Servetus: Um Mártir da Unicidade Divina na Europa

Por Mohammad ‘Ata ur Rahim
Traduzido por: Ahmed Ismail

Introdução

Uma página pouco conhecida da história do cristianismo foi a permanência, a despeito das perseguições e das atrocidades da igreja, da fé estritamente monoteísta representada por pensadores que lutaram heroicamente para reavivar na Europa a essência da fé dos cristãos, tal como a dos arianistas e de outras comunidades cristãs dos primeiros tempos.

A cruel perseguição perpetrada pela Igreja de Roma, nos séculos III e IV contra os cristãos renitentes que rejeitavam os dogmas estabelecidos nos concílios da época, resultou numa quase completa supressão dos escritos que se opunham a esses dogmas.

O presente texto apresenta a biografia de Michel Servetus, considerado o fundador do unitarismo moderno (crença na unicidade divina) dentro da tradição cristã. Apesar de seu martírio, como de muitos outros opositores do poder da Igreja de Roma levados a morte como hereges, seu pensamento permaneceu vivo nos séculos seguintes inspirando outros eminentes pensadores como Sozini, John Bidle, Milton, John Locke, Thomas Emilyn, Lindsey, Joseph Priestly, entre outros. (o tradutor)

A Vida e a Luta de Servetus

Servetus nasceu em Villanueva, Espanha em 1511. Ele era filho de um juiz local. Viveu num tempo no qual havia uma grande conturbação na igreja estabelecida, e num período em que muitos questionavam a natureza da cristandade.

Em 1517, quando Servetus tinha seis anos de idade, Lutero iniciou sua revolta contra a Igreja de Roma. Isso resultou em sua excomunhão e ele tornou-se um líder da nova religião protestante reformada. O movimento conhecido hoje como a reforma, espalhou-se como fogo, e mesmo os que não concordavam com Lutero foram forçados a reconhecê-lo.

Em adição a este conflito, havia outro mais próximo de casa: muito embora cristãos e muçulmanos na Espanha tivessem tido melhores relações no passado, os resultados das Cruzadas no oriente fizeram com que os cristãos dirigissem sua ira contra os muçulmanos na Espanha. A organização conhecida como Inquisição Espanhola começou a converter a força todos os que não fossem cristãos à Igreja de Roma. Qualquer negligência em observar os ritos exteriores da Igreja resultava em severas punições e mesmo a morte.

Enquanto crescia, o jovem Servetus se assustava com tanto derramamento de sangue. Havia uma grande comunidade de judeus e muçulmanos no país, e estes só eram poupados da espada se publicamente confessassem sua fé católica e afirmassem a crença na trindade. Imagine-se a sua surpresa quando, examinando mais atentamente a Bíblia, ele descobriu que a doutrina da trindade não podia ser encontrada em nenhuma parte de seus ensinamentos.

Ele descobriu ainda que a Bíblia nem sempre apoiava o que estava sendo ensinado pela Igreja. Servetus tinha apenas vinte anos quando decidiu falar ao mundo o que tinha descoberto. Pois como consequência dessa descoberta, se os cristãos aceitassem que havia um só único Deus, então toda razão para a discórdia entre cristãos e muçulmanos terminaria, e ambas comunidades poderiam viver juntas em paz.

Nessa sensata porém inexperiente juventude, sua imaginação ardeu de entusiasmo, ele sentia que esse objetivo seria mais facilmente alcançado com a ajuda dos líderes da reforma, que tinham, afinal de contas, já se separado da igreja católica. A nova igreja protestante tornar-se-ia unitarista, e com sua ajuda os cristãos, os muçulmanos e os judeus viveriam juntos em paz. Um mundo de tolerância se tornaria possível, baseado na crença num único Deus, o “pai” da família humana.

Servetus era muito jovem para perceber que as mentes dos líderes da reforma estavam ainda presas na mesma falsa metafísica. Ele iria descobrir que tanto Lutero como Calvino não tinham nada a ver com a crença na unicidade de Deus. Eles temiam que a reforma fosse tão longe. Várias cerimônias da igreja católica foram abolidas, mas eles tinham medo de redescobrir o ensinamento original de Jesus (A.S.), pois isso adicionaria mais dificuldades e acarretaria uma diminuição de seu próprio poder e reputação. Talvez não tivessem consciência de quão longe as práticas da Igreja tinham se desviado do modo de vida no qual Jesus (A.S.) viveu. Certamente eles se empenharam para manter a religião reformada dentro do pensamento ortodoxo. Suas discordâncias não eram tanto sobre a teologia e a organização da igreja de Roma, mas sim sobre a questão de quem deveria governar a igreja.

As crenças de Servetus representavam uma ameaça a ambas organizações, e assim, ironicamente, seu apelo para os reformistas fez apenas com que eles se unissem à Igreja Católica a fim de proteger seus interesses comuns. Nada disso foi perfeitamente compreendido pelo jovem Servetus. Ele tinha todas suas esperanças nos líderes da reforma, pois estava convencido que o catolicismo romano não era a religião de Jesus(A.S.). Seus estudos tinham destruído sua crença na doutrina da trindade e conduziram-no à crença que existia um Único Deus e que Jesus tinha sido um dos seus profetas.

Sua convicção tinha sido fortalecida quando havia testemunhado a coroação de Carlos V da Espanha pelo Papa, em 1527, Carlos V havia invadido e saqueado Roma. Primeiro, ele aprisionou o Papa, mas então percebeu a estratégia de ter o Papa como um aliado. Um Papa cativo dificilmente teria influência sobre o povo como ele queria, assim ele restaurou uma certa liberdade ao líder católico. Para demonstrar as boas relações entre eles, decidiu que seria coroado pelas mãos do Papa, o que na verdade, não era necessário. Foi como ter um casamento religioso depois de uma cerimônia civil. Os predecessores do rei tinham abandonado esta prática, mas ele sentia-se poderoso suficiente e o Papa fraco o suficiente, para revivê-la. A cerimônia não se realizou em Roma, mas em Bologna, já que, de acordo com a crença popular, onde o Papa estivesse “era Roma.” Servetus presenciou o pomposo espetáculo e isso encheu-o de repulsa em relação a igreja católica. Ao descrever o evento, ele disse: “Com meus próprios olhos eu vi ele (O Papa) ser carregado com pompas nos ombros de nobres, fazendo o sinal da cruz, e ser adorado nos caminho aberto por todas as pessoas ajoelhadas, a tal ponto que todos aqueles que foram capazes de beijar seus pés ou sandálias contavam-se como mais afortunados do que os demais e declaravam que tinham obtido mais indulgências, e por conta disso os sofrimentos infernais seriam remidos por muitos anos. Ó mais vil de todas as bestas, mais impudente das prostitutas!”

Assim, as esperanças de Servetus se dirigiram para os líderes da reforma. Ele tinha certeza de que se ele pudesse tornar evidente o erro da doutrina da trindade a eles, abandonariam sua crença nesse dogma. Esse equívoco custaria sua vida.

Ele deixou a Espanha e foi residir em Tolouse onde estudou medicina e finalmente graduou-se em 1534. Nos anos que se seguiram, tornou-se um médico praticante, mas, durante todo esse tempo, seu interesse se dirigiu para o restabelecimento do puro Cristianismo.

Não se manteve muito tempo em nenhum lugar, ao invés disso, viajou por toda parte em busca de pessoas de mente aberta para ouvir o que ele tinha convicção de ser a verdadeira cristandade ensinada por Jesus (A.S.).

Foi à Basiléia para encontrar o então famoso Oeclampadius, que era um dos líderes da reforma. Eles tiveram vários encontros e seus colóquios foram centrados principalmente sobre as duas naturezas de Cristo.

Servetus rejeitava a crença de que Jesus teria preexistido à criação do mundo. Ressaltava que os profetas judeus sempre falaram sobre “o filho de Deus” no tempo futuro. Entretanto, descobriu que seus pontos de vista não eram aceitáveis para os protestantes suiços, e deixou Basiléia em 1530. Isto foi um grande choque para ele, já que esperava que, diferentemente da França católica, os protestantes teriam boa vontade em ouvir o que dizia sobre Jesus e seus ensinamentos.

Servetus foi para Strasburgo e logo descobriu que não poderia ganhar a vida ali. Devido a seu desconhecimento do idioma alemão, ele não podia praticar a medicina, e assim foi forçado a ir para Lyon.

Servetus também manteve uma extensa correspondência com Calvino durante todo esse período depois de sua partida da Espanha, mas sem qualquer resposta favorável deste, que não estava de modo algum interessado em redefinir o ensinamento de Jesus, o que ele queria era permanecer líder do movimento.

Já que todas as suas tentativas para influenciar as pessoas por um contato pessoal tinham falhado, Servetus editou seus pontos de vista em um livro chamado “Os Erros da Trindade” publicado em 1531, no mesmo ano publicou “Dois Diálogos sobre a Trindade”. Os dois livros tomaram de assalto a Europa. Ninguém tinha jamais escrito de modo tão ousado. O resultado foi que a igreja caçou Servetus de um lugar a outro. Ele foi forçado a mudar seu nome, mas não suas ideias. De 1532 até sua morte, viveu sob um pseudônimo.

Servetus parecia ainda ter uma fé ingênua em Calvino, que, depois de ler seus livros, desenvolveu uma profunda antipatia por aquele pretensioso jovem que ousava ensinar teologia a ele. Servetus continuou a escrever para Calvino e a ira do líder aumentou quando percebeu que Servetus se recusava a aceitar os seus pontos de vista. Os líderes do movimento protestante temiam que pudessem sofrer um atraso se as ideias daquele jovem entusiasta se tornassem conhecidas pelo povo. Também temiam que a perseguição da Igreja católica aumentasse se a doutrina protestante se desviasse demais da sua doutrina.

Assim, Servetus, ao invés de converter os protestantes para suas convicções, forçou-os a abraçar o dogma da trindade ainda mais ardorosamente. Lutero, por exemplo, condenou-o publicamente em 1539.

Durante todo esse tempo, Servetus continuou a praticar a medicina e tornou-se um médico bastante popular. A despeito da profissão médica absorver muito de seu tempo, conseguiu supervisionar a publicação de uma Bíblia. Ela foi publicada em 1540. Servetus escreveu um prefácio no qual questionava se um texto da escritura podia ter mais do que um significado. Calvino escreveu respondendo que sim, mas Servetus discordou dele. Hoje a igreja Calvinista aceita o próprio princípio de interpretação que Calvino alegou ser uma das maiores ofensas de Servetus contra a ortodoxia. Servetus declarou que estava seguindo os princípios estabelecidos pelos primeiros apóstolos que pertenciam à escola de Antióquia do Cristianismo.

É animador descobrir que no ápice dessa controvérsia, Servetus encontrou refúgio e paz na casa de seu velho amigo, Peter Palmier, que era então Arcebispo de Viena. Ele viveu ali por treze anos, gozando de liberdade para praticar a medicina e tornou-se um médico famoso. Servetus foi uma das primeiras pessoas na Europa a escrever sobre o princípio da circulação sanguínea. Ele também escreveu um livro sobre geografia. A despeito de seus talentos literários, as questões da cristandade sempre ocuparam o centro de sua atenção.

Servetus continuou a escrever a Calvino, ainda esperando poder convencê-lo de suas convicções, mas este rejeitou firmemente as crenças expressas em suas cartas. Servetus, por sua vez, recusou a aceitar o Obter Dicta de Calvino.

Calvino, que era na época considerado o principal pensador do protestantismo, sentiu ser justificado a expressar seu descontentamento com Servetus por este ousar desafiar seus ensinamentos em matéria religiosa. Servetus recusava-se a reconhecer Calvino como uma indiscutível autoridade em religião. Calvino respondeu com ira a Servetus, que replicou com sarcasmo. Servetus então escreveu um outro livro chamado “A restauração do cristianismo”, e enviou uma cópia prévia do manuscrito a Calvino. O livro foi publicado com sete capítulos, o primeiro e o último inteiramente dedicados às doutrinas do cristianismo. O quinto capítulo continha cópias das trinta cartas entre ele e Calvino. Isto expôs o fato que, apesar de todos os méritos que Calvino pudesse possuir, lhe faltava o que é conhecido como a humildade cristã.

O livro resultou numa nova condenação de Servetus, pela Igreja Católica e a protestante. Ambas uniram esforços para destruir o livro completamente, e agiram com tal eficiência que não existem mais do que duas cópias nos dias de hoje. Um fac-símile foi publicado em 1791, mas as cópias desta edição também foram destruídas.

Em uma carta escrita em 1546, Calvino ameaçou Servetus, dizendo que se ele viesse a Genebra, não permitiria que escapasse com vida. Servetus não pareceu acreditar nele, mas Calvino era tão bom como sua palavra. Quando Servetus mais tarde chegou a Genebra e foi vê-lo, ainda convencido que um entendimento seria possível, Calvino e os católicos romanos o prenderam e ele foi atirado na prisão sob a acusação de heresia.

Servetus tinha se tornado tão famoso como médico que conseguiu escapar da prisão com a ajuda de seus antigos pacientes. Decidiu ir a Nápoles. Sua rota passava em Genebra. Servetus pensou que tinha se disfarçado suficientemente para evitar sua detenção, mas estava errado. Quando atravessava a cidade, foi reconhecido e preso uma vez mais. Desta vez não escapou. Em seu julgamento, foi considerado culpado de heresia. Eis algumas passagens do processo:

“Servetus confessa que em seu livro chamou os crentes na trindade de trinitaristas e ateus. Ele chamou a trindade um monstro diabólico com três cabeças… denominou o batismo de crianças uma invenção do demônio e feitiçaria… e que isso acarreta o assassínio e a ruína de muitas almas. Além disso, escreveu uma carta aos ministros na qual, junto com outras numerosas blasfêmias, declarou nossa religião evangélica desprovida de fé e de Deus, e que no lugar de Deus temos um Cérbero (um cão infernal) de três cabeças.”

Dirigindo-se a Servetus, a corte diz que “você não tem nem vergonha e nem medo de afrontar a divina majestade da sagrada trindade, e assim tem de modo obstinado tentado contaminar o mundo com seu fétido e herético veneno… Por essa e outras razões desejamos purgar a igreja de Deus de tal infecção e cortar o membro apodrecido… Nós, então, por escrito, damos a sentença final e o condenamos, Michel Servetus, a ser amarrado e levado à capela, e ali atado a uma estaca e queimado com seu livro até as cinzas. E assim encontrará o fim de seus dias e dará exemplo a outros que queiram cometer o mesmo.”

No dia 26 de outubro de 1553, Servetus foi atado a um tronco de árvore, seus pés apenas tocavam o solo. Uma cruz de palha e folhas foi colocada em sua cabeça. Feixes de lenha entremeados com varas de carvalho verde foram empilhados em volta de suas pernas. Seu corpo então foi acorrentado na estaca e uma corda enrodilhada em seu pescoço. A lenha foi então acesa. O fogo atormentou-o, mas não o queimou gravemente. Vendo isto, uns poucos curiosos sentiram pena e acrescentaram mais lenha para terminar seu sofrimento.

De acordo com uma testemunha, Servetus se contorceu de dor por mais de duas horas antes de morrer. Uma cópia dos “Erros da Trindade” foi atada a sua cintura antes da fogueira ser acesa. Diz-se que o livro foi resgatado por alguém, e que essa cópia queimada parcialmente ainda existe. Celsus relata que a coragem de Servetus em meio ao fogo induziu muitos a aceitar suas crenças. Calvino fez disso uma questão expressa de queixa; que tivesse havido tantos que reverenciassem a memória de Servetus. Como Castillo, um seguidor de Servetus, disse: “Queimar um homem não é provar uma doutrina”.

Anos mais tarde, o povo de Genebra relembrou-o erguendo uma estátua. Não para Calvino, mas para o homem que este tinha sido responsável pelo martírio na fogueira (…). A morte de Sevetus não foi de modo algum um fato isolado. Este tipo de coisa estava acontecendo por toda Europa naquele tempo, como a seguinte passagem da obra “Rise of Dutch Republic” de Motley descreve: “Em 15 de fevereiro de 1568, uma sentença do Santo Ofício condenou à morte todos os habitantes da Holanda como hereges. Desta condenação coletiva apenas umas poucas pessoas, proeminentes, foram excetuadas. Uma proclamação do Rei Felipe II da Espanha, datada de dez dias mais tarde, confirmou o decreto da inquisição, e ordenou a execução deste em caráter imediato… três milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças foram sentenciadas ao patíbulo. Sob o novo decreto, as execuções não se atrasariam. Homens da mais alta e da mais humilde posição social foram arrastados para a estaca. Alva, numa única carta a Felipe II, estima o número de execuções que estavam para acontecer imediatamente após o fim da semana santa em oitocentas.”

Seguem alguns trechos do livro “Os erros da trindade” de Servetus, que causaram tão violentas ações, Servetus escreve:

“Os filósofos inventaram uma terceira entidade distinta das outra duas, que eles chamam de terceira pessoa, ou o Espírito Santo, e assim eles inventaram uma imaginária trindade, três seres numa natureza. Mas na realidade três deuses, ou um Deus triplicado, são impingidos a nós sob a pretensão, e em nome da unidade. Para eles, é muito fácil, tomar as palavras em seu senso literal, pois três seres para existir, o que eles dizem e ainda literalmente, ainda que, tão diferentes ou distintos embora um seja nascido do outro, e um sendo inspirado pelo outro, e ainda todos os três presos numa única imagem. Já que eu não tenho vontade de usar erroneamente a palavra “pessoas”, eu os chamarei o primeiro ser, o segundo ser e o terceiro ser, pois na Escritura eu não encontro outro nome para eles… Admitindo portanto esses três, os quais depois de sua invenção eles chamam pessoas, admitindo livremente uma pluralidade de entidades, uma pluralidade de seres, uma pluralidade de essências, uma pluralidade de substâncias, e tomando a palavra Deus estritamente, eles terão uma pluralidade de deuses. Se é assim, a razão dos trinitários serem culpados, que dizem que existem três deuses, pois inventaram três deuses ou um triplo. Esses tríplices deuses deles formam uma substância composta. E muito embora alguns não usarão a palavra implicando que os três tenham sido colocados juntos, usarão uma palavra que (significa) que estão juntos constituídos e que Deus é constituído de três seres. Está claro portanto que são trinitários e temos um deus triplicado. Nos tornamos ateístas, homens sem nenhum Deus. Pois logo que tentamos pensar em Deus, nos dirigimos a três fantasmas, de modo que nenhum tipo de unidade permanece em nossa concepção. O que é mais do que ser sem Deus senão ser incapaz de pensar sobre Deus, quando há sempre presente para nossa compreensão um assombroso tipo de confusão de três seres, pelo qual somos iludidos que estamos pensando em Deus… Eles parecem estar vivendo num outro mundo enquanto imaginam tais coisas, pois o reino dos céus não conhece nada deste absurdo e é de um outro modo, desconhecido para eles, que a escritura fala do Espírito Santo”.

“O quanto essa tradição da trindade tem sido motivo de riso para os maometanos só Deus sabe. Os judeus também se esquivam de aderir a esta nossa fantasia, e riem de nossa tolice sobre a trindade, e por conta dessas blasfêmias, eles não acreditam que este é o Messias prometido em sua Lei. E não apenas os maometanos e os hebreus, mas mesmo os animais dos campos, se divertiriam as nossas custas, se compreendessem nossa fantástica noção, pois todos os servos do Senhor bendizem o Deus Único. Essa mais ardente praga, portanto, foi adicionada e imposta, por assim dizer, sobre esses novos deuses que recentemente surgiram, os quais nossos antepassados não adoraram. E essa praga filosófica foi produzida pelos gregos, pois eles acima de todos os homens são os mais dados a filosofia; e nós, pendurados em seus lábios, tornamo-nos filósofos, e eles jamais compreenderam as passagens das escrituras as quais eles se referiram com respeito a essa matéria”.

Servetus também ressaltou o que ele acreditava ser a verdadeira natureza de Jesus(A.S.):

“Alguns estão escandalizados por eu chamar Cristo de profeta, porque jamais eles próprios aplicam este epíteto a ele, imaginam que todos que fazem isso estão imiscuídos com o judaísmo e os mohammadismo, a despeito do fato de que as escrituras e os antigos escritores chamam-no de profeta”.

Michel Servetus foi um dos mais ousados críticos da igreja estabelecida de sua época. O que lhe rendeu a singular distinção de ser martirizado por católicos com a ajuda dos protestantes. Ele combinou dentro de si próprio tudo o que foi de melhor na reforma e na renascença e aproximou-se de cumprir o ideal de sua época que era o de produzir um “homem universal” com o conhecimento pansófico. Foi perito em medicina, geografia, teologia e escolástica bíblica. A diversidade de seu aprendizado deu-lhe uma extensão de visão que foi negada para homens que eram menos estudados que ele. Talvez a mais significante parte de sua vida foi o seu embate com Calvino. Foi certamente um conflito pessoal, mas foi mais que isso. Foi uma rejeição a reforma que foi preparada para alterar a forma e não o conteúdo de uma igreja decadente. Isto custou-lhe a vida, muito embora Servetus esteja morto, sua crença na unicidade divina sobrevive. Ele é considerado por muitos o pai do moderno unitarismo.

Nem todos que compartilharam suas crenças tiveram o mesmo destino, como é demonstrado pela carta de Adam Nauser, transcrita abaixo, que foi seu contemporâneo. Ela foi enviada para o líder dos muçulmanos de Constantinopla, o imperador Salim II. Está incluída no “Antiquities Palatinae”, atualmente nos arquivos em HeidelBerg.

“Eu, Adam Nauser, um cristão nascido na Alemanha e promovido à dignidade de pregador ao povo em Heidelberg, cidade onde se encontram os mais eruditos homens da atualidade, peço refúgio a vossa Majestade com profunda humildade conjurando-vos pelo amor de Deus e de vosso profeta, sobre ele esteja a paz de Deus, a receber-me entre vossos súditos e aqueles de vosso povo que creem em Deus. Pois, pela graça de Deus Onipotente, eu vejo, e acredito com todo meu coração que a vossa doutrina e religião são puras, claras e aceitas por Deus. Estou firmemente persuadido que minha retirada do meio dos idólatras cristãos atrairá muitas pessoas de consideração a abraçar vossa fé e religião, já que muitos dos mais eruditos e notáveis dentre eles nutrem os mesmos sentimentos que os meus como devo dizer-vos sinceramente. No que concerne a mim, sou certamente um daqueles a quem é dito no quinto capítulo do Alcorão: “CONSTATARÁS QUE AQUELES QUE ESTÃO MAIS PRÓXIMOS DO AFETO DOS FIÉIS SÃO OS QUE DIZEM: SOMOS CRISTÃOS. PORQUE POSSUEM SACERDOTES E NÃO SE ENSORBERBECEM DE COISA ALGUMA. E, AO ESCUTAREM O QUE FOI REVELADO AO MENSAGEIRO, TU VÊS LÁGRIMAS A LHES BORTAREM DOS OLHOS, RECONHECEM NAQUILO A VERDADE, DIZENDO: Ó SENHOR NOSSO, CREMOS! INSCREVE-NOS ENTRE AS TESTEMUNHAS.” Temos esperança em nossos corações de que desde que cremos no mesmo que os fiéis crêem, tua vontade também nos fará entrar em comunhão; por que não deveríamos crer em Deus e naquele (profeta) que se manifesta a nós pela verdade? Certamente, ó imperador! Eu sou um daqueles que lê o Alcorão com prazer. Eu sou um dos que deseja ser de vosso povo e dou testemunho diante de Deus que a doutrina de vosso profeta, sobre ele esteja a paz, é indubitavelmente a verdade. Por esta razão eu humildemente suplico a vossa majestade pelo amor de Deus e de vosso profeta que tenha a boa vontade de me ouvir e conhecer de que maneira que Deus Misericordioso mostrou essa verdade a mim.

Mas antes de tudo vossa majestade deve estar inteiramente persuadida que eu não recorro a vossa proteção como alguns cristãos estão acostumados a fazer, que por causa de seus crimes, roubos, assassinatos ou adultérios não podem viver em segurança em meio ao povo de sua própria crença. Pois eu resolvi a mais de um ano a buscar o vosso refúgio e estive em meu caminho na viagem até Presburg mas, não compreendendo a língua húngara, não pude prosseguir e contra a minha vontade fui forçado a retornar a meu país, o que eu não teria me aventurado a fazer se tivesse cometido algum crime. Além disso, nada me obriga a abraçar vossa religião, quem me forçaria a isso sendo eu desconhecido de vosso povo e estando a tão grande distância deles? Assim, vossa Majestade não deve colocar-me entre aqueles cristãos que sendo conquistados e feito prisioneiros por seus súditos abraçam o Islam não de boa vontade, e que logo que encontram oportunidade fogem e renunciam a verdadeira fé. Por conseguinte, eu mais uma vez vos peço majestade que conceda vossa atenção para o que direi para que seja informado do real motivo de minha fuga para o vosso domínio.

Sendo promovido à posição de pregador na famosa universidade de Heidelburg pelo Prelado Palatino que junto ao Imperador é a mais poderosa autoridade na Alemanha, comecei a ponderar dentro de mim as diversas dissensões e divisões da fé cristã; pois para tantas pessoas que haviam entre nós haviam de opiniões e sentimentos. Eu comecei a abstrair-me de todos os doutores e intérpretes das escrituras que têm escrito e ensinado desde os dias do profeta Jesus Cristo. Eu me ative apenas às leis de Moisés e ao Evangelho. Então eu invoquei Deus interiormente com a mais fervorosa súplica e orei a ELE para mostrar-me o caminho certo para que eu não pudesse correr o risco de me desviar e desviar meus ouvintes. Eis que foi do agrado de Deus inspirar-me os “Artigos da invocação do Deus Único” dos quais eu escrevi um livro onde eu provo que a doutrina de Jesus Cristo não consistia em afirmar a ele próprio como um Deus tal como os cristãos falsamente alegam; mas que há um único Deus, que não tem filho algum consubstancial com ele. Eu dediquei este livro a vossa majestade e eu estou absolutamente certo que o mais erudito dos cristãos não é capaz de refutá-lo. E, por conseguinte, poderia eu associar algum outro deus a Deus?Moisés tinha proibido isso e Jesus jamais ensinou tal coisa. Depois disso fortaleci a mim mesmo dia após dia pela graça de Deus e compreendendo que os cristãos ofendem os benefícios de Jesus Cristo como antes os judeus ofenderam como víboras insolentes… Eu concluí que não há pureza a ser encontrada entre os cristãos e tudo o que eles tem está falsificado. Pois perverteram por suas falsas interpretações quase todas as escrituras de Moisés e o evangelho, o que eu demonstrei num livro escrito por minha própria mão o qual eu apresentarei a vós. Quando eu digo que os cristãos falsificaram e corromperam as leis de Moisés e o evangelho eu me refiro apenas às palavras e o sentido. Pois a doutrina de Moisés, de Jesus e de Maomé concordam em tudo e não são contrárias em nenhum ponto… O Alcorão concede um muito proveitoso testemunho a Moisés e Jesus Cristo. Mas ele insiste principalmente sobre os cristãos terem corrompido as leis de Moisés e o evangelho de Jesus por meio de suas falsas interpretações. De fato, se a palavra de Deus fosse fielmente interpretada não existiria nenhuma diferença entre judeus, cristãos e turcos (maometanos). Assim, o que o Alcorão tão frequentemente repete é verdadeiro. A doutrina de Maomé destrói todas as falsas interpretações das escrituras e ensina o verdadeiro sentido da palavra de Deus. Assim, pela graça de Deus eu compreendi que não havia outra divindade senão Deus, o Único, e observei que a doutrina de Jesus não foi ensinada como deveria ter sido, que todas as cerimônias dos cristãos eram muitos diferentes do que tinham sido no princípio. Eu comecei a pensar que eu era o único homem com essa opinião no mundo. Eu não conhecia o Alcorão e entre nós cristãos havia se espalhado por toda parte tais infâmias e escandalosas informações contra tudo o que diz respeito a doutrina de Maomé, que os pobres de espírito que existem para acreditar, assim como muitos fiéis são tomados de horror e saem correndo com o simples nome do Alcorão. Entretanto, foi por efeito da divina providência que o Livro caiu em minhas mãos, em razão do que eu dou graças a Deus.

Por Deus eu digo que Ele sabe que em minhas preces eu o invoco por vós e por todos aqueles que estão convosco. Busquei todas as maneiras para dar o conhecimento dessas verdades àqueles que me ouviam e no caso que não recebessem essa doutrina resolvi pedir demissão aos prelados e buscar refúgio convosco. Comecei pela estratégia do debate em todas as igrejas e escolas questionando alguns pontos da doutrina (cristã) e obtive o que desejava: Pois expus a matéria a tal ponto que tornou-se conhecida em todos os estados do império e eu atraí vários homens de conhecimento para o meu lado. O prelado (temendo uma invasão do imperador Maximiliano) me depôs”.

Essa carta caiu nas mãos do Imperador Maximiliano. Neuser foi preso junto com seus amigos, dois homens chamados Sylvan e Matias Vehe. Eles foram lançados na prisão. Em 15 de julho de 1570 Neuser escapou mas, o aprisionaram outra vez. Ele escapou uma segunda vez e foi novamente preso. Foi decidida a decapitação de Sylvan. Então, Neuser conseguiu escapar uma terceira vez, e desta, chegou a Constantinopla e abraçou o Islam.

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