O Islam e a Concepção de Liberdade

Por: Ahmed Ismail

Um dos aspectos de maior relevância na oposição filosófica entre o Islam e o pensamento ocidental se observa na concepção de liberdade. O estilo de vida predominante no mundo ocidental, resultante de múltiplas transformações históricas, políticas e sociais, se fundamenta numa compreensão bastante confusa da liberdade. Em vista das variadas motivações, idéias e noções correntes no mundo moderno sobre esta questão, é mesmo muito difícil para a maioria das pessoas discernirem sobre o que seria liberdade real, como um valor essencial para o homem, das muitas falsas concepções de liberdade que gravitam na sociedade.

As chamadas liberdades fundamentais do homem, quando devidamente compreendidas, não são objeto de discussão para o Islam. A cidadania, a liberdade de pensamento, o livre-arbítrio e outras modalidades similares desses direitos fundamentais são absolutamente reconhecidos pelo Islam, que, na história, se levantou em defesa de tudo isso muito antes do Ocidente. Entretanto, o Islam, diferentemente do pensamento ocidental moderno, não admite que estes valores fundamentais sejam confundidos deliberadamente para que se valide na sociedade a destruição dos valores éticos e morais e a propagação de costumes libertinos e um estilo de vida materialista.

O processo que gerou esta confusão conceitual no ocidente está ligado a separação do Estado da Religião, processo este ocorrido a partir do século XVII. Após rápidas transformações sociais desencadeadas sobretudo, após a Revolução Industrial, novos valores e costumes se produziram. O surgimento no século XX da sociedade de consumo de massa acelerou este processo e estabeleceu rupturas ainda maiores entre os valores tradicionais e o que entendemos como modernidade.

A própria idéia de “religião” no ocidente tornou-se sinônimo de um ultrapassado conservadorismo, inadequado a perspectiva de modernidade consagrada como um ideal supremo. É fenômeno típico desta época a curiosa ordem de valores onde a religião deixou de guiar o homem para ser “guiada” pelas conveniências do homem, isto é, a idéia de religiosidade só é assimilável na medida que não se oponha aos novos padrões sociais de comportamento e estilo de vida .

É portanto, natural que o Islam, que reivindica sua condição de ORIENTAÇÃO DIVINA E VERDADE PERMANENTE seja entendido pelo pensamento ocidental como mais uma religião, com todas as características consideradas negativas e ultrapassadas pela modernidade.

Alguns pensadores ocidentais, aderentes dessa concepção de modernidade, defendem a tese de que o pensamento da humanidade poderia ser dividido em eras específicas e sucessivas que evoluíram de uma a outra. Essa tese coloca o pensamento religioso como uma etapa ultrapassada pela era do pensamento científico, a qual segundo esses pensadores, está a abrir novos e vastos horizontes. Muito embora essa tese pareça á primeira vista muito razoável, os fatos objetivos, a realidade do homem moderno, o caos social decorrente da fragmentação dos valores éticos e religiosos apontam que esta seja apenas uma meia- verdade.

Um executivo diante de seu computador de última geração pode imaginar-se o homem ideal, o resultado sublimado da escalada da humanidade. No entanto, a realidade é que é apenas um homem, com as mesmas necessidades e fragilidades de um homem pré-histórico, sua ansiedade e seus medos pouco se diferenciam das do homem que está deitado na calçada do prédio onde reside (que jamais provou nenhum benefício da chamada era da ciência), sua brutalidade e ignorância sobre si mesmo, sua ausência de sentido e razão para viver (ainda que camuflada por sua pretensa civilidade) em nada é diferente de um bárbaro de séculos passados.

Na verdade, esse pensamento de que o futuro deve significar o abandono do que entendemos como o “velho” é apenas e tão somente um sintoma típico da sociedade de consumo, uma tentativa de aplicar a superficialidade para anular o essencial. Assim, como há o “novo carro” e o novo produto no mercado, há de existir “o novo homem” os “novos valores” a “nova verdade”.

Há um provérbio chinês que diz que “modernidade” é a palavra mais antiga que existe. Não obstante, a civilização moderna pretende se estabelecer como uma árvore sem raiz, decretando que os valores éticos e religiosos tradicionais se tornaram como velharias obsoletas atrapalhando o caminho do homem para a liberdade.

É oportuno antes de apresentarmos a concepção islâmica de liberdade, analisarmos com mais atenção de que maneira a liberdade é entendida e até que ponto é uma realidade no mundo ocidental.

O princípio da liberdade no pensamento ocidental paulatinamente confundiu-se com uma expressão do individualismo, tendência que por sua vez se afirmou como resultado do enfraquecimento dos princípios éticos e religiosos. O que se pretende ser exercício pleno da liberdade é na maioria das vezes o individualismo que se afirma sem considerar os limites que ferem a dignidade e o respeito próprio e muito menos considerando os direitos alheios. A sociedade de consumo tem como um importante componente ideológico esta concepção enganosa que pressupõe o individualismo como sendo a expressão real da liberdade do homem. As conseqüências imediatas desta falsa concepção de liberdade e do predomínio do estilo individualista da sociedade de consumo são:

– O abandono gradual dos princípios éticos, morais e religiosos, os quais passam a ser entendidos como entraves ao exercício da liberdade tanto quanto se oponham aos costumes típicos de uma sociedade em que a competição e o consumo são as regras dominantes.
– O enfraquecimento dos laços de solidariedade e do respeito aos direitos mútuos, o que torna as relações entre as pessoas conflitantes e superficiais. Este estado de coisas somado ao ímpeto de competição e o abandono dos princípios éticos, morais e religiosos conduz ao incontrolável aumento das transgressões sociais, crimes, fraudes e contravenções. (Sintomas que não podem ser suprimidos apenas com códigos de lei mais severos).
– A inevitável degradação do princípio de liberdade a condição de libertinagem, destruindo a dignidade e o respeito próprio dos indivíduos. Esta conseqüência é especialmente desejável à sociedade de consumo tanto quanto alimente a indústria voltada para a satisfação dos costumes viciosos (drogas licenciadas (bebidas alcoólicas), pornografia, prostituição, etc).

Muito embora sociólogos, psicólogos e pensadores de outras áreas identifiquem e apontem como fator preponderante em muitos desequilíbrios sociais a cultura personalista que a sociedade de consumo legitima e incentiva, prevalecem os altos interesses econômicos envolvidos nesta questão.

Um exemplo disso temos nas campanhas publicitárias e nas regras que são adotadas pela indústria mundial automobilística. As exigências da competição ditam que todos os anos os novos modelos sejam mais possantes para satisfazer os desejos individualistas de seus compradores; ao mesmo tempo as campanhas publicitárias se empenham em incitar os valores do individualismo, aliando a posse de um carro sempre mais veloz á liberdade, ao poder. As pessoas são induzidas a desejar carros que atingem velocidades surpreendentes. Não obstante, as regras de trânsito da maioria dos países restringem os limites de velocidade na busca de garantir segurança. A irresponsabilidade da indústria automobilística (que não difere da irresponsabilidade das indústrias do tabaco e de bebidas alcoólicas) é cinicamente justificada pelas “regras de mercado” e pela política de liberdade de mercado.

Nos cemitérios e nas unidades de terapia intensiva encontraremos muitos dos que acreditaram que a liberdade era uma questão de poder comprar e poder consumir e que acreditaram que eram livres para fazer o que quisessem.

Sob a égide desta mesma mentalidade confusa e enganosa, os recursos do meio ambiente têm sido colocados á mercê de uma máquina cada vez mais destrutiva. Vendemos nosso bem estar e o bem estar das gerações futuras para encher as contas bancárias de uma meia dúzia, esta tornou-se a conseqüência última desse modelo de “Liberdade” apregoado como sendo o ápice da civilização, a era da ciência e da tecnologia.

Mas, e quanto a liberdade? Até que ponto que o cidadão integrado a sociedade de consumo seja nos países ricos ou nos países sub-desenvolvidos a exerce?

É evidente que uma análise detalhada demandaria um longo trabalho em vista das muitas variantes políticas e sociais que os países apresentam. Nas chamadas democracias modernas (dos países ricos) é inegável que os direitos de cidadania se tornaram uma realidade, ao menos para uma parte significativa da população (estão de fora desse âmbito os imigrantes e cidadãos abaixo da linha de pobreza). Basicamente porém, no mundo capitalista liberdade ou o que possa ser entendido como tal não é outra coisa do que poder de consumo (ter dinheiro), logo, o limite de “liberdade” de uma pessoa nestas sociedades define-se por sua condição econômica e ela exercerá essa “liberdade” dentro dos limites que o Estado e a lei permita. Havendo sempre a possibilidade oferecida pela corrupção, para que ela possa pela força do dinheiro transgredir alguns desses limites.

As liberdades políticas e civis como o livre-pensamento, liberdade de credo e de organização parecem ser conquistas importantes da democracia (embora não seja de todo verdade que tenha sido a democracia moderna a precursora desses direitos). Todavia, essas liberdades fundamentais são garantidas tanto quanto não representem ameaça aos interesses dos que detenham o poder econômico e político dessas nações. (O modo como os Estados Unidos, a chamada maior democracia do mundo, tratou seus cidadãos comunistas, os ativistas negros e os pacifistas nos anos 50 e 60 dão uma idéia da dimensão real dessas liberdades citadas).

O ISLAM E A MODERNIDADE

Não há na realidade, no Islam uma oposição intrínseca a modernidade. Os benefícios da ciência e da tecnologia são, na visão islâmica, bençãos para a humanidade. O Islam prestigia a busca do conhecimento útil, aplicado a beneficiar a vida do homem e da sociedade. O que o Islam não aprova é a mentalidade estreita que idolatra a modernidade e que tende a julgar como desejáveis todos os aspectos da evolução científica e tecnológica. Da mesma maneira, o Islam não faz da modernidade um padrão decisivo para os costumes da sociedade.

A CONCEPÇÃO DE LIBERDADE NO ISLAM

De modo similar a visão humanista clássica, o Islam declara que a liberdade é um bem inalienável do homem, entretanto a similaridade conceitual não se origina da mesma concepção. O Islam afirma que a liberdade natural do homem é o seu livre-arbítrio, como o próprio homem e suas demais capacidades a liberdade se desenvolve e alcança sua maturidade quando este exercita seu livre-arbítrio com sabedoria e responsabilidade. Ou seja, um homem só se torna realmente livre quando aprende a exercer seu livre-arbítrio de maneira que isso se torne uma fonte de bem-estar para ele (nesta existência e no além).

Alguém que exerça seu livre arbítrio de maneira irresponsável causando a sua ruína (nesta existência e na outra) é um escravo de suas próprias ações. O Islam não situa a liberdade “no fazer o que se quiser” mas sim, “no aprender a fazer o que trará as melhores conseqüências”.

Sob esta perspectiva, O Islam se apresenta como “o método divino de educar a liberdade do homem” “de educá-lo no exercício de seu livre-arbítrio”.

O conceito de “Livre-arbítrio” é frisado em centenas de passagens do Alcorão. O livro de Allah lembra-nos constantemente que nossos pensamentos, ações e escolhas nos pertencem e que este “livre-arbítrio” sobre nossas vidas é uma Determinação Divina, e não é dado a ninguém o direito de ferir esta determinação. Em seguida o Alcorão nos apresenta com absoluta clareza as ações e escolhas que resultarão em nosso bem estar nesse mundo e na vida futura e as ações e escolhas que resultarão em nossa ruína nesta e na vida futura.

O universo é regido pelas leis divinas, o homem pode se conformar a elas ou mesmo transgredi-las, no segundo caso, é perfeitamente natural que terá que se confrontar com as conseqüências disso, este é um fato, e da mesma maneira que numa empresa, nas ruas da cidade ou em qualquer outro lugar, por mais que os defensores do Hedonismo afirmem o contrário é a realidade que diz que jamais a liberdade pode estar isenta da responsabilidade. As pessoas de modo geral aceitam este fato em relação às leis estatais e da sociedade, porém é curioso que em relação as leis divinas muitas busquem questionar esta realidade.

Com efeito, o homem pode mesmo escolher viver no mundo para apenas fazer o que quiser (desconsiderando as leis divinas) como o pensamento ocidental moderno tem proposto como modelo de sociedade e estilo de vida. Contudo, é inevitável que ao transgredir as leis divinas ele não escapará das consequências disso. Assim, o Islam concebe a liberdade como o exercício consciente da vontade que salvaguarde a dignidade humana, o seu bem estar e a sua felicidade (nesta e na vida futura). De nada serve ao homem exercer a liberdade para ferir sua própria dignidade, arruinar seu bem estar e sua felicidade e todos os preceitos e leis divinas salvaguardam esses bens preciosos.

Allah, o Altíssimo, estabeleceu limites com os quais os indivíduos e as sociedades não se tornem seus próprios inimigos e não promovam sua própria destruição. Um estado Islâmico torna efetiva a Shariah (lei divina) possibilitando que a sociedade como um todo exerça suas liberdades fundamentais sem que os indivíduos tornem sua própria liberdade um instrumento para sua ruína ou para lesar os direitos dos outros.

Como vimos, a concepção de liberdade do Islam difere radicalmente dos sofismas tomados como “exercício da liberdade” pela tendência predominante no mundo não-islâmico. Tal é a extensão do caos que agora se estabelece nessas sociedades que setores mais sensatos tem proposto uma visão revisionista e crítica dos valores éticos e morais. Alguns tem detectado a necessidade da retomada dos valores e ideais humanistas e sem dúvida se não lhes faltasse uma correta percepção das raízes desse dilema histórico veriam que a tradição religiosa é um componente de igual importância. O pensamento laico que se tornou preponderante deu início a essa escalada inglória em que as nações ocidentais se encontram. A preconceituosa visão em relação ao Islam tem impedido que mentes sensatas enxerguem nele uma alternativa real e concreta para a humanidade.

Contudo, as forças que dominam a política e a economia do mundo e que ditam as regras, agem com tal desprezo para com as populações do mundo, perpetram crimes hediondos contra os direitos dos povos e tomam atitudes bárbaras em relação ao meio ambiente para fazer valer suas vontades que é inevitável que essa corrente revisionista se fortaleça e que chegue a conclusão que “nunca foi e nem será possível liberdade no individualismo e que ou a humanidade passa a ser responsável no exercício da liberdade ou sucumbirá diante das conseqüências.

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