O Islam e o Auto-Conhecimento

Autoria de Ahmed Ismail

O Islam estabelece a busca do autoconhecimento como um princípio geral e uma meta a ser alcançada pela criatura humana. O conjunto de seus preceitos e leis fornece os elementos básicos para a realização dessa meta, que é entendida como um alto estágio de consciência, não-restrita ao aspecto individual. De fato, o sentido dado pelo Islam ao autoconhecimento difere bastante das muitas conotações dadas a este pela maioria das escolas do pensamento ocidental.

Devido ao seu pragmatismo, para algumas destas correntes filosóficas as vias do autoconhecimento se baseiam na mera especulação sobre os aspectos perceptíveis da realidade e do comportamento humano. De modo geral, a concepção de autoconhecimento segundo essas escolas filosóficas, corresponde a consciência individual sem considerar qualquer elo que possa existir entre a criatura humana e o mundo que o rodeia. O Islam por sua vez, aborda o autoconhecimento partindo da realidade objetiva da existência, ou seja, nenhum autoconhecimento real é possível se não se considerar prioritariamente as origens e as relações do homem e o mundo em que vive. Portanto, esse processo de autoconhecimento trata a questão em níveis distintos segundo os parâmetros que o Alcorão apresenta e destaca como essenciais para o homem.

Em primeiro lugar, o Alcorão afirma o Tawhid (Unidade divina) como a origem e a pré-existência de toda vida. Ressalta que o reconhecimento de que nenhuma existência ou forma de vida é isolada no universo e conseqüentemente chama a atenção do homem para sua origem. Estas duas premissas situam a criatura humana no que se refere a sua posição no cosmos, dando a correta medida para qualquer análise sobre si.

Diz o Alcorão:

“Ó humano, o que te fez negligente em relação ao teu senhor, o munificente que te criou, te formou, te aperfeiçoou e te modelou na forma que lhe aprouve?” (C.72 – V.6 a 8)

Os versículos citados declaram a origem do homem com a implicação de um propósito especial e a abordagem alcorânica expressa a importância do reconhecimento correto por parte das criaturas quanto a origem de sua existência como a materialização da vontade divina. Este ponto é especialmente relevante para o autoconhecimento, uma vez que define esse caráter de propósito na existência e por si só livra o homem de suas falsas concepções sobre a questão, concepções que o alienam da realidade objetiva do universo e que geraram diversas filosofias materialistas que pretendiam atribuir a existência ao acaso.

Com efeito, a fragilidade de tais teorias torna-se evidente quando atentamos para a existência do homem e do universo e a razão só nos aponta 3 possibilidades: a primeira é absolutamente insustentável, que a criação tenha sido obra do acaso; a segunda é que o homem tenha criado a si mesmo (esta é tão absurda quanto a primeira), a terceira é a aceitação que a origem do homem e do universo seja obra de uma consciência e força transcendente e superior, que nos parece a única aceitável desde que coisa alguma surge do nada e que o homem não pode ter sido o autor de sua própria existência.

Portanto, o Alcorão conclama o homem a meditar sobre sua origem como ponto de partida para que analise sua própria existência: “Que o homem considere, pois, do que foi criado! Foi criado de uma gota ejaculada…” (C.86 – V.6 a 8)

Assim, é apresentado ao homem o fato de que Seu Criador é o agente ativo de toda vida, capaz de dar origem e ordenar o desenvolvimento de toda existência. Ao meditar sobre esse aspecto da realidade, o homem é levado a reconhecer sua verdadeira posição no cosmos: um fio no imenso tecido da criação e esta perspectiva é essencial na busca do autoconhecimento.

Um segundo fato apresentado como base para que o homem adquira um perfeito conhecimento de si próprio, é o seu status dentre as demais criaturas, o alto propósito de sua criação o qual é uma determinação divina. A Khilafa ilahyyah (Representação de Allah na terra), um encargo que envolve tanto as várias características e potencialidades distintivas do homem quanto a responsabilidade pessoal e para com o mundo que o cerca.

Este segundo fato também nos chama a atenção sobre a dignidade intrínseca da criatura humana, diz o Alcorão:

“Pela alma e por quem a aperfeiçoou e lhe imprimiu o discernimento entre o bem e o mal, será venturoso quem a purificar e será desventurado quem a corromper”. (C.91 – V.7 a 10)

O termo dassaha aqui traduzido como corromper tem a conotação de encobrir, ocultar, do que se deduz que a alma humana possui uma natureza originalmente pura e brilhante que através do pecado se torna obscura. Logo, isso nos remete a essa dignidade original do homem acrescida da faculdade do discernimento que pode guiá-lo para o cumprimento de suas responsabilidades fundamentais. Adquirir a correta compreensão desse fato capacita o homem a libertar-se de outros aspectos deletérios das falsas doutrinas materialistas que buscam reduzi-lo a uma criatura vil, fadada a viver como um animal, apenas para a satisfação de seus sentidos e paixões básicas. Essas falsas concepções sobre a natureza humana estão no cerne de todos os desequilíbrios comportamentais das sociedades modernas. Enquanto a criatura humana se mantenha alienada da compreensão de sua verdadeira posição de dignidade original também estará à mercê de tudo aquilo que corrompe sua natureza.

Assim, o Islam estabelece como uma primordial tomada de consciência estes dois fatos acerca da criatura humana e então, a partir deles, o homem está apto a buscar o autoconhecimento conquanto que os mantenha como base para uma análise de si próprio, de seu modo de viver, pensar e agir. De outro modo, a especulação sobre o comportamento e os traços de personalidade não o levarão ao autoconhecimento.

Sobre esse ponto é incontestável que as escolas filosóficas que não partem da aceitação desses aspectos transcendentes contribuíram para aumentar a perplexidade do homem diante da vida. O homem moderno atado ao pensamento cartesiano ou envolvido pelo materialismo ou pela visão existencialista não pode afirmar-se conhecedor de si próprio. Na verdade, todos os sintomas evidentes nas sociedades modernas nos levam a constatação que o homem jamais se viu em tamanha desorientação sobre si mesmo. Seu estilo de vida poderia ser definido como “uma loucura sob controle”. A despeito das muitas conquistas do intelecto, a dimensão irracional irrompe em proporções jamais verificadas nas sociedades primitivas. Isso é o bastante para constatarmos que o pensamento moderno sobre o homem e sua natureza não só o limita como também o sufoca, porque parte de falsas premissas que negam a realidade objetiva da condição humana inter-relacionada ao todo e ligada a Deus seu Criador e mantenedor de todas as formas de vida.

O Islam, portanto, declara que o verdadeiro autoconhecimento é uma tomada de consciência desses dois fatos essenciais. O dizer atribuído ao Profeta (SAAS): “Aquele que conhece a si mesmo conhece a seu Senhor” de certa forma sintetiza este estágio de consciência da criatura sobre sua natureza e origem.

Um segundo nível ou diretriz para a busca do autoconhecimento consiste no conjunto de afirmações alcorânicas relativas a natureza e o perfil psicológico geral da criatura humana. O Alcorão cita certas características psicológicas e comportamentais presentes no homem que desde que sejam consideradas com atenção, proporcionam uma orientação segura em direção a esse objetivo. O Alcorão, por exemplo, nos alerta em alguns versículos sobre a forte inclinação da criatura humana para o acúmulo de bens, em outros chama nossa atenção para o fato de que quando o humano encontra a bonança e o bem estar inclina-se para a soberbia e para o esquecimento dos favores divinos. Estas e outras afirmações sobre o perfil psicológico e comportamental do homem servem como marcos para uma análise pessoal e para que o indivíduo identifique em si o grau e a intensidade que estas características se fazem presentes; este estágio de ciência sobre sua própria natureza abre a possibilidade de uma ação positiva sobre sua própria vida.

Enquanto um homem ignore os dois níveis do autoconhecimento aqui apresentados (com referência a sua origem e propósito de sua existência e com referência as características gerais do comportamento e da psicologia humana) nada que ele faça e nenhuma escolha com respeito a si próprio contará com qualquer garantia de que seja um bem. Ao contrário, a probabilidade de que suas escolhas e ações estejam a contribuir para o seu mal será sem dúvida muito maior.

Essa condição se assemelha a de um viajante perdido numa floresta, desprovido de qualquer conhecimento prático ou mesmo uma bússola para auxiliá-lo a sair dali. Ora, em tal situação todos os seus passos numa ou noutra direção são absolutamente incertos, ao escolher uma ou outra direção ele pode estar agravando seu estado; seu esforço inconsciente pode estar conduzindo-o a um mal ainda maior.

Na realidade, o autoconhecimento sobre as bases e diretrizes do din tem sua razão de ser exatamente nesta orientação, que torna disponível à criatura humana os elementos para que suas ações e escolhas se tornem conscientes, e mais do que isso: que estando ciente do melhor faça as escolhas e realize as ações que o conduzam em direção a uma libertação.

Contudo, é preciso salientar que quando estamos a dizer “o melhor” não o fazemos senão segundo a perspectiva do din, a perspectiva da transcendência não a perspectiva restrita, limitada ao alcance sensorial do homem, a qual o levou a forjar teorias materialistas e o afastou da realidade objetiva espiritual.

O discernimento correto entre estas duas perspectivas distintas reside na aceitação da Orientação Divina que define o MELHOR como a recompensa e a bem-aventurança no Akhirah (eternidade). Logo, todas as ações e escolhas que contribuam para isso constituem o melhor e o bem para si mesmo, e todas as ações e escolhas que ponham em risco ou arruínem esta meta constituem o pior e o mal para si mesmo.

Também nessa perspectiva transcendente se encontra lugar para uma busca do melhor nesta existência pelo exercício da razão, e o melhor neste caso, são as ações e escolhas que promovam o bem estar sob a condição de que não acarretem em ruína no Akhirah (eternidade).

Desse modo, o fiel muçulmano como qualquer pessoa busca o bem estar material. Ele não se retira do mundo como um asceta, porém, adota a orientação divina na condução de suas ações e escolhas para assegurar-se de que os meios de seu bem estar mundano sejam lícitos e justos, e que nada disso o conduza a ruína espiritual nesta vida e na vida futura.

A segunda perspectiva (materialista, irreligiosa) julga o “melhor” como sendo o bem estar e a satisfação o mais imediata e palpável possível. As ações e as escolhas que concorram para a realização destes objetivos são consideradas boas não importando se são lícitas (perante Allah) ou justas, se conduzirão à ruína na vida futura ou não, se lesam os direitos alheios ou não. Conseqüentemente, os seus padrões e critérios do “melhor” são similares aos passos do homem perdido na floresta, sem bússola e sem conhecimento prático para sair dali: suas ações e escolhas tem a forte probabilidade de conduzi-lo para um mal irreversível. E esta é a condição predominante entre os seres humanos.

Um terceiro nível em que a busca do autoconhecimento é possível, trata-se da análise do comportamento tomando por base de comparação os preceitos do din. Este terceiro nível requer uma constante atenção e uma meditação diária sobre as intenções e as inclinações pessoais buscando sempre interpretá-las a fim de determinar suas razões e origens. Imam Ali (AS) abordando essa importante determinação disse: “Seja vosso próprio juiz. Pois os outros têm seus próprios juízes”. O Imam dos crentes (AS) alerta-nos para a viciosa inclinação a concentrar nossa atenção nas eventuais imperfeições alheias, quando objetivamente apenas a “nossa condição” é relevante e decisiva para o nosso êxito ou para a nossa ruína, seja nesta ou na vida futura. Mas, o que há por trás dessa atitude?

Para responder a essa pergunta é preciso que se perceba que o autoconhecimento exige da criatura humana uma sincera determinação ao melhoramento, o que implica em uma honesta percepção de si próprio, um fiel reconhecimento de suas limitações e imperfeições e então um esforço constante para o crescimento.

Todavia, cada uma dessas exigências depara-se com fortes obstáculos. A criatura humana tende a se condicionar a tudo o que satisfaz seus caprichos, investe grande parte do seu esforço em alimentar as inclinações que lhe pareçam convenientes e que protejam seus interesses. Esse perfil psicológico de auto-afirmação resiste a tudo que possa contradizê-lo, portanto, quase como uma atitude inconsciente rejeitamos o autoconhecimento. Nosso ego reage imputando a imperfeição e o erro aos outros. Os sábios da gnose islâmica (îrfán) definem esse padrão comportamental como uma “infância da alma”, um estado sistemático de ignorância que resiste à necessidade de auto-análise e de um autêntico aprendizado espiritual.

Em oposição a isso se encontra a Religião; em todos os seus preceitos e leis está impresso o caráter de substituição desse padrão comportamental e psicológico e a adoção de uma atitude positiva sobre si mesmo: a busca do autoconhecimento. Assim, o Islam nos ensina que, a menos que a atitude egocêntrica seja abandonada, permaneceremos na condição de algozes de nossas próprias vidas, nossas ações e escolhas e nosso próprio livre-arbítrio concorrerão para o nosso mal invariavelmente. Em semelhante estado sejam quais forem os benefícios, estarão fadados a tornarem-se fontes de aflições.

Em razão disso, há uma ênfase muito especial no empenho para o autoconhecimento. Se um homem não se conhece, se permanece um estranho para si mesmo, se não conhece sua origem, se ignora o propósito de sua existência e se não se torna capaz de olhar para si próprio e reconhecer suas qualidades e defeitos, como poderá saber o que é realmente bom para ele? E sem que o saiba, como poderá buscar ou estabelecer qualquer meta nesse sentido? Mantida a atitude egocêntrica esse homem é na verdade um inimigo para si mesmo, os benefícios da orientação divina jamais o alcançam, exceto na medida em que seu coração se incline na direção contrária.

Como vemos, o autoconhecimento tal como o Islam nos dá a entender, possui um vasto e complexo campo de ação que abrange não apenas nossos traços de personalidade, não se limita àquilo que a razão possa identificar e avaliar, não se restringe a uma simples constatação de nossos condicionamentos. Sua abrangência leva-nos a uma compreensão real quanto a nossa existência e natureza e um crescimento qualitativo em nossa condição humana.

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