Por: Ahmed Ismail
Ao pesquisador atento, o Alcorão se apresenta como um livro dotado de notáveis peculiaridades de linguagem e alusões que não são encontradas em nenhum outro texto religioso. Há nele um componente de “universalidade” que torna sua mensagem em vários níveis de compreensão, acessível a todos os padrões de intelecto.
Esta característica de certa forma explica a sua descontinuidade temática e o seu método singular de narrativa onde fatos e citações são apresentados com o único fito de salientar lições. Alguns críticos e opositores do Islam, por não se aperceberem do objetivo real dessa descontinuidade, têm apontado o livro sagrado como um emaranhado de exposições desconexas. Fica evidente o equívoco de tais críticos quando tentam analisar o Alcorão, seguindo os mesmos critérios usados na análise literária de uma obra originada do intelecto humano. Uma análise desse tipo está fadada a um total fracasso, que corresponde a frustração de todos os sábios a quem Allah, Exaltado Seja, lançou o desafio que permanece e permanecerá até o final dos tempos:
“E se tendes dúvidas a respeito do que revelamos ao Nosso servo (Mohammad), componde uma surata semelhante à dele (o Alcorão), e apresentai as vossas testemunhas, independentemente de Deus, se estiverdes certos.” (Alcorão, C.2 – V.23)
Este desafio foi lançado à eruditos de todas as áreas do conhecimento humano e semelhante empreitada exigiria uma abrangência sobre-humana em conteúdo, forma e originalidade, que explica o fato de que o Livro Sagrado não pode ser analisado sob padrões e critérios comuns.
A complexidade e a riqueza da língua árabe por si só, constitui uma barreira intransponível (e não devemos nos esquecer da rica tradição poética árabe que ao menos em princípio os capacitaria a tentar).
No entanto, jamais em toda história se produziu na tradição árabe algo que de longe pudesse responder ao desafio divino.
Em seguida, podemos citar a profundidade e a profusão de conceitos e verdades científicas constantes no texto sagrado ou a vastidão de áreas do conhecimento humano abordadas nele.
Assim, a aparente descontinuidade não deve ser entendida como aleatória, há um propósito, um método profundamente científico que tem por meta alcançar todos os canais de percepção do homem (de todos os homens) chegando a cada um deles de um modo específico. Algo desse propósito pode ser inferido através da análise das “narrativas múltiplas”. No Alcorão há um certo número de narrativas acerca de fatos, que são apresentadas em várias partes do texto em versões diferentes (porém não contraditórias entre si). Na realidade elas parecem completar-se umas as outras, apresentando aspectos múltiplos de um mesmo fato, expondo ensinamentos e lições que podem ser compreendidas como diversos ângulos de um mesmo objeto. O propósito especial desse método pode ser entendido como um conjunto de abordagens que visa extrair do fato todas as suas possíveis formas de compreensão, comunicando ao ouvinte (ou leitor) aspectos evidentes e aspectos sutis de um mesmo acontecimento.
Também é surpreendente o método de argumentação alcorânico em que a simplicidade aliada a um senso de exposição direta, conduz o ouvinte a uma imediata confrontação com a verdade demonstrada. Essa argumentação, por exemplo, recorre a evidências naturais para despertar o ouvinte, evidências inegáveis e que são conhecidas por todos. Ao apresentá-las, o Alcorão não deixa margem para nenhuma possível dúvida razoável, ou seja, ele fala de aspectos da realidade que a mente e o bom senso reconhecem diretamente. Três passagens exemplificam bem esta argumentação sobre as evidências:
“Porventura, não reparas em como Deus impulsiona as nuvens levemente? Então as junta, e depois as acumula? Não vês a chuva manar do seio delas?, E que Ele envia massas (de nuvens) de granizo, com que atinge quem Lhe apraz, livrando dele quem quer? Pouco falta para que o resplendor das centelhas lhes ofusque as vistas.” (Alcorão, C.24 – V.43)
“Criou com prudência os céus e a terra. Enrola a noite com o dia e enrola a noite com o dia e enrola o dia com a noite. Tem submetido o sol e a lua: cada qual prosseguirá o seu curso até um término prefixado. Porventura, não é o Poderoso, o Indulgentíssimo?” (Alcorão, C.39 – V.5)
“E na terra, há sinais para os que estão seguros na fé. E também (os há) em vós mesmos. Não vedes, acaso? (Alcorão, C.51 – V.20 a 21)
As evidências da harmônica ordem natural presente no próprio homem e no universo que o cerca, são assim apresentadas de um modo absolutamente conclusivo contra o qual não pode haver objeção da razão. Esses fatos evidentes não podem, por exemplo, ser atribuídos ao acaso tal é a ordem imutável que está presente em cada um deles. Os ciclos naturais do tempo, dos movimentos dos astros, do nascimento, do desenvolvimento físico e da morte são perfeitamente reconhecíveis e evidentes e, portanto, a argumentação do Alcorão toma por base fatos acessíveis a percepção de todo e qualquer ser humano. Essa prodigiosa argumentação surge no Alcorão de modo especialmente notável nos versículos sagrados que refutam a idolatria e o politeísmo, como podemos ver nos exemplos que se seguem:
“Ainda: Quem origina a criação e logo reproduz? E quem vos dá o sustento do céu e da terra? Poderá haver outra divindade em parceria com Deus? Dize-lhes: Apresentai as vossas provas, se estiverdes certos”. (C.27 – V.64)
“Não obstante, eles adoram, em vez d’Ele, divindades que nada podem criar, posto que elas mesmas foram criadas. E não podem prejudicar nem beneficiar a si mesmas, e não dispõem da morte, nem da vida, nem da ressurreição”. (C.25 – V.3)
“Dize-lhes: Invocai os que pretendeis, em vez de Deus! Eles não possuem nada, nem mesmo do peso de um átomo, no céu ou na terra, nem tampouco têm neles participação; nem Ele os tem como ajudantes.” (C.34 – V.22)
O Alcorão concentra-se na convocação à reflexão sobre:
1. a origem da vida e do universo (a criação).
2. o mecanismo natural da reprodução da vida e de sua natural extinção.
Esses dois aspectos da existência encontram-se além do controle de qualquer criatura. A própria razão afirma que toda criatura está a mercê desses processos, desde que nenhuma delas poderia ter criado a si mesma ou criado a outra.
Em suma, a questão é apresentada de modo conclusivo e inquestionável: A origem de todas as coisas, o processo do nascimento e da morte, a reprodução da vida e a ressurreição, a provisão incessante que mantém a vida sobre a terra, todas essas obras encontram-se além da capacidade de qualquer criatura do universo (homem, gênio ou anjo), todas elas pertencem e estão sob o controle de um Criador, que por sua vez está além de todos esses processos e leis naturais.
Em outros versículos semelhantes o Alcorão desafia as criaturas dos céus ou da terra a realizarem “qualquer criação”, mínima que seja, deixando claro a impotência de qualquer criatura tomada por “divindade” de “dar a vida”, produzi-la do nada.
A contundência dessa argumentação demonstra o efetivo método alcorânico que atinge os seus objetivos de maneira direta, instigando o homem de qualquer tempo ou cultura a uma reflexão clara sobre a realidade. O Alcorão apresenta assim fatos e verdades perceptíveis tanto para o erudito quanto para o iletrado, estabelecendo uma comunicação para com qualquer nível de compreensão. Também sob esse aspecto o Alcorão pode ser considerado um livro único. E a essa peculiaridade se acrescenta o fato de que ao abordar verdades comuns imprimidas na existência e no universo o Alcorão constitui uma mensagem atemporal e viva, atual e sempre a frente de qualquer época, desde que a capacidade humana de compreendê-lo é limitada e finita enquanto os seus significados e segredos são ilimitados e infinitos.