Extraído do ensaio do mesmo nome de autoria de Hujjatullah Mohammad Raí Shahrí
Tradução de: Ahmed Ismail
Nos tempos do Profeta (S.A.A.S.) não existiam tribunais como os existentes na atualidade; em outras palavras, não existia um poder judicial diferenciado do poder executivo e do legislativo, com a ampla estrutura de hoje em dia. Ademais, a divisão destes três poderes é algo que basicamente não tem precedentes na história islâmica. A divisão dos poderes não é uma classificação islâmica, ainda que para uma melhor ordenação dos assuntos isto seja adotado na República Islâmica, o que não contraria o Islam.
O que no Islam se pode expor em relação a estes poderes é que: o poder legislativo consiste na Revelação, o judicial nos representantes da revelação e o executivo no estado e seus funcionários, que não tem oficialidade sem a intervenção dos representantes divinos; porém não se pode afirmar que tal separação tenha um caráter islâmico.
No início da missão profética, quando o número de muçulmanos era escasso, naturalmente, havia muito poucos casos de caráter judicial, portanto não existia a necessidade de um aparato judicial, exceto que nos casos pertinentes, era a pessoa do Profeta (S.A.A.S.) que emitia os juízos.
Depois da emigração para Medina e de ter-se estendido paulatinamente a influência do Islam nas tribos árabes, aumentaram os requerimentos da sociedade islâmica a esse respeito, de forma que pouco a pouco o Mensageiro de Allah (S.A.A.S.) já não contava com tempo para julgar pessoalmente a todos os casos. Aparentemente a primeira pessoa a que o Profeta (S.A.A.S.) designou como juiz foi Imam Ali (A.S.). O Imam (A.S.) se refere a seu envio como juiz ao Yemen da seguinte maneira: “O MENSAGEIRO DE ALLAH (S.A.A.S.) ME COMISSIONOU COMO JUIZ DO YEMEN. EU LHE DISSE: Ó MENSAGEIRO DE ALLAH! SOU JOVEM E TU ME ENVIAS COMO JUIZ EM MEIO A PESSOAS DE IDADE E DE EXPERIÊNCIA “O PROFETA RESPONDEU: ALLAH TE GUIARÁ PARA QUE TU RECONHEÇAS A VERDADE E AFIANÇARÁ TUA LÍNGUA PARA ESTABELECER O QUE TU DETERMINARES. QUANDO AMBAS PARTES EM LITÍGIO SE ENCONTREM DIANTE DE TI, NÃO JULGUES ANTES DE ESCUTAR A OUTRA PARTE ASSIM COMO ESCUTASTE A PRIMEIRA, VISTO QUE NOS ASSUNTOS JUDICIAIS ISTO É O ADEQUADO PARA DETERMINAR UMA SENTENÇA.” DESSA MANEIRA FUI DESIGNADO COMO JUIZ, CARGO QUE DETENHO ATÉ O PRESENTE.”
O âmbito do governo islâmico se estendia não obstante continuasse a carência de meios de estabelecer um aparato judicial. Assim, o Profeta (S.A.A.S.) se viu enfrentando uma grave insuficiência de elementos para o serviço judicial, razão pela qual, nos casos necessários, designou pessoas pouco experimentadas que só possuíam conhecimentos primários sobre o sistema judicial do Islam e lhes dava as indicações necessárias para que pudessem cumprir seu trabalho. Um desses foi o caso do envio como juiz de Muqil ibn iasar, o próprio Muqil relata: “O Mensageiro de Allah (S.A.A.S.) me encarregou como juiz para minha própria gente, disse-lhe: “ö Mensageiro de Allah! Não vejo em mim o preparo para essa responsabilidade.” O Profeta (S.A.A.S.) disse: “ Não há inconveniente. Allah ajuda ao juiz enquanto este não viole de forma intencional os direitos das pessoas.” (repetindo esta última frase 3 vezes).
É evidente que se o Mensageiro de Allah (S.A.A.S.) tivesse pessoas suficientes que reunissem condições idôneas, jamais teria designado pessoas como Muqil que pessoalmente reconhecia não ser versado nos assuntos judiciais.
OS JULGAMENTOS NA PRESENÇA DO PROFETA (S.A.A.S.)
Com o passar do tempo, a tarefa do Profeta (S.A.A.S.) tornou-se demasiada, que com dificuldade podia ele ocupar-se com os casos. Por isso, afim de educar as pessoas para tal tarefa, foi necessário que os encarregasse para julgar, em Medina mesmo e inclusive na sua presença.
Um destes casos é narrado por Uqbal ibn Amir: “Um dia me encontrava com o Profeta (S.A.A.S.) quando duas pessoas, que eram partes em um litígio, se dirigiram a ele para que julgasse a questão. O Profeta (S.A.A.S.) me disse para que eu os julgasse. Eu disse: Ó mensageiro de Allah, tu és o mais apropriado para isso! E respondeu: “Julga entre eles!” Perguntei: “Com base em que devo fazê-lo? “Disse: “Esforça-te em julgar mediante o que se constitui na verdade e as leis divinas. Depois disso, se não te equivocas e se tua sentença corresponde a realidade, terás dez recompensas e se te equivocas, só terás uma.”
Até o falecimento do Profeta (S.A.A.S.) o mundo islâmico carecia de uma estrutura judicial ordenada. Esta situação perdurou até o califado de Abu Bakr e até meados do califado de Umar.
Ibn Khaldun escreve o seguinte a esse respeito: “O cargo de juiz é uma das funções do califa, posto que serve para dirimir as desavenças entre o povo, no sentido de suas acusações mútuas sejam solucionadas e cessem as controvérsias e discussões. Isso deve ser realizado conforme as normas da Shariah que se extrai do Livro de Allah e da tradição do Profeta (S.A.A.S.). É por isso que se contava entre as funções e tarefas comuns do califado. Os califas, nos primeiros tempos do Islam investiam -se desse cargo e não o delegavam”.
Em meados do califado de Umar, durante o qual os muçulmanos obtiveram grandes conquistas e começaram a estabelecer-se como uma grande potência no mundo, quanto mais se estendia o domínio do estado islâmico e a vida simples dos muçulmanos ia adquirindo tons de bonança, aumentaram as transgressões sobre os direitos dos demais e os litígios judiciais. Essa é a razão pela qual Umar decidiu estabelecer um sistema oficial de justiça na proporção do estado.
Ibn Khaldun escreve: “O primeiro califa que delegou esta função a outros foi Umar que comissionou a Abu Darda em Medina para ajudá-lo, a Shuraih e Abu Musa Al Ash’ari em Kufa…” Pouco a pouco foi designado um juiz para cada cidade.
OS JULGAMENTOS NOS PRIMÓRDIOS DO ISLAM
Ao dizer que aos meados do governo de Umar havia um sistema judicial de caráter oficial, não significa que a sociedade islâmica de então desfrutava de uma completa estrutura administrativa, já que os elementos judiciais eram bastante simples e primários: “A casa do juiz era também o tribunal. Depois, os juízes escolheram as mesquitas para realizar seu trabalho e nas tardes se ocupavam dos casos judiciais do povo, inclusive dos Ahlul dhimmah (dos cristãos e judeus que viviam sob a proteção do governo islâmico).
Durante os tempos do Profeta (S.A.A.S.), de Abu Bakr e de Umar, as mesquitas não serviam apenas de tribunal como também de prisão, porém o Imam Ali (A.S.) criou espaços separados para serem prisões.”
Não existia investigação, nem elaboração de autos, apenas as partes se apresentavam na casa do juiz ou na mesquita junto com sua provas, que geralmente consistiam de testemunhas ou juramentos, o juiz emitia uma sentença nessa mesma sessão.
O PROBLEMA DO APARATO JUDICIAL DE UMAR
O problema do aparato judicial que Umar estabeleceu, consistia em que os juízes careciam das condições que a lei divina dispõe. Muitas vezes ocorria que o juiz não sabia qual era a norma do Islam a respeito de uma questão e como deveria ser sua decisão, inclusive em muitas situações em que o caso se dirigia a própria pessoa de Umar, este tampouco podia emitir um juízo categórico e ordenava que se dirigissem a Imam Ali (A.S.). Em relação a isso repetidas vezes Umar declarou: “Deus meu! Não me destines um dilema para o qual não esteja presente Abul Hasan (Ali)!” Também é sabido que dizia: “Se não fosse por Ali, Umar teria perecido” e “O mais capacitado como juiz entre nós é Ali”.
O SISTEMA JUDICIAL DO ISLAM NA ÉPOCA DO IMAM ALI (A.S.)
Os tribunais que Umar tinha implantado permaneceram desta forma até a época de Amir al Muuminin Ali (A.S.), e inclusive em alguns casos com os mesmos juízes. Depois que o Imam assumiu o poder, enfrentou dois problemas fundamentais, já que não podia eliminar os tribunais existentes nem tampouco permitir que o sistema continuasse dessa maneira. Se eliminasse os tribunais como cobriria as crescentes necessidades de justiça do estado islâmico? E se não os eliminasse permaneceriam em seus postos juízes incompetentes. A solução do Imam (A.S.) foi confirmar os juízes em seus postos já que não tinha outro remédio, porém proibindo-lhes de efetivar as sentenças antes de serem aprovadas por ele próprio, algo análogo ao que acontece hoje em dia como sentenças de arresto de bens ou execução, que devem ser aprovadas pelo tribunal superior.
Um dos casos foi registrado nos livros de Hadith e de história, a confirmação de Shuraih em seu posto, que ostentava o cargo de juiz desde a época de Umar e que até a chegada de Imam Ali (A.S.) ao califado era um juiz com plenos poderes, cujas sentenças eram cumpridas imediatamente depois que as emitia. Porém, logo o Imam (A.S.) limitou suas faculdades, mantendo-o em seu posto com a condição de que não executasse uma norma antes de consultá-lo. Salamah Ibn Kuhail disse que escutou a Imam Ali (A.S.) dizer a Shuraih: “Guarda-te de executar um caso que tenha que aplicar o talião, um hadd, ou um haqq ou um direito dentre os direitos dos muçulmanos até que me consulte”.
Entre os esforços de Imam Ali (A.S.) para corrigir as deficiências, está sua ordem aos governadores das diferentes regiões, de reconhecer as pessoas que reuniam as condições de idoneidade e designa-las ao cargo dos assuntos judiciais do estado. Ele se encontrava empenhado nessa grande tarefa quando foi assassinado pelos hipócritas enquanto dirigia a prece na mesquita. Com seu martírio, o destino da sociedade islâmica em geral e do sistema judicial do Islam em particular, caiu em mãos de pessoas que, em nome do Islam cometeram crimes que denegriram sua história.
AS PARTICULARIDADES DE UM JULGAMENTO NO ISLAM
A palavra QAD’A’ no idioma árabe, tem significados diferentes. O autor de Jawahirul Kalam menciona até 10 significados para esta palavra (anúncio, sentença, conhecimento, dito, disposição, ordem, ação, fala, culminação, vazio) porém, o que diz respeito a nosso estudo é significado de sentença ou juízo.
Quando os magos do Faraó viram que o bastão de Moisés (A.S.) se converteu em uma serpente que devorou sua magia com forma de serpentes adquiriram a certeza de que Moisés (A.S.) era na realidade um profeta de Allah e creram em sua mensagem. O faraó enfurecido sentenciou que lhes cortassem uma mão e um pé e que lhes crucificassem. Ao ser emitida a sentença os magos disseram: “POR AQUELE QUE NOS CRIOU, JAMAIS TE PREFERIREMOS ÀS EVIDÊNCIAS QUE NOS CHEGARAM! EMITE O JUÍZO QUE TE APROUVER…” (S.20 – V.72)
Como se pode observar, aqui se usa o vocábulo QA’DA com o sentido de sentença (juízo), na acepção deste termo para os Ulama’u significa: “autoridade para emitir um juízo, a qual o governo islâmico delega á pessoas que possuem idoneidade para exercê-la.” (as vezes, usa-se o sinônimo HUKM).
A DIFERENÇA ENTRE FATWA E QA’DA’
Ainda que tanto fatwa e qa’da tenham o mesmo significado de juízo a diferença consiste em que o juízo em relação a fatwa é geral enquanto que em relação a Qa’da’ é particular. A fatwa é uma lei e o Qa’da’é a efetivação de uma lei. O Mufti deduz uma lei divina, enquanto o Qa’di a executa. O Mufti é quem expõe o fato de que é ilícito violar os direitos dos demais, enquanto o Qa’di é quem devolve um direito a seu dono.
Outra diferença entre o Qa’da e a fatwa é que a declaração de um Mufti ou Faqih, não é aplicável para outro Mufti nem para quem segue os ensinamentos deste. Por outro lado, o Qa’da de um Qadi não só é aplicável para outro Faqih ou Mufti como também o seu acatamento é indispensável, mesmo se não for em acordo a sua própria opinião ou declaração.
O QA’DA’ NO ISLAM
Do ponto de vista islâmico a posição do juiz, assim como é uma das mais delicadas e importantes, é uma das mais comprometidas. No Islam o juiz é um representante de Allah e uma pessoa de virtude e méritos, e dependendo de seu comportamento pode ser mesmo catalogado dentre os piores seres. Imam Ali (A.S.) dirigiu-se ao Qa’di Shuraih da seguinte maneira: “Ó Shuraih, assumiste um cargo que não é ocupado senão por um Profeta, um sucessor de um profeta ou um perverso.”
Vejamos então que particularidades tem um juiz, sem as quais esse cargo dos Profetas e de seus sucessores, ante aos olhos dotados de discernimento, se converte em uma das posições mais deploráveis e repugnantes.
A REPRESENTAÇÃO DE ALLAH
“Ó DAVÍ, POR CERTO QUE TE ELEGEMOS COMO REPRESENTANTE NA TERRA, JULGA, POIS, ENTRE AS PESSOAS, MEDIANTE A VERDADE E NÃO SIGAS AS PAIXÕES…” (S. SAD – V. 26)
A primeira característica de um juiz no Islam e o que é o fundamento de todas as outras particularidades é a condição divina de sua designação, sendo o juiz um representante de Allah. Em qualquer outro sistema esse atributo é somente um cargo social, como o é de representante, ministro, presidente ou governador. Porém, no sistema dos Profetas e do Islam a questão é diferente, já que não se considera a este um cargo social, mas sim, divino.
Ainda quando uma pessoa é posta nesse cargo numa sociedade para exercer um cargo social, o Islam o considera como um cargo divino.
Aqui surge a seguinte questão: Qual a diferença de um cargo social e um cargo divino? Num nível social, um cargo é outorgado com base na lei. Por exemplo, quando num governo ditatorial alguém quer ser nomeado governador deve ser nomeado pelo rei, ditador ou presidente. Em um governo democrático (supondo que exista no mundo um governo realmente democrático) esses postos são repartidos entre as pessoas mediante leis e normas.
Todavia, com respeito aos cargos divinos, estes só podem ser outorgados por Allah e seus Enviados ou representantes. Alguns destes cargos só são designados por Allah, como a profecia, a respeito da qual, ainda que a totalidade de todos os profetas e de seus sucessores e todas as pessoas que já tenham existido no mundo se reunissem e decidissem que tal pessoa deveria ser profeta e dirigir a sociedade com caráter de enviado divino, isso não se concretizaria. Existem alguns cargos que podem ser outorgados por um profeta ou sucessor. Um deles é o de juiz. Em outras palavras, os cargos sociais são outorgados por um homem a outro, enquanto os cargos divinos são outorgados por Allah, seja diretamente (como a profecia) ou através de um intermediário (como a posição do juiz). Com base nisto, as pessoas podem designar advogados, ministros e presidentes, porém num governo islâmico não é permitido que designem os juízes. Unicamente Allah, Glorificado Seja, e seus representantes podem fazê-lo.
A expressão mais precisa em relação ao esclarecimento da condição divina do cargo de juiz, é a manifestada pelo autor de AL JAWAHIR, no qual o eminente Faqih diz: “É um ramo da árvore do Imamato do Profeta (S.A.A.S.) e de seus sucessores (A.S.).” A evidência da condição divina do ato de julgar, consiste em que o juízo é exclusivo de Allah. O sagrado Alcorão expressa claramente:
“O JUÍZO PERTENCE (APENAS) A ALLAH” (S. YUSUF – V.40)
“DIZE: DEUS MEU, ORIGINADOR DOS CÉUS E DA TERRA! CONHECEDOR DO INVISÍVEL E DO VISÍVEL TU JULGAS ENTRE TEUS SERVOS ACERCA DAQUILO QUE DISCORDAM”. (S. ZUMAR – V. 46)
Estes versículos evidenciam que Allah julga naquilo que as pessoas discordam e deixam claro que o juízo lhe é exclusivo, com base no fato de que é o Originador dos céus e da terra e conhecedor do invisível. Estando ciente dos segredos da criação, das inclinações e do íntimo das pessoas. Só o criador possui essas características e por isso somente ele pode Julgar. De que maneira Allah realiza essa ação? Direta ou indiretamente? A resposta é evidente, posto que não é possível que Allah realize na forma direta (na forma que entendemos como direta). Ele comissionou para isso representantes, outorgando-lhes direitos para que julguem com base nas regras que ELE mesmo dispôs.
No versículo supra-citado (sobre Davi(A.S.)) se expõe o ato de julgar como conseqüência da representação divina. Assim, o juízo é um dos ramos que derivam da profecia e da wilayah ou supremacia outorgada divinamente. Esta ramificação denota que a representação de Allah é que outorga ao ser humano a posição de juiz.
Umar Ibn Hanzhalah perguntou ao Imam Sádiq (A.S.) o seguinte: “Dois seguidores de nossa escola, que discordaram em relação a uma dívida ou uma herança, se dirigiram até o Sultão e ao juiz que este designou. Acaso isto é considerado lícito pela Shariah? O Imam (A.S.) respondeu que aquele que recorre a estes, sendo em relação a um direito legítimo ou falso, recorreu a um ídolo, o que Allah proibiu, os bens envolvidos no ato se consideram ilícitos, ainda que se tenha estabelecido seu direito, já que se tenha baseado no juízo de um tirano, enquanto Allah tenha ordenado não obedecer a um tirano e sim renegá-lo.”
Um ponto a se destacar em relação aos representantes judiciais divinos, que o Alcorão mencionou claramente, é que estes representantes possuem faculdades limitadas pelas mesmas leis que Allah determinou, ou seja, um juiz não tem direito de julgar baseado em sua opinião pessoal, sem levar em conta as normas divinas, ou basear-se em outras leis e regras senão as divinas, ele deve restringir-se a elas.
DIZ O SAGRADO ALCORÃO:
“POR CERTO QUE REVELAMOS O LIVRO MEDIANTE A VERDADE PARA QUE JULGUES OS HUMANOS PELO QUE ALLAH TE INDICA.” (S.NISA – V.105)
Tendo em conta que o juiz no governo islâmico é um representante de Allah e que suas faculdades são restritas à lei divina, isso implica em uma carga extraordinária sobre os ombros dos juízes, desde que em cada sentença que emitem devem considerar o que estão a fazer com a representação de Allah. Ao firmar uma sentença um juiz deve recordar o seguinte ayat sagrado: “…E NO DIA DA RESSURREIÇÃO VERÁS AQUELES QUE MENTIRAM ACERCA DE ALLAH COM SEUS ROSTOS ENEGRECIDOS”. (S. ZUMAR – V.60)
Se o juiz não tem argumentos e provas de que a sentença que quer emitir corresponde ao juízo divino e ainda assim o faz, sem dúvida converte-se em um daqueles que são referidos neste ayat sagrado: “ DIZE: ACASO FOI ALLAH QUEM LHES DEU SUA PERMISSÃO? OU ACASO FORJAIS MENTIRAS ACERCA DE ALLAH?” ( S. YUNUS – V. 59)
AS LEIS DIVINAS
“MAS AQUELES QUE NÃO JULGAM EM ACORDO COM O QUE ALLAH REVELOU, EM VERDADE ELES SÃO OS PERVERSOS (TIRANOS).” (S. 3 – V. 45)
A segunda particularidade do ato de julgar no Islam se relaciona ao critério e referência em que se fundamenta para ditar as normas que emitem o tribunal. O referencial para julgar são as leis divinas, enquanto nos demais sistemas judiciais, os juízos emitidos nos tribunais e julgamentos se baseiam em leis humanas. Nos governos não-islâmicos, tanto no passado como no presente, as normas que promulgam estão baseadas no pensamento humano; porém no Islam as coisas são de outra maneira. Estes dois tipos de leis só se assemelham em sua condição de lei, pois as diferenças entre ambas são de caráter essencial.
A diferença entre as leis divinas e as humanas consiste em que as primeiras se tem em conta as necessidades do ser humano, enquanto que nas últimas, o que se considera são os desejos e aspirações do ser humano. Este ponto é bastante sutil e delicado e é para se ter em conta ao desejarmos conhecer o sistema de governo islâmico.
Uma câmara de representantes islâmicos que segue as leis divinas, leva em conta as necessidades da sociedade (a partir de bases islâmicas), porém o que uma de representantes democráticos segue é o desejo e as aspirações da maioria. Dessa maneira, uma câmara de democratas se assemelha a um congresso de médicos que aprovam a comida que a maioria dos enfermos desejam, ainda quando esta lhes é prejudicial. É assim que quando a maioria da sociedade aprova o consumo de bebidas alcoólicas, o congresso não pode proibi-las, ainda que a totalidade de seus representantes conheçam em detalhes seus prejuízos corporais e psíquicos. De modo contrário, uma câmara de representantes islâmicos nunca pode aprovar o que é reconhecidamente prejudicial para a sociedade, ainda que a totalidade da mesma o deseje.
As leis divinas em que se baseiam os tribunais islâmicos, se fundamentam sem exceção nas reais necessidades do ser humano, ou seja que o Criador deste, tenha determinado, Ele que conhece os segredos e capacidades de sua completa criação, sabe muito bem quais as necessidades da espécie humana e que leis são indispensáveis para cobrir seus requerimentos e chegar alcançar a compreensão de sua criação, o que consiste em seu aperfeiçoamento. Ele sabe bem o que é que pode fazer florescer as capacidades de desenvolvimento existentes no ser humano, e o que impede o desenvolvimento das mesmas, assim como sabe o que é que deve ser considerado obrigatório e necessário, no que está relacionado ao aperfeiçoamento das pessoas e o que deve ser considerado proibido e ilícito ao constituir um impedimento para tal desenvolvimento. Basicamente, essa é a única filosofia da religião, e são estas mesmas disposições divinas que constituem o referencial de um tribunal islâmico.
A FILOSOFIA DO QA’DA NO ISLAM
Este é um ponto delicado. A justiça islâmica consiste em tornar efetivas as leis e princípios que fazem florescer as capacidades de desenvolvimento do ser humano, e previnem o surgimento de impedimentos que cerram o caminho do aperfeiçoamento. As penas impostas aos criminosos são precisamente para romper essas barreiras. Porém, a filosofia do ato de aplicar a justiça nos tribunais democráticos é romper as barreiras que existem para as pretensões e os caprichos humanos. É por este motivo que num estado islâmico se proíbe aqueles que dirigem uma casa de jogos e corrupção, enquanto num governo democrático se pune ao que cria obstáculos a “atividade livre” dos cidadãos. Nisto reside a evidência das palavras de Imam Ali (A.S.) de que o cargo de juiz não é ocupado senão por um profeta, por um sucessor de um profeta ou por um perverso. Ao aprofundar as referências do Qa’da, chegamos as palavras do Alcorão que catalogam como incredulidade, tirania e corrupção o juízo que não se baseia nas leis divinas:
“MAS QUEM NÃO JULGUE CONFORME O QUE ALLAH REVELOU, EM VERDADE SÃO ELES OS DESCRENTES.” (5: 44)
“MAS QUEM NÃO JULGUE CONFORME O QUE ALLAH REVELOU EM VERDADE SÃO ELES OS TIRANOS.” (5: 45)
“MAS QUEM NÃO JULGUE CONFORME O QUE ALLAH REVELOU EM VERDADE SÃO ELES OS CORRUPTOS.” (5: 47)
No idioma árabe o significado original da palavra kufr (descrença) é de ocultar, o de dzulm (tirania ou opressão) é “dispor algo fora de seu lugar”, e de fisq (corrupção) é de “sair de seu curso correto”, cujo sentido original é usado para indicar que uma tâmara sai de sua casca. Os juízes que não julgam com base nas leis e critérios divinos são denominados kafirun porque deixam oculta a verdade, posto que não tomam em consideração as necessidades reais do ser humano. A causa de que o juízo destes não seja de acordo a essas necessidades essenciais, são dzalim posto que julgam de uma forma que não corresponde ao verdadeiro propósito. A causa de que seu juízo se tenha desviado da natureza primordial é um fasiq, já que, mediante sua forma de julgar, se apartou do caminho da verdade, ultrapassando os limites da realidade que corresponde a esses juízos.