Por: Sayyd Husein Nasr
Tradução: Ahmed Ismail
Uma das questões mais difíceis no que concerne a manifestação do Sufismo (Tasawwuf) na história islâmica é sua relação com o Xiismo.
Ao discutir esta intrincada e algo complexa relação a princípio e em essência ou à luz de sua realidade meta-histórica, assim como no tempo ou na história, não temos que nos preocupar quanto a crítica demasiadamente repetida por certos orientalistas que põem em dúvida o caráter islâmico e alcorânico tanto do xiismo como do sufismo.
Baseando-se na suposição a priori de que o Islam não seja uma revelação e ainda assim que se conte entre as religiões, apenas uma “elementar religião da espada” destinada a um povo simples do deserto estes críticos pretensiosos consideram como não-islâmico tudo o que se refere a îrfán (gnose) e esoterismo, assinalando como prova de sua tese a falta de textos históricos no período inicial como se fosse possível negar a existência de algo que possa haver existido sem deixar indícios escritos para que fossem analisados nos dias de hoje.
A realidade do Xiismo e do sufismo como aspectos integrantes da revelação é de uma clareza demasiado deslumbrante para que se possa omiti-la ou justificá-la com base num tendencioso argumento histórico. O fruto está aí para provar que a árvore tem suas raízes num solo que a nutre; e o fruto espiritual só pode vingar de uma árvore que esteja plantada na Verdade Revelada. Neste ensaio daremos por ponto pacífico o caráter islâmico do Xiismo e do sufismo (…).
De fato, xiismo e sufismo são ambos, de forma distinta e em níveis diferentes, aspectos intrínsecos da ortodoxia islâmica, entendendo-se este termo não meramente em seu sentido teológico, mas, especialmente em seu sentido universal, como tradição e verdade universal contida em uma forma Revelada.
A relação entre Xiismo e Sufismo se vê complicada pelo fato de que ao estudar estas duas realidades espirituais e religiosas não falamos em ambos os casos do mesmo plano ou dimensão do Islam. O Islam possui uma dimensão exotérica (Dzáhir) e outra esotérica (Bát’in) que, junto com todas suas divisões interiores representam a estrutura vertical da revelação.
Porém o Islam também está dividido em sunismo e xiismo, que podemos dizer, representam sua estrutura “horizontal”. Se esse fosse o único aspecto da relação assinalada, seria relativamente simples explicá-la. Contudo, o fato, da dimensão esotérica do Islam, que no âmbito Sunnita está quase totalmente ligada ao sufismo, de um modo ou de outro se apresenta em toda a estrutura do Xiismo, tanto em seu aspecto esotérico como em seu aspecto exterior (exotérico).
Podemos dizer que o esoterismo, ou gnose, islâmico cristalizou na forma do sufismo no âmbito sunita, enquanto que preencheu toda a estrutura do Xiismo, especialmente durante seu primeiro período. Do ponto de vista sunita, o sufismo apresenta similaridades com o xiismo e inclusive assimilou aspectos deste. Nada menos que uma autoridade como Ibn Khaldun escreve:
“…Os sufis se imbuíram das teorias da Xi’ah. Tais teorias penetraram tão profundamente em suas idéias religiosas que basearam sua própria prática de usar o manto no fato de que Ali vestiu a Hasan Al Basri com essa peça quando este aderiu solenemente a senda mística. A tradição (assim instaurada por Ali) teve continuidade, segundo os sufis por Al Junaid, um dos mestres sufis”.
Do ponto de vista xiita, o xiismo é a origem do que mais tarde veio a ser conhecido como Sufismo. Porém aqui, por xiismo se entende as instruções esotéricas do Profeta (S.A.A.S.), os Asrar que muitos autores xiitas identificaram com a “ocultação” xiia”h, (Taqyyah). Cada um destes pontos de vista apresenta um aspecto da mesma realidade, porém, vista do interior dos mundos em que estão contidos no seio da ortodoxia total do Islam. Tal realidade é o esoterismo ou Gnose. Se considerarmos o sufismo e o xiismo em sua manifestação histórica durante os períodos posteriores, então nem o xiismo, nem o sunismo e tampouco o sufismo dentro do mundo sunni, derivam um do outro. Todos eles recebem sua autoridade do Profeta (S.A.A.S.) e da origem da Revelação. Contudo, se por Xiismo se quer entender o esoterismo islâmico como tal, então, naturalmente, é inseparável do sufismo.
Por exemplo, os Imames Xiitas (A.S.) desempenham um papel fundamental no sufismo, porém como representantes do Esoterismo e não especificamente como Imames Xiitas, segundo a organização posterior da fé xia’h. De fato, entre os historiadores muçulmanos recentes e os pesquisadores modernos há uma tendência a buscar nos primeiros séculos as distinções claras que só se estabeleceram mais tarde.
É verdade que se pode discernir elementos “xia’ah” inclusive na vida do Profeta (S.A.A.S.) e que xiismo e sunismo têm suas raízes na mesma origem da Revelação, estabelecida de forma providencial para dar guarida a distintos tipos psicológicos e étnicos. Entretanto, as rígidas divisões dos últimos séculos não são discerníveis no período inicial. Havia elementos Sunni com definidas tendências Xia’ah e haviam contatos xia’ah no nível intelectual e social com elementos sunni.
De fato, em certos casos torna-se difícil julgar se um autor em particular era xia’ah ou sunni, especialmente antes do século 4, já que neste período as vidas religiosas e espirituais Xia’ah e sunni, possuíam cada uma seu próprio perfume e cor.
Neste ambiente menos cristalizado e mais fluído, os elementos do esoterismo islâmico que do ponto de vista xiita são considerados particularmente xia’ah, parecem representar o esoterismo islâmico como tal no mundo sunita. Não se pode encontrar melhor exemplo do que foi dito que a pessoa de Ali Ibn Abu Talib (A.S.). Se pode chamar o xiismo o “Islã de Ali” que no xiismo é ao mesmo tempo a autoridade espiritual e a autoridade temporal depois do Profeta (S.A.A.S.). Também no sunnismo quase todas as tariqas (ordens sufis) se remontam a Ali (A.S.), e ele é a autoridade espiritual depois do Profeta (S.A.A.S.).
O famoso hadith “Eu sou a cidade do conhecimento e Ali é a porta” que é uma referência direta ao papel de Ali no esoterismo islâmico, é aceito tanto por xiitas como por sunitas, contudo, a posição de IMAME ESPIRITUAL (Wylayah) de Ali (A.S.) não se apresenta para o Sufismo do mundo sunni como algo especificamente xia’ah, senão como algo que está ligado ao esoterismo em si. Apesar disso, no caso de Ali (A.S.), a veneração que tem por parte tanto dos xiitas como dos sufis, mostra o quão intimamente relacionados estão o xiismo e o sufismo. O sufismo não possui uma Sharia’h particular, é apenas um caminho espiritual (tariqah) ligado a um rito shari’ita como o Maliky ou o Xafyy. O xiismo possui a seu turno uma Sharia’h e uma tariqah. Em seu aspecto puramente espiritual o último é muitas vezes idêntico ao sufismo tal como existe no âmbito sunni, e certas ordens sufis tais como a “ni’matullah” tem existido de modo simultâneo no âmbito xiita e sunita. Além disso, o Xiismo possui, incluso em seus aspectos shari’itas e teológicos, certos elementos esotéricos que o assemelham ao sufismo. De fato, poderia se dizer que o Xiismo, inclusive em seu aspecto exterior, se orienta até as estações espirituais (maqamat -i- irfáni) do Profeta (S.A.A.S.) e dos Imames (A.S.), que também são as metas da vida espiritual do Sufismo.
Alguns exemplos tomados da vasta e intrincada relação entre sufismo e xiismo podem esclarecer mais algumas das questões que temos examinado até agora.
No Islam em geral, e no sufismo em particular, um santo é denominado WALI (abreviatura de Waliallah, ou amigo de Allah). Como se mencionou, no xiismo toda a função do Imam está associada com o Poder e a função do que em persa se chama WALAYAH, termo que deriva da mesma raiz que Wilayah e está intimamente ligado a ela. Alguns inclusive têm identificado um ou outro. Em todo caso, segundo o Xiismo além do dom da Profecia no sentido de anunciar uma Lei Divina (nubuwwah ou Risalah) o Profeta (S.A.A.S.), como os grandes profetas anteriores (A.S.), tinha o poder de transmitir a guia espiritual e a iniciação a qual transmitiu a Fátima e a Ali, e por meio deles, a todos os Imames. Desde que o Imam permanece (o imamato), tal função e poder estão do mesmo modo sempre presentes neste mundo e podem guiar os homens a vida espiritual. O ciclo da iniciação (Da’irat al Walaiat) que segue ao ciclo da Profecia (Da’irat Al Nubuwwah) continua, portanto, até nossos dias e garante a presença sempre viva de uma via esotérica no Islam.
O mesmo significado corresponde a Wilayah, no sentido de que ela também mantém a presença espiritual sempre viva no Islam, que permite aos homens praticar a vida espiritual e alcançar um estado de santidade. Esta é a razão pela qual muitos sufis, desde a época de Hakim Al Tirmidhi, tem prestado tanta atenção a este aspecto cardeal do sufismo.
Sem dúvida, há uma diferença entre xiismo e sufismo no que diz respeito a como e através de quem operam essa função e esse dom, assim como a quem seja considerado seu “Selo”. Contudo, a similaridade entre xiitas e sufis no que tange a esta doutrina é surpreendente e resulta diretamente do fato que ambos estão vinculados, da forma já mencionada, com o esoterismo como tal, que não é outro senão a Wilayah ou Walayah tal como se empregam estes termos no sentido técnico em ambas as fontes. Entre as práticas dos sufis existe uma que em seu significado simbólico está intimamente ligada com a Wilayah e, em sua origem com o Encargo (walayah) xia’ah.
É a prática de vestir um manto e transmiti-lo do mestre ao discípulo como símbolo da transmissão de um ensinamento espiritual e da graça particular associada ao ato da iniciação. Cada estado do Ser é como um manto ou um véu que cobre o estado superior, pois simbolicamente o superior é associado ao interior. O manto sufi simboliza a transmissão do dom espiritual que permite ao discípulo ou murid penetrar mais além de seu estado de consciência cotidiano. Por haver recebido este manto ou véu, o discípulo pode desatar o véu interior que o separa do Divino. A prática de vestir e transmitir o manto e o significado deste ato estão estritamente relacionados com o Xiismo, como afirma Ibn Khaldun na referência anterior. Segundo o famoso Hadith i- Kisa (A tradição do manto), o Profeta (S.A.A.S.) chamou a sua filha Fátima, Ali, Hassan e Hussain e colocou seu manto sobre eles de tal forma que os cobriu. O manto simboliza a transmissão da Walayah Universal do Profeta sob a forma da walayah parcial à Fátima (A.S.), e, através dela aos Imames (A.S.) que foram seus descendentes. Há uma referência direta ao simbolismo esotérico do Manto em um hadith bem conhecido que por seu significado e beleza reproduzimos aqui de maneira integral:
Está relatado que o Profeta (S.A.A.S.) disse: “Quando fui levado aos céus na ascensão noturna e entrei no Paraíso vi no meio dele um palácio repleto de rubis vermelhos. Gabriel me abriu a porta e entrei. Eu vi uma casa feita de pérolas brancas, entrei na casa e vi uma caixa feita de luz e cerrada com um fecho de luz, e disse: “Ó Gabriel, o que é esta caixa e o que há dentro dela?” Gabriel respondeu: Ó Habibullah, nela está o segredo de Allah, que Ele não revela a ninguém senão a quem ama”. Eu disse: “Abre esta caixa pra mim”. Ele respondeu: “eu sou um servo que segue o Mano Divino. Pede a Teu Senhor para que Ele me dê permissão para abrir”. Logo que pedi permissão a Allah, do Trono Divino chegou uma voz dizendo: “Ó Gabriel, abre!” E ele abriu a caixa. Nela vi Faqr (a pobreza espiritual) e um manto, e perguntei: “O que é este faqr e este manto?” A voz do alto disse: “Ó Mohammad! Existem duas coisas que escolhi para ti e teu povo desde o momento que os criei. Estas duas coisas não as dou a ninguém senão àqueles a quem amo. E Eu não criei nada mais amado que isso”. Então, o Santo Profeta disse: “Allah Exaltado Seja Seu nome, selecionou o faqr e o manto pra mim, e estas duas coisas são as mais queridas para ele”. O Profeta dirigiu sua atenção para Allah e quando retornou da ascensão noturna fez com que Ali vestisse o manto com a permissão de Allah e por ordem Sua. Ali o vestiu e costurou tantos remendos neste manto que chegou a sentir vertigem diante do que estava servido à mesa. Ali fez com que seu filho Hassan o vestisse depois dele, e depois deste, Hussain o vestiu, e sucessivamente cada um dos seus descendentes, até o Al-Mahdi, que agora está com o manto”.
Toda a questão da walayah e o manto que a simboliza esclarece o elemento comum mais importante entre o sufismo e o Xiismo, que é a presença de uma forma oculta de conhecimento e instrução. O uso do método do ta’wil (interpretação) espiritual ou compreensão do Alcorão, assim como do “texto cósmico” e a crença nos graus de significado dentro da Revelação – e ambas as coisas são comuns ao xiismo e ao sufismo, decorrem da presença dessa forma esotérica de conhecimento.
A presença da walayah garante ao xiismo e ao sufismo um caráter gnóstico e esotérico, do que são expressões naturais da doutrina e o modo característico de instrução que estão presentes em ambos.
Extraído da obra “Sufismo Vivo” de Sayyed Hussein Nasr.