails com links de um vídeo que exibia palestinos lançando morteiros a partir de uma escola comandada pela Onu, porém, o arquivo era datado de outubro de 2007. Uma clara tentativa de ludibriar a cobertura midiática.

Ban Kin Moon, o secretário-geral do Onu , protagonizou um papel ridículo ao aceitar “desculpas” de Israel pelo primeiro ataque. Nos dias seguintes, outras três escolas foram alvejadas causando centenas de vítimas civis. Um documento divulgado pela Coordenação da Onu para Assuntos humanitários acusou as forças israelenses de terem orientado cerca de cem civis palestinos a se refugiarem numa casa, que foi bombardeada 24 horas mais tarde. A ação teria causado a morte de 30 pessoas. Pressionada pela opinião pública mundial, Tzipi Livni, ministra para as Relações Exteriores de Israel, respondia sobre o elevado número de crianças e mulheres entre as vítimas, dizendo “que tratavam-se de circunstâncias” e naturalmente, tentava culpar o Hamas, que segundo ela, utilizava civis como “escudos humanos” ou “os mantinha como reféns”. O que ela não dizia, e o mundo sabia muito bem, era que os cidadãos de Gaza não podiam sair de lá. De um lado, o poderoso exército israelense e do outro, as forças egípcias na fronteira impediam qualquer tentativa de fuga. Curiosamente, nenhuma rede de televisão, nenhum órgão de imprensa do mundo todo encontrou um único relato entre os palestinos sitiados em que sequer fosse citado alguma suposta “condição de refém”, ou seja, não se encontrou uma única pessoa em Gaza que dissesse que estava ali forçada pelo Hamas.

Ao terror da mortande em larga escala se somaram então as primeiras denúncias do uso de armamentos proibidos pelas convenções internacionais: bombas de fósforo, bombas de urânio empobrecido e de fragmentação. Os médicos que atendiam os feridos nos hospitais superlotados de Gaza constatavam estupefatos a chegada de pessoas com queimaduras horríveis de segundo e terceiro grau. Logo, funcionários da ONU e voluntários das organizações humanitárias começaram a denunciar a utilização de bombas de fósforo. Para a surpresa geral, Israel não se esforçou para negar as acusações. Com declarações de um cinismo inacreditável uma porta-voz do exército israelense reconheceu a utilização e acrescentou que “Israel já tinha utilizado aquele tipo de armamento no conflito contra o Hizbuallah” e que o fez porque todos os exércitos do mundo ocidental utilizam esses armamentos.” Assim, Israel apostava mais uma vez na incapacidade dos tribunais internacionais de efetivarem medidas punitivas ao seu estado. Infelizmente, não vejo como acreditar que algo diferente venha a acontecer.

Ao fim da ofensiva, algumas iniciativas e alguns processos foram abertos nos foros competentes na Europa. O governo israelense se apressou a declarar que “prestará toda proteção a seus funcionários e oficiais que porventura venham a ser indiciados.” Diante das críticas, nas semanas seguintes à ofensiva, Israel anunciou uma investigação interna “aos possíveis excessos cometidos”. Sabemos, desde Abu Ghraib, dos intermináveis “erros do bombardeio de residências de civis no Iraque e no Afeganistão, quais são os argumentos e as conclusões dessas investigações internas. O padrão norte-americano de “investigação” será naturalmente seguido por Israel.

Uma Negociação, Vários Interesses, O Cessar-fogo Unilateral

A ofensiva seguia seu curso brutal sem que surgisse no horizonte uma outra perspectiva. Israel dera início ao que chamou de “segunda fase da operação”, uma ofensiva terrestre. Em poucos dias, o número de vítimas palestinas se avolumava. O poder de fogo limitadíssimo do Hamas dava uma dimensão real da desproporção do conflito. As reuniões infrutíferas, a troca de acusações entre a ONU e o governo israelense, a parcialidade declarada das potências européias, a já costumeira pusilanimidade dos governos árabes formavam um desfile de atitudes abjetas que retratam fielmente a realidade do mundo atual. A pergunta de uma mulher palestina que chorava diante dos corpos de seus familiares era a única coisa que fazia sentido naquele momento: “Por que o sangue dos palestinos não vale nada?”

Os governos árabes ensaiavam uma “reavaliação” das relações com Israel. A Arábia Saudita vetou uma moção apresentada pelo Irã que propunha um boicote petrolífero ao ocidente. Dentre todos os governos do mundo, apenas dois foram além de uma “condenação da ação de Israel”: O presidente da Venezuela, Hugo Chaves expulsou o embaixador de Israel, classificando de “criminosa a ofensiva”; dois dias depois o Presidente Evo Morales da Bolívia fez o mesmo. Nenhum dos países árabes ou islâmicos que mantêm relações com Israel, sequer cogitou em seguir o exemplo. O governo brasileiro adotou oficialmente uma posição de composição para o entendimento, sem uma condenação clara a ofensiva. Ao meu ver, um equívoco político. Não ver que não se tratava de uma guerra clássica entre dois estados e dois exércitos, dentro das leis e convenções de guerra, apenas para não parecer estar tomando partido do povo palestino é uma posição desprovida de seriedade, típica do Sr. Luís Inácio. O que não evitou que o assessor internacional da presidência, Marco Antônio Garcia, inicialmente condenasse a ofensiva israelense que classificou como “brutalidade” chegando mesmo a acusar Israel de “terrorismo de estado”. Definiu sua opinião dizendo: “Por que quando um militante do Hamas explode dez civis com uma bomba na cintura é terrorismo e quando há um bombardeio israelense numa escola e mata “x” crianças não é? Ambos são terrorismo. Um civil, outro, de estado.” Em seguida, pressionado por setores da imprensa tentou se explicar dizendo que se tratava de uma “opinião pessoal”, frisando que estava em consonância com a posição oficial da diplomacia brasileira de “defesa intransigente da existência do estado de Israel.”

As negociações para um cessar-fogo rapidamente se tornavam uma tentativa de acomodação aos interesses de Israel: minar o direito palestino de resistência impedindo o fluxo de armas ao Hamas passou a ser o principal objetivo dos negociadores europeus e dos EUA. Uma proposta de cessar-fogo, aprovada sem a participação do Hamas, foi apresentada no Cairo. Ambas as partes a recusaram. De qualquer modo, negociação significaria “ter de aceitar condições”, “ceder algo”. Assim, Israel viu ser conveniente um cessar-fogo unilateral que naturalmente, o isentaria de qualquer condição contrária a seus interesses.

Depois de vinte e dois dias de ofensiva, com o saldo de cerca de 1300 mortos palestinos, a maioria civis, 6000 feridos, 14 mortos do lado israelense (apenas 3 civis), Israel anunciava o fim da ação. Deixava para trás um rastro de destruição e uma mancha de vergonha para os poderosos do mundo, que dificilmente pode ser apagado.

Israel sabia que não tinha alcançado seus objetivos imediatos. Encerrava a ofensiva no último dia da administração Bush quase como a dizer que “aproveitou a oportunidade desses oito anos até o último minuto.”

O resumo do que ocorreu nesses 22 dias é muito bem apresentado por R. Cohen, colunista do N.Y. Times, que não pode ser acusado de apoio aos palestinos: “Nunca me senti tão deprimido em relação à Israel, tão envergonhado por suas ações, tão desesperado por algum acordo de paz que pusesse fim ao domínio dos mortos em favor de uma oportunidade para os vivos.”

Ao fim da ofensiva, os governantes da União Européia se apressaram a prestar apoio a Israel, se reunindo num jantar com Olmert. Poucos dias depois, Shimon Perez foi aplaudido ao discursar em Davos para uma platéia de estadistas e grandes homens de negócio. O primeiro-ministro turco, ao protestar e tentar responder as inverdades proferidas por Perez, foi impedido de continuar seu discurso e se retirou em protesto.

Parte 2

Nesta segunda parte, tratarei de uma série de questões que são suscitadas pelo conflito palestino-isralense e que devem ser consideradas com profundidade. Um importante fator para o agravamento do problema e, sobretudo, para sua perpetuação reside no trato superficial dessas questões. Falsas concepções da natureza e da razão do conflito permitem que aqueles que trabalham para inviabilizar a criação do estado palestino continuem a enganar a opinião pública, a imprensa e mesmo alguns intelectuais.

O Papel da Mídia no Conflito

A ausência de uma visão crítica dos entraves para a paz auxilia grandemente os que não a querem. É exatamente neste ponto que o papel da mídia deve ser ressaltado. A superficialidade e o recurso ao maniqueísmo mais elementar caracterizam de modo geral a abordagem midiática do conflito palestino-israelense e num âmbito maior, o choque civilizatório entre ocidente e oriente.

Especificamente durante a ofensiva israelense a Gaza o comportamento da mídia ocidental oscilou desde a adesão inicial às “razões” de Israel até a adesão tardia e aparente à comoção internacional despertada pelo sofrimento do povo palestino. Naturalmente, houve setores midiáticos abertamente pró-Israel, como a Fox News que na voz de seu comentarista Steve Emerson, definiu a cobertura dizendo: “A questão não é mostrar os dois lados, mas sim o lado certo.” O lado certo, segundo a Fox, era Israel. Para tais setores, como a revista de maior circulação no Brasil, não havia dúvida: a culpa era do Hamas.

O “mostrar os dois lados” parece ter sido a tendência dominante em amplos setores da mídia ocidental e especificamente da brasileira. Enquadrar e reduzir um conflito com tais particularidades numa abordagem simplista e supostamente “imparcial.” A primeira dificuldade nesse caso é igualar o espaço de uma poderosa e eficiente máquina midiática de guerra (do Estado de Israel) com a voz isolada, marginalizada (pela própria mídia) dos porta-vozes do Hamas. Contudo, o problema é muito maior e tem uma dimensão moral.

Guardadas as devidas proporções, imaginemos a tomada de decisão para uma cobertura imparcial do cerco ao gueto de Varsóvia, quem consideraria moral uma posição imparcial?

A ofensiva israelense, com uma poderosíssima máquina de guerra não se fez contra um exército num campo de batalha. A desproporção de forças e de baixas nos dois lados tornava a tentativa de imparcialidade na análise, ou de comparação entre o sofrimento das vítimas palestinas e israelenses um exercício de cinismo. Essa suposta “imparcialidade” não evitou que grande parte da mídia brasileira cumprisse (consciente ou inconscientemente) o papel de “porta-voz” de Israel nos primeiros dias da ofensiva, divulgando repetidamente que “o cessar-fogo tinha sido rompido pelo Hamas”, o que naturalmente “justificava’” a ofensiva.

Ouviu-se também muitas vezes a afirmação de que “os dois lados estavam cometendo crimes de guerra”. Não entrando no mérito do quanto essa afirmação poderia ser verdadeira e supondo que a resistência palestina se enquadrava nessa acusação, a dimensão das atrocidades das forças israelenses amplamente conhecidas superava em muito qualquer coisa que o Hamas pudesse fazer. A verdade é que, os tribunais de direitos humanos estão buscando meios jurídicos para julgar o Estado de Israel e não o Hamas. A responsabilidade atribuída a um “estado” nunca será comparada à atribuída a um grupo de indivíduos.

A questão que se levanta é: a mídia ocidental é capaz de uma cobertura honesta e crítica desse conflito? Uma cobertura honesta, dentro de todas as limitações e pressões é possível. Contudo, uma cobertura crítica é quase impossível. Primeiro, porque a grande mídia sistematicamente abdica desse princípio, e isso vale para todos os problemas políticos ou econômicos que aborda. A espetacularização das notícias, a repetição de clichês e idéias predominantes, isto é, o receio de destoar do pensamento dominante, estes são apenas alguns dos sintomas que demonstram que a grande mídia está dissociada da capacidade crítica. Segundo, porque na abordagem da questão palestino -israelense e de modo mais amplo, do conflito civilizatório ocidente-oriente, a grande mídia do ocidente gravita em torno de uma lógica pré-estabelecida que determina as premissas para as conclusões. Esta lógica “legitima” a intervenção americana no Oriente Médio pela simples razão que “se trata de uma luta entre a civilização e a barbárie”, “a modernidade e o atraso” e, para os mais “fundamentalistas do ocidente”, uma luta entre o bem e o mal. Toda a mídia ocidental, quer seja a mais adesista ao americanismo, ou eurocêntrica, ou a mais “neutra” ou crítica, gravita nesse poderoso campo ideológico. Dentro desse campo ideológico uma visão crítica, independente, capaz de romper com o pensamento dominante e por fim, chegar às próprias conclusões, se torna quase impossível. Por isso, questões como, “Por que o Hamas não pode ser armado por seus colaboradores do oriente e Israel pode ser armado por seus aliados ocidentais?” “Por que o Irã não pode ter um programa nuclear que, até que provem o contrário, tem fins pacíficos, e Israel pôde se tornar a única potência nuclear do oriente médio?” Ou ainda, “Por que o Estado de Israel dependeu apenas da aprovação das nações para existir enquanto o estado palestino depende da concordância de Israel para vir a existir?” “Por que se concede o “direito” ao governo americano e a Israel de determinar quem é terrorista e quem não é, ou qual estado compõe ou não um suposto “Eixo do Mal”?” São todas questões desconcertantes para a mídia e o pensamento dominante nos governos ocidentais.

No caso específico do conflito palestino-israelense grande parte da mídia comete o erro fundamental, que inviabiliza qualquer análise realmente crítica: o de aceitar a classificação americano-israelense do Hamas como sendo um agente do terror internacional, pondo em cheque a própria legitimidade da causa palestina.

Por todas essas razões pudemos verificar em muitos setores da grande mídia uma espécie de “auto-censura”. Um detestável consenso em torno da imparcialidade, mesmo quando os fatos conspiravam e destruíam a base moral para esse posicionamento. Tal como ocorreu na invasão ao Iraque, a mídia ocidental se comportou de modo muito subserviente aos “donos da guerra”. Pouco protestou contra os desmandos cometidos contra o próprio direito de imprensa. A proibição de correspondentes estrangeiros em Gaza foi via de regra, aceita como “normal”. Sobre esta proibição, o jornalista Philip Knightley comentou, “Eles estão fazendo coisas terríveis lá. Uma enorme máquina militar num pequeno espaço confinado contra inimigos com armas leves misturados a uma população civil sem lugar para fugir ou encontrar abrigo, Os israelenses sabiam desde o começo que se todo o horror da guerra fosse mostrado em horário nobre, especialmente nos EUA, eles teriam perdido sua causa.”

Com muita freqüência, orgãos da grande mídia argumentam que não seria ético veicular imagens de cadáveres vítimas da guerra, o que segundo eles chocaria por demais a opinião pública e que, de certo modo funcionaria como uma espécie de “propaganda” a um dos lados do conflito, (no caso dos palestinos) comprometendo a imparcialidade da cobertura. Estes mesmos orgãos da “imprensa livre do ocidente” não tiveram tais escrúpulos quando cobriram a agressão ao Líbano com seus correspondentes em Tel’Aviv mostrando mais os feridos do lado judeu pelos foguetes do Hizbuallah do que a destruição e a morte no território libanês. Há décadas veiculam cenas de cadáveres supostamente judeus sendo arrastados para valas comuns nos campos de extermínio nazista e não vêem isso como uma espécie de “propaganda da causa sionista.”

O Debate Ideológico Desviando o Foco da Questão Essencial

No decorrer dos vinte e dois dias da ofensiva, em meio a “guerra midiática” e o jogo diplomático incapaz de superar as próprias contradições, reacendeu-se o debate em torno da questão palestino-israelense. Diante das reações mundiais contra a ofensiva, analistas, intelectuais, jornalistas e todos os que de um modo ou de outro apóiam Israel inteligentemente tentaram desviar a atenção da questão essencial, ou seja, “o estabelecimento do direito do povo palestino” para um debate puramente ideológico. A intenção evidente de confundir a opinião pública, “justificando” a ofensiva e ao mesmo tempo, repetir a mesma retórica sionista levando o debate para uma área que impedisse o questionamento sério sobre a única questão relevante para a construção da paz na região. O debate ideológico assumiu um espaço que deveria ser ocupado por uma discussão prática sobre os meios de se construir o estado palestino e de como eliminar os entraves para isso.

Os defensores intransigentes de Israel que pululam nas agências de notícias e nas redações dos jornais norte-americanos, europeus e brasileiros ao conduzir a discussão para a “demonização do Islam” ou “o terrorismo internacional a ser combatido” se esquecem de que não é o Islam que está em questão, e mesmo se fosse o caso, não seriam eles que teriam qualquer autoridade moral ou credibilidade para julgar, o que está em questão é: a justa reivindicação de um povo por um estado soberano e livre, com fronteiras estabelecidas a serem respeitadas. Não há nenhuma relação entre o estabelecimento do estado palestino e a existência ou não do Hamas ou de outros grupos de resistência. Ou seja, o cumprimento da resolução aprovada para a criação do estado palestino não pode depender da não-existência de movimentos radicais. Esta relação é uma criação fantasiosa dos que estão empenhados em impedir a criação do estado palestino.

A retórica estratégica para indispor a opinião pública em relação à causa palestina não se apóia em argumentos lógicos ou na realidade, pois compõe o mesmo e bem conhecido discurso fanático do sionismo. Os “fundamentalistas do sionismo” construíram sua influência no ocidente e em meio a comunidade judaica repetindo sofismas, não se envergonhando de mentir e distorcer os fatos. Têm sido na Europa e nos EUA a vanguarda da “cruzada islamofóbica” e de modo oportunista tentam por em descrédito a legitimidade da causa palestina. No contexto desse discurso fanático sionista é que Israel busca justificar suas políticas.

Para continuar a ignorar e afrontar as leis, o direito e as convenções internacionais, Israel recorre ao “direito de defesa” e ao que chamam de “medo da aniquilação.” Argumentam que o estado de Israel somente sobreviveu porque jamais deu ouvidos à opinião do mundo sobre seus assuntos de defesa. Evocam o suposto holocausto judeu, as perseguições e os progroms na Europa como ameaças as quais o estado sionista tem o dever de defender Israel. O direito de Israel não retira o direito do mundo de não acatar tal argumentação. E aí reside o dilema que a comunidade das nações deve resolver: Continuará permitindo que um estado passe por cima das decisões de todo o resto das nações e somente acate o que lhe convém?

Das várias resoluções da ONU sobre o território palestino-israelense, Israel só aceitou a de 1947 que o criou como estado, todas as demais foram absolutamente ignoradas. Em nome dessa “propaganda do medo” os sionistas não só seduzem a opinião pública interna granjeando o apoio majoritário para as agressões a seus vizinhos, como também se apresentam ao resto do mundo como “uma nação ameaçada”. Stalin na antiga União Soviética, Hitler na Alemanha, os Césares na Roma antiga, os ditadores latino-americanos e muitos outros opressores e criminosos sempre adotaram “a sombra da ameaça” com o mesmo intuito.

Uma Perspectiva de Paz?

O cessar-fogo unilateral de Israel em Gaza ocorre na véspera do início do mandato presidencial de Barak Obama nos EUA. Analistas políticos do mundo inteiro afirmam-se esperançosos numa mudança substancial nas relações internacionais dos EUA na região. Não obstante, o democrata Barak Obama durante sua campanha reiterou que “não se alterariam as relações históricas do EUA e Israel”. Até que ponto a política internacional da Casa Branca se modificará daquela adotada pela administração Bush só o tempo dirá. Uma perspectiva de paz efetiva na Palestina ainda é algo muito distante.

A ofensiva demonstrou a fragilidade da vontade política de todas as partes que assumiram a missão de construir a paz. Ainda que esteja claro para todos que a construção da paz depende do estabelecimento de um estado palestino soberano são os que não o querem que dão cartas no jogo político do Oriente Médio. Por essa razão, comete-se um erro crasso, e Barak Obama inicia seu governo repetindo-o: ao se dispor a iniciar novas negociações, mantém a recusa de negociar diretamente com o Hamas, que querendo ou não as potências ocidentais, é o único representante com verdadeiro apoio do povo palestino.

A ofensiva israelense demonstrou mais uma vez que não há uma saída militar possível. O uso e o abuso da força, um apelo fácil para quem a possui, só pode construir a paz dos cemitérios. Os que acreditam na guerra como solução são os que não desejam o estado palestino e por isso desprezam uma política para a paz. São os que estão empenhados em acirrar os ânimos do ocidente contra o Irã, utilizando os mesmos meios que levaram à invasão do Iraque.

Uma saída política requer a negociação e esta, para que seja efetiva na Palestina, exigirá que se reconheça o Hamas como interlocutor. Do contrário, estarão todos fadados a repetir os mesmos erros e a ficarem reféns da lógica sionista, para a qual o estado palestino não é relevante e a própria paz não é relevante.

A lógica sionista não trabalha com uma perspectiva da paz. O recado subliminar do muro, por exemplo, é: “Não precisamos da paz, podemos passar muito bem sem ela.” É dentro dessa lógica de “estado permanente de reação à ameaça” é que funciona o processo político dominante em Israel. Naturalmente, se a paz não é uma prioridade para o estado israelense se torna possível implementar uma política intransigente que nunca estará disposta a ceder. Os que se dispõem a arbitrar negociações de paz entre palestinos e israelenses conhecem perfeitamente bem a posição irredutível de Israel de:

1. Não aceitar o retorno dos palestinos refugiados.
2. Não aceitar uma capital compartilhada (Jerusalém) com um futuro estado palestino.
3. Não aceitar um estado palestino soberano, dentro da concepção moderna de estado com um exército regular.

Ainda que se disponha a negociar a devolução parcial de territórios palestinos ocupados. A política dos sucessivos governos jamais impediu uma crescente e massiva colonização judaica e a formação de novos assentamentos. Recentemente, o jornal Haritz publicou um relatório do Ministério de Defesa de Israel em que se reconhece que 30 assentamentos, inclusive boa parte dos formados nos últimos anos, foram criados em terras ilegalmente tomadas dos palestinos. Desde as negociações em Oslo, Israel intensificou a política de assentamentos e nunca escondeu o fato. A construção do “muro da vergonha” simplesmente oficializou a assimilação de terras férteis dos palestinos. Não acredito que alguém roube algo com a intenção de devolver.

Como se vê, o longo caminho para um acordo justo e para a construção da paz na região é mais como uma miragem que tem sustentado a duvidosa vontade política das potências ocidentais nesse sentido. Por trás da intransigente rejeição ao Hamas e da escolha do Fatah como interlocutor, está a intenção de estabelecer uma agenda de compromissos em que aos palestinos não reste senão a alternativa de aceitar a vontade de Israel e do Ocidente.

O cerco à Gaza não é o único. Em certa medida, o cerco faz parte de um outro muito maior, no qual todos estamos: o cerco de uma lógica brutal que promove a guerra e que representa o fracasso da política.

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