Reflexão e Percepção – Métodos da Filosofia e da Gnose Islâmica

Por: Ahmed Ismail

Reflexão e percepção, no contexto da filosofia e da gnose islâmica, constituem as ferramentas essenciais no exame da natureza da existência e de seus fenômenos, em vista do fato de que as questões que estas duas áreas do conhecimento pesquisam não são acessíveis ao processo empírico adotado pela ciência.

De modo particular entre os xiitas, a filosofia manteve-se como área do conhecimento por excelência, e não cessou de desenvolver-se. Ao contrário da lamentável decadência e abandono verificado no mundo islâmico sunita, que após quatro séculos de vigor do pensamento cedeu a uma visão literalista e intolerante (a qual é apontada por muitos historiadores como um dos principais fatores para a decadência intelectual da civilização islâmica). Os xiitas a seu turno, firmes aos seus métodos tradicionais de debate orais e pesquisas cultivaram a filosofia e a gnose tal como foram apresentadas pelos próprios imames, antes mesmo que o mundo árabe tivesse contato com a filosofia grega no segundo século da Hijra.

Na verdade o pensamento filosófico e pensamento gnóstico estão presentes de forma magnífica nos ensinamentos do Imam Ali; e estes conhecimentos permaneceram vivos e preservados na linhagem dos Ahlul Bait.

Se fora do âmbito xiita foi possível surgir uma oposição a filosofia que pôde declará-la mesmo “contrária a palavra revelada”, entre os xiitas essa polêmica jamais existiu, o que possibilitou que no decorrer dos tempos surgissem homens da estatura intelectual de Khawája Idin al Tússi, Sadr Al Mutaahhilin, Mullah Sadra e Imam Khomeini (que deixou importantes obras sobre filosofia e gnose).

Na verdade, a oposição dos literalistas não se apresenta como uma argumentação consistente sob o ponto de vista estritamente islâmico. O Alcorão propõe dois métodos essenciais de busca do conhecimento: O EXERCÍCIO DO INTELECTO (MEDITAÇÃO E REFLEXÃO) e A ANÁLISE (O PENSAMENTO ANALÍTICO) deixando-nos como dedução lógica que os aspectos exotéricos da realidade espiritual podem ser compreendidos pelo homem por intermédio da aplicação desses métodos.

Ou seja, a reflexão é um direito e mesmo um dever do homem, não havendo portanto contradição real entre a Mensagem revelada e a prática da filosofia em si. Não há dúvida que foi um grande erro condenar o pensamento filosófico, cercear a liberdade natural do homem de refletir sobre a realidade e a existência.

A gnose se encontra neste terreno filosófico, porém, fundamentada nos princípios teológicos, ligada aos aspectos esotéricos da fé, os quais possibilitam o desenvolvimento do pensamento metafísico aprofundando a análise da realidade e da existência.

Esta vasta área da reflexão comporta evidentemente várias escolas de pensadores que apesar de diferirem entre si sobre os aspectos gerais bebem da mesma fonte essencial.

Da Reflexão e da Percepção

Reflexão e percepção são duas importantes potencialidades que se corretamente desenvolvidas e utilizadas capacitam o ser humano a captar e compreender os profundos aspectos e mecanismos da realidade e da existência. A gnose islâmica trata dos processos para este desenvolvimento e utilização a partir de certos reconhecimentos prévios e de princípios metafísicos relativos a multiplicidade fenomenal.

No cume da compreensão espiritual está o TAWHID (a unidade divina) que permite ao homem reconhecer a multiplicidade dos fenômenos e dos seres não como uma realidade precedente, mas, reconhecer a existência manifesta como um véu da Existência Absoluta. Uma das questões clássicas apresentadas à reflexão e a percepção é a natureza das causas e efeitos e do mecanismo que rege esta natureza.

O princípio metafísico relacionado a isto aponta para uma natureza da realidade como a conhecemos ou como a percebemos que se assemelha a uma onda no oceano, ou seja, que o fenômeno ou o fato é o resultado da combinação de elementos distintos que encontram-se em ininterrupta interação. Denominaremos esses elementos de dimensões da realidade ou “mundos”. Cada uma dessas dimensões ou mundos possui suas próprias leis e uma natureza distinta, contudo, através de um complexo processo são interligados e influenciam-se mutuamente. As principais dimensões, relacionadas a este estudo, são:

– A DIMENSÃO MATERIAL – que é o campo físico dos corpos e estruturas materiais.

– A DIMENSÃO SENSORIAL – das sensações e percepções intuitivas, dos sentimentos e paixões humanas.

– A DIMENSÃO MENTAL – o mundo das idéias, o campo da lógica, da razão e das faculdades mentais do consciente. E também é o vasto campo do inconsciente individual e coletivo, das faculdades supra-sensoriais, das manifestações oníricas.

– A DIMENSÃO ESPIRITUAL – a vastidão da transcendência, das verdades da profecia, do akhirah e das esferas (céus) superiores.

De fato, aquele que se propõe a desenvolver algum grau de compreensão sobre a natureza das dimensões não-perceptíveis pelos sentidos deve primeiramente considerar a complexidade da dimensão material.

A ciência surge como importante referencial nesta observação, considerar a dimensão material significa necessariamente considerar as diversas manifestações e elementos da matéria, segundo o que os vários ramos da ciência já identificaram.

Ao falarmos de dimensão material devemos nos referir as múltiplas naturezas e formas em que a matéria se combina e se manifesta, na verdade essas manifestações podem ser denominadas também de mundos. Há um mundo do microcosmo, das microestruturas ou partículas atômicas e sub-atômicas, que formam a base da matéria. Em seguida um mundo molecular, um mundo celular e um mundo microorgânico. Os reinos mineral, vegetal e animal. Os elementos fundamentais: água, terra, ar e fogo. Portanto a própria composição da matéria detém uma vasta complexidade. Uma área da metafísica versa essencialmente sobre determinadas propriedades e realidades resultantes das relações e interações entre os elementos fundamentais (água, terra, ar e fogo). Que são denominadas grosso modo de matéria sutil e espessa. No que é concernente ao nosso propósito, para facilitar a compreensão apenas citaremos que como estes quatro elementos estão presentes no corpo humano formando uma estrutura espessa, também existem estruturas etéreas (semelhantes as ondas de rádio por exemplo) e as formas de vida que conhecemos no Islam como gênios que possuem uma natureza material (mais sutil) formada por chama (gases) e que portanto encontram-se também no que chamamos de “dimensão material”.

Este comentário tem por objetivo situar o leitor em determinados conhecimentos que foram desenvolvidos por milênios por muitas das civilizações antigas, realidades conhecidas por estas culturas que explicam muito de sua maneira de entender o mundo.

De modo semelhante ao mundo material, as demais dimensões também possuem uma natureza muitíssimo complexa, são ordenadas por leis inteiramente diversas e o homem neste mundo material mantém-se ligado, influenciando e sendo influenciado por estas dimensões, podemos mesmo dizer que ele “vive” de modo simultâneo nestes quatro mundos e que suas ações, pensamentos e escolhas atuam e tem conseqüências nestes mundos num intrincado mecanismo de causa e efeito.

Os sábios da gnose islâmica não se restringiram a constatar os processos dos fenômenos, mas, buscaram cultivar o conhecimento útil que trouxesse ao homem o desenvolvimento de certas faculdades, em especial a educação da reflexão, da percepção, da vontade e da ação para que este encontrasse o equilíbrio e o tahsin (melhoramento) espiritual que contribuísse para o seu bem-estar nesta vida e no Akhirah. Este îrfán está intimamente ligado ao propósito da sublimação da consciência em seus níveis mais profundos, porém, há também uma aplicabilidade neste conhecimento referida a toda e qualquer condição que deve ser entendida como um ponto de partida para o desenvolvimento de nossas potencialidades.

Tomemos por exemplo um homem que possua saúde física, que seja dotado de criatividade, disposição para o trabalho e que sobretudo seja dotado de uma fé correta, porém possua uma forte inclinação para confiar em pessoas mal-intencionadas. Podemos dizer que este homem possua qualidades virtuosas relacionadas ao mundo material, ao mundo sensorial e ao mundo espiritual, contudo sua relação com a dimensão do intelecto (da razão) apresenta uma deficiência que representa um perigo para o seu bem-estar e que a despeito de suas outras virtudes essa deficiência poderá levá-lo a perdas e frustrações resultantes de suas próprias iniciativas. O conhecimento gnóstico aplicado visa justamente capacitar o indivíduo a auto-análise a partir desses referenciais; pela compreensão de que os fatos e fenômenos são os resultados da combinação de múltiplos fatores relativos a cada um desses níveis da existência.

Nada pode ser atribuído ao acaso. Na verdade nenhuma outra palavra é um melhor sinônimo para ignorância do que a palavra “acaso”. Do mesmo modo que as nossas atividades diárias na lida material auxiliam nossa mente a moldar nossos sonhos quando o corpo adormece, a nossa condição em relação a esta dimensão do inconsciente age e auxilia a moldar nossa condição neste mundo material. E esta lei de inter-relação está presente entre todas as dimensões da existência.

O objetivo seguinte é o desenvolvimento de certas potencialidades e virtudes requeridas do homem para o seu bem-estar e seu Tahsin (dimensão). Cada dimensão ou nível da existência requer um conjunto específico dessas virtudes. O mundo material requer, por exemplo, a iniciativa e o espírito prático tanto quanto a dimensão espiritual requer a fé e a bondade, assim como o corpo necessita do alimento e da água, a mente necessita de um raciocínio saudável e do estudo. Toda a questão então se apresenta como um equilíbrio ou conveniente nível de consciência referente a cada uma dessas dimensões da realidade.

Contudo, no que diz respeito às manifestações ou os fatos da realidade aparente não devem ser reduzidas a uma visão simplista que venha a situar as causas apenas no campo individual. A realidade como a conhecemos é uma vasta rede de inter-relações, o que significa dizer que estas assim chamadas “dimensões da realidade” ainda que possuam também uma “manifestação individual” são dimensões irrestritas e coletivas.

Recorramos a um exemplo para melhor compreender este ponto: uma criança ao nascer. Sob determinado aspecto podemos dizer que ela é nova. Porém sob outros aspectos podemos dizer que não. Uma criança ao nascer possui um organismo novo, uma impressão digital única, uma mente consciente que se assemelha a um papel em branco. Entretanto, sua composição genética remonta à milênios e chegou até ela por uma vasta sucessão de gerações, seu inconsciente guarda conhecimentos natos e muitas informações passadas geneticamente. Em seu desenvolvimento essa criança receberá uma educação, será inserida num conjunto de tradições e convenções sociais e culturais que passarão a fazer parte de sua personalidade e tudo isso provém de algo que não é nada novo. Os quatro elementos fundamentais que compõem o seu corpo foram agregados no período de gestação, quando morrer estes elementos se desagregarão e retornarão para a natureza, como vemos a existência manifesta não está absolutamente restrita a um aspecto individual.

O individual e o coletivo também estão inter-relacionados no processo das causas e dos efeitos. A experiência filosófica e de modo similar, a gnose, não nos propõem um possível “conhecimento de todas as respostas”, na verdade, as noções e os princípios gnósticos sobre os mecanismos da realidade manifesta apenas auxiliam a nos situarmos, chamam nossa atenção para determinadas constatações e conhecimentos que estão perfeitamente ao alcance da razão e da percepção. Por esta razão, em todas as épocas homens de conhecimento de diferentes culturas constataram pela reflexão e a percepção que o avanço do conhecimento conduz a consciência de nossa ignorância diante da vastidão da existência.

Semelhante a um homem do mar que pela experiência e a observação tenha com o tempo desenvolvido conhecimento sobre as correntes, as marés, os ventos e as mudanças climáticas e que justamente por este conhecimento jamais dirá que é conhecedor do mar. A gnose se assenta tanto sobre um conhecimento intelectual quanto sobre um conhecimento intuitivo (perceptivo) que permite compreender algo do mecanismo sutil da existência, ler através dos fenômenos algo do modo como as causas e os efeitos se estabelecem.

De fato, a gnose de modo geral e sobretudo a gnose islâmica, contradiz as chamadas ciências divinatórias das tradições pagãs, muito embora seus opositores tenham tentado confundi-las com suas interpretações precipitadas.

Adivinhar acontecimentos jamais foi objetivo de nenhum sábio gnóstico autêntico e por sua vez os charlatões, adivinhos e similares nada mais fazem do que exercer algum conhecimento de probabilidades (partindo do mesmo ponto que a gnose) para iludir os incautos.

De qualquer modo é esta ênfase gnóstica no exercício pessoal da reflexão e da percepção que a destaca de todas as demais práticas erroneamente associadas a ela. A sua meta de aplicabilidade do conhecimento, da reflexão e da percepção em prol do aprimoramento pessoal e do fortalecimento da religião não dá margem as tendências inescrupulosas dos que buscam conhecimento para satisfazer suas ambições e caprichos.

Tanto a reflexão como a percepção também possuem níveis distintos que se relacionam e se encontram por assim dizer em cada “dimensão” ou nível da realidade manifesta. Obviamente isso explica as diferentes capacidades de reflexão e percepção dos seres humanos.

No que tange a reflexão, há um nível primário que apreende os princípios lógicos, é capaz de analisar e compreender os fatos evidentes. Porém, só com muita dificuldade consegue estabelecer associações entre estes. Esse nível primário de reflexão caracteriza-se por um estado de dispersão que o inclina a analisar as coisas por um conceito binário (maniqueísta) (certo, errado, bom, mau) a partir daquilo que surge como efeito perceptível. Um homem neste nível primário de reflexão poderia ser denominado de “um súdito das aparências”. Para este nível de reflexão é muito difícil compreender algo que transcenda a realidade aparente.

O segundo nível da reflexão surge quando o indivíduo se torna capaz de aliar o seu raciocínio a uma certa qualidade de percepção intuitiva. Neste nível as associações subjetivas surgem ampliando a capacidade de análise do indivíduo. Os níveis posteriores são o resultado do aprimoramento deste processo em que a capacidade reflexiva e a capacidade intuitiva se unem. De modo similar, a percepção se desenvolve contando com o auxílio da reflexão. Entender a percepção em seu sentido abrangente torna-se fácil se considerarmos que assim como temos sentidos físicos para vivermos na dimensão material, também possuímos canais de percepção apropriados às demais dimensões da existência manifesta, logo da mesma maneira que uma pessoa pode aperfeiçoar seu olfato (com algum treinamento) os canais de percepção relacionados as dimensões não-físicas também podem ser aperfeiçoados.

No estudo do din por exemplo, sabemos que certos aspectos dos versículos sagrados do Alcorão requerem uma afinada percepção para que sejam compreendidos. As palavras sagradas do Livro de Allah se endereçam a totalidade do ser, ora se referem aos aspectos aparentes e evidentes da realidade do homem e da existência, ora tratam de aspectos sutis desta mesma realidade.

No primeiro caso a reflexão pura e simples se exercida corretamente (e guiada pelo conhecimento) é capaz de apreender os significados, no segundo caso, porém, a reflexão deve estar unida a percepção.

Alguns dos literalistas que se opõem a gnose e a filosofia aplicada a teologia islâmica, alegam que a percepção não é uma fonte segura de conhecimento desde que existem incontáveis e diferentes níveis de compreensão entre as pessoas o que gera inevitavelmente discrepâncias e opiniões diversas sobre a realidade das coisas. Este ponto de vista seria aceitável se não omitisse certas premissas as quais a gnose islâmica afirma como indispensáveis. Os sábios gnósticos não tomam como percepção autêntica qualquer impressão que não se fundamente na reflexão conduzida pelo conhecimento e pela razão.

A palavra revelada , ou seja o conhecimento do din afirma-se por si mesmo, por exemplo, se o Livro de Allah afirma textualmente a existência do paraíso, nenhuma percepção pessoal pode negar este fato, do mesmo modo que se a razão comum afirma que o dia sucede a noite, nenhuma percepção que contrarie a isso pode ser considerada verídica.

Quanto aos níveis de percepção embora incontáveis entre os seres humanos, a gnose não os considera isoladamente. Ainda que variem imensamente em número o que confirma sua validade como uma via de conhecimento é a própria Palavra Revelada quando se dirige a capacidade intuitiva dos humanos para a compreensão do espiritual.

Similarmente como dois homens que possuam perfeita visão enxergam um mesmo objeto e não discordam quanto a sua existência, dois ou mais homens dotados de uma percepção sadia captam aspectos sutis da realidade num mesmo grau de compreensão, possíveis diferenças de linguagem nos dois casos são possíveis, porém o que é essencial pode ser definido tanto pela razão como pela percepção.

A verdade material, ou a natureza da matéria e a verdade metafísica e transcendente não diferem quanto a sua qualidade de “verdade”. Porquanto a faculdade de percepção ou o conhecimento intuitivo não está mais propenso ao erro do que o conhecimento intelectual. A gnose afirma pois, que a reflexão e a percepção são duas importantes ferramentas para o homem alcançar a compreensão da realidade e de suas múltiplas manifestações, como tais devem ser aplicadas, cada qual em seu campo de atuação e desenvolvidas de modo a trabalharem uma em apoio a outra para uma abrangente visão dos vários aspectos da existência.

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