O Islam e a Virtude do Perdão

Por: Ahmed Ismail

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.

Uma das questões essenciais da ética e do espírito religioso é o exercício da virtude do perdão.

Ao contrário do que por séculos se propagou no mundo ocidental sobre o Islam, frequentemente interpretado de modo errôneo como “religião da espada”, o exercício da virtude do perdão ocupa no Islamismo, tanto quanto no Cristianismo, uma posição de destaque. Muito embora, essa questão seja compreendida de modo diverso ao que foi na tradição cristã no decorrer dos séculos.

Essa diversidade resulta sobretudo em razão do modo em que a exegese (interpretação) dos evangelhos canônicos foi exercida por vários teólogos cristãos dos primeiros séculos, os quais, na maioria das vezes optaram por um literalismo primário na análise dos ensinamentos e dizeres atribuídos a Jesus (A.S.).

Essa tendência a uma análise generalizada e induzida a frisar uma suposta “oposição a lei” produziu uma visão fragmentada e em aparente conflito entre o espírito religioso e o âmbito social, no qual a justiça e a lei se fazem necessárias.

No decorrer de toda sua história, a tradição cristã manteve essa lacuna de respostas às questões relativas aos problemas das relações sociais e por fim, delegou essa responsabilidade ao estado laico. De maneira que, se pretendeu dar à mensagem de Jesus (A.S.) um distanciamento da lei mosaica, quando na realidade em momento algum a doutrina do perdão pregada por Jesus (A.S.) e pelos demais profetas (A.S.), negou a lei e o estabelecimento da justiça o seu lugar.

Entretanto, para o cristão comum hoje, não parece haver qualquer discernimento entre o exercício do perdão no âmbito pessoal e a necessidade coletiva de parâmetros de justiça. Segundo a concepção corrente na tradição ocidental, a doutrina cristã do perdão se aproxima de uma espécie de “contemplação ascética” ou “imobilismo místico” que leva a tolerância e o perdão a extremos próximos da irracionalidade.

É evidente porém, que, os dizeres e ensinamentos atribuídos a Jesus (A.S.) nos evangelhos canônicos que preconizam o exercício do perdão e da tolerância se referem a circunstâncias individuais e nesse sentido, não difere em nada da doutrina de Mohammad (S.A.A.S.) e dos demais profetas (A.S.).

O Islam, por sua vez, coloca a virtude do exercício do perdão individual no mesmo lugar de destaque, sem que com isso, diminua o papel social da lei e o estabelecimento da justiça, o direito do lesado sobre o que lesa, o direito do ofendido sobre o que ofende, direito que para Allah, Exaltado Seja, deve ser salvaguardado pela lei de Talião.

Com efeito, a lei de talião em si, não anula o exercício do perdão individual nas questões das relações humanas que não constituem crimes contra a vida, a propriedade e a honra; e mesmo nessas questões há espaço para o perdão individual em muitas circunstâncias.

Não nos aprofundaremos nesse tema aqui em vista de sua complexidade jurídica e por não ser objeto principal desse trabalho. Contudo, citaremos a título de ilustração o versículo sagrado concernente a essa questão, no qual Allah Exaltado Seja diz: “Ó fiéis, está-vos preceituado o talião para o homicídio: livre por livre, escravo por escravo, mulher por mulher. Mas, se o irmão do morto perdoar o assassino, devereis indenizá-lo espontânea e voluntariamente. Isso é uma mitigação e misericórdia de vosso Senhor.” (2/178)

O exercício da virtude do perdão

Diz Allah o altíssimo no Alcorão: “São aqueles que as abstêm dos pecados graves e das obscenidades e que, embora zangados, sabem perdoar.” (42/37)

Com absoluta clareza a virtude do perdão é aqui exposta como uma característica distintiva dos fiéis. “Saber perdoar” envolve autocontrole, capacidade de refrear a ira e o rancor. Entretanto, na perspectiva islâmica “saber perdoar” também significa ter a sabedoria de analisar a escolha pelo perdão segundo a situação. Isto é, julgar todas as questões envolvidas nela: que tipo e em que grau de gravidade fomos ofendidos, injustiçados, oprimidos ou lesados; se de algum modo contribuímos para o mal que nos tenham feito, se o mal que julgamos que nos tenham feito pode ou não pode ser reparado, se a pessoa que tenha nos prejudicado o fez com consciência plena, por ignorância ou por impulsividade. Também devemos nos perguntar se a nossa própria vaidade esteja pesando ou não na questão, ou seja, algum tipo de imparcialidade deve ser exercida, desde que ao decidirmos perdoar ou não a alguém, estamos na prática, exercendo um julgamento.

Saber perdoar também significa ser capaz de perceber se o perdão deve ou não se seguir de um reatamento de amizade ou relação, uma vez que, muitas vezes podemos perdoar mas estar consciente de que uma pessoa, por ter um caráter incorreto, má educação ou pouco temor a Deus, está condicionada a causar problemas a quem dela se aproxime. Então, há o perfeito discernimento entre “perdoar, desfazer o rancor e a inimizade” e “tomar como amigo”. Caso uma pessoa não saiba fazer essa distinção se põe em risco de ter problemas e novas decepções no futuro. O perdão só é uma virtude quando exercido com sabedoria.

Por outro lado, negar o perdão a culpas alheias, nas quais muitas vezes nós mesmos incorremos, motivado apenas e tão somente por rancor é uma escolha lamentável.

Disse o Profeta Mohammad (saas): “Aquele que não tem misericórdia não encontra misericórdia”.

Recordar a todo momento o quanto precisamos da misericórdia e do perdão de Allah por nossos pecados e erros é algo que deve pesar em nossas decisões nesse sentido.

Alimentar rancor e ódio numa situação em que a pessoa que nos tenha ofendido ou lesado esteja a nos pedir perdão, ou que já tenha abandonado o prejuízo para conosco é de muito pouca sabedoria, como também o é abandonar uma atitude de firmeza diante de alguém que esteja conscientemente a nos ofender ou lesar, sem que com isso tenhamos de cometer injustiças ou excessos para tal pessoa. A sabedoria no exercício do perdão não é algo fácil, requer senso aguçado de justiça para consigo mesmo e para com o próximo.

Muitas vezes nos deparamos com situações de perseguição, injustiça e inimizade permanente, nas quais uma mera disposição para o entendimento não é suficiente. O Islam nos ensina que em tais situações devemos manter uma atitude honrada, isto é, não devemos responder a injustiça com a injustiça, nem a opressão com a opressão. Porém, por mais que a ira e a indignação nos induza a isso, temos o dever de nos defender com dignidade.

Não há nenhum mérito ou inteligência em se submeter a maldade e a opressão ocultando a covardia ou o comodismo com uma falsa humildade. O Profeta Mohammad (S.A.A.S.) disse: “Não é um de nós (Ahlul Bait), aquele que se submete a humilhação obedientemente e por sua própria vontade.”

Demonstrar aos que nos odeiam e nos oprimem o modo certo de reagir e se possível refreá-los em seus erros é a melhor maneira de “amar os que nos odeiam”. Do contrário, se nos encolhermos passivamente diante de sua injustiça ou opressão, continuarão oprimindo e injustiçando a outros e isso sim, é o pior do que lhes possa acontecer.

O Profeta Mohammad (S.A.A.S.) no cumprimento de sua missão adotou a dignidade como arma para resistir aos seus perseguidores, não os odiou e nem mesmo vingou-se deles quando poderia fazê-lo. Ao invés disso, com uma atitude honrada e justa, terminou por “dobrar” muitos deles, fazendo-os por fim se envergonharem de suas ações.

Aqueles realmente maus e cegos de ignorância e hipocrisia produziram sua própria ruína neste mundo e no outro, sem que ele abandonasse em momento algum a justiça e a honra de suas ações.

Os Imames purificados (A.S.) em grande medida e em diversas situações também demonstraram esta posição de dignidade diante dos seus perseguidores e opositores, sem que com isso jamais tenham incorrido em ações injustas ou desonestas em relação a eles. Por isso, não foram poucos os que se arrependeram de suas ofensas para com eles e que foram sobrepujados por sua bondade e honra.

Quando o Imam Al Hassan (A.S.), por exemplo, deixou este mundo, Maruan Hakam, um dos que sempre o molestaram foi ao seu funeral. Imam Al Hussein (A.S.) lhe perguntou: “Enquanto meu irmão viveu fizeste tudo que te foi possível contra ele e agora, te apresentas em seu funeral e choras?” Maruan respondeu: “Tudo o que fiz, o fiz contra alguém cuja clemência e paciência eram maiores do que aquele monte”, apontando para uma colina próxima.

Até aqui, tratamos de circunstâncias em que o exercício do perdão é algo requerido do crente muçulmano, isto é, o âmbito das relações humanas em que, embora os direitos de uma pessoa possam ter sido desrespeitados as consequências e os danos não são irreversíveis; ou em que o perdão e a tolerância são meios eficientes para restabelecer a harmonia. Também tratamos de circunstâncias em que a atitude honrada de vencer o mal com o bem pode ganhar os corações e superar a ignorância.

Todavia, quando o malefício produz graves consequências atentando contra a honra, a propriedade, a integridade física de uma pessoa ou de algum dos seus, consequências irreversíveis e duradouras, o mero exercício do perdão não é suficiente. Tais circunstâncias pertencem ao âmbito do estabelecimento da justiça, ou seja, a reparação segundo a lei se faz necessária para restabelecer o direito. Nesse caso, a ofensa ou o prejuízo não se limita ao indivíduo ofendido ou prejudicado, é uma ação que agride o direito de todos, de toda comunidade e o direito de Allah quanto às suas leis e limites. Por conseguinte, outros fatores se tornam determinantes.

É o caso, por exemplo, de um assassinato. Muito embora o perdão de um parente da vítima possa livrar o criminoso da morte, é necessária uma reparação, um ato exemplar perante o direito da sociedade; do contrário se tornaria evidente um incentivo ao mal e a propagação da corrupção na terra, com a ausência de qualquer punição ao culpado. O mesmo se dá com o roubo, a calúnia e a difamação. Há um ponto de grande importância nos preceitos alcorânicos no que tange o trato de questões de conflito envolvendo atitudes criminosas como o homicídio.

Partindo da constatação da própria natureza humana, inclinada ao desejo de retaliação em tais casos, o Livro de Allah não proíbe de modo determinante a vingança, antes, exige da parte ofendida uma retaliação na medida da ofensa; não recrimina a vingança em si (que é um direito do que foi agredido) mas estabelece limites para isso, como demonstram os seguintes versículos sagrados: “E o delito será expiado com o talião; mas, quanto àquele que indultar (possíveis ofensas dos inimigos) e se emendar, saiba que a sua recompensa pertencerá a Deus, porque Ele não estima os agressores. Contudo, aqueles que se vingarem, quando houverem sido vituperados, não serão incriminados. Só serão incriminados aqueles que injustamente vituperarem e oprimirem os humanos, na terra; esses sofrerão um doloroso castigo. Ao contrário, quem perseverar e perdoar, saberá que isso é um fator determinante em todos os assuntos”. (42/40 a 43)

Assim, ainda que o perdão continue ocupando uma posição mais elevada e digna, o direito de vingança (nos casos de grave prejuízo) daquele que tenha sido lesado ou oprimido, permanece assegurado pela lei divina, desde que isso não signifique uma nova injustiça ou uma nova opressão pelo excesso. Contudo, mesmo esse direito de retaliação está sob a lei divina (shariah), não é extensivo ao que primeiro agrediu ou prejudicou, do contrário se alastraria a rivalidade e os desmandos.

Na verdade isso na maioria das vezes se processa por intermédio da aplicação da lei, dentro de princípios jurídicos previamente estabelecidos que garantam justiça na medida certa. Nisso reside o equilíbrio entre a justiça e a misericórdia. Ao se assegurar os direitos individuais, a inviolabilidade da vida, dos bens e da honra das pessoas então sim, o perdão também encontra o seu lugar nas relações pessoais.

Considerações Finais

O exercício da virtude do perdão é, portanto, estabelecido no Islam como algo de alta distinção de fé, mas não se estabelece isoladamente; está ligado à necessidade da justiça e em muitos casos da devida reparação.

Salvo nos casos que envolvem a agressão, o assassinato, o roubo, a difamação, a calúnia, a desonra, o falso testemunho e o prejuízo moral, para os quais a lei (shariah) deve intervir, somente o perdão exercido com sabedoria ou uma atitude honrada devem se estabelecer. O alimentar rancores e desejos mesquinhos de vingança são atitudes dos que se inclinam ao mal e que não confiam na justiça divina. Se queremos manter a porta da misericórdia de Allah aberta para nós, devemos deixar a porta do perdão aberta para os nossos semelhantes. Não que isso signifique insensatez. Cada situação deve ser cuidadosamente avaliada. O Alcorão nos recorda os laços que unem os fiéis dizendo: “Sabe que os fiéis são irmãos uns dos outros; reconciliai, pois, os vossos irmãos, e temei a Deus, para vos mostrar misericórdia.” ( 49/10)

Entre outras coisas, isso significa que uma atitude de receptividade e boa vontade há de ser mantida em circunstâncias de estremecimento das relações e desentendimentos. Em nome da busca de unidade entre os muçulmanos, desde que seja possível, superar as diferenças, animosidades e rancores é a atitude mais coerente com a fé. Esta disposição à concórdia é bem demonstrada na tradição atribuída ao Mensageiro de Allah (S.A.A.S.) que diz: “Não é lícito para um crente muçulmano repudiar o seu irmão por mais de três dias. Portanto passados esses três dias, que vá ao encontro dele e o comprimente com o salam. Se o outro lhe retribuir a saudação, então ambos compartilharão da recompensa, se não, arcará com toda a falta. Além disso, aquele que houver saudado terá se livrado de cometer repúdio.”

Em similar grau de importância está o zelo pelos laços de parentesco, sobre os quais Allah Exaltado Seja, diz no Alcorão: “…e reverenciai os laços de parentesco, porque Deus é vosso Observador.” (4/1)

O que é também uma ordem aos tementes para que respeitem os direitos dos parentes e tenham por eles a mesma boa vontade e receptividade que gostariam de receber nas situações de desentendimento. O rompimento de um laço de parentesco é algo de extrema gravidade e envolve grande culpa, se for motivado por razões mundanas ou vaidades pessoais.

O Alcorão também nos recomenda o exercício do perdão e da tolerância em circunstâncias específicas, tais como em relação aos que nos devem e não possuam meios de saldar sua dívida, como evidencia o versículo sagrado: “Se vosso devedor se achar em situação precária, concedei-lhe uma moratória; mas, se o perdoardes, será preferível para vós, se quereis saber”. (2/280)

Ademais, fazer valer o nosso direito não deve de modo algum equivaler a cometer opressão ou injustiça. Todos os Sahih (biografias) do Mensageiro de Allah (S.A.A.S.) demonstram que ele jamais ergueu sua mão nem sua voz contra criatura alguma, em razão de uma ofensa pessoal. Em todas as circunstâncias em que fez uso da força, o fez em defesa dos direitos de Allah contra os inimigos da verdade e da justiça.

O perdão foi aqui denominado como “virtude” por se tratar de uma ação digna dos que são fortes. Fortes de caráter, de sabedoria e de fé. Os fracos não podem perdoar e não sabem discernir quando ou não devem exercer o perdão.

Decerto que os que sabem perdoar e que também sabem se defender quando necessário, sem cometer atos indignos, possuem uma correta percepção da religião e anelam a recompensa de Allah neste mundo e no além.

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