A constatação, agora inquestionável, da ameaçadora situação ambiental produzida pela intervenção humana, tem enfim mobilizado a comunidade internacional para uma séria tomada de posição, após décadas em que os alertas dos ambientalistas foram sistematicamente ignorados e mesmo ridicularizados pelo poder político e econômico do mundo. A aderência a um modelo de desenvolvimento baseado na exploração sem limites dos recursos naturais, o qual caracteriza o capitalismo desde seu surgimento e que se estabeleceu de modo predominante com a revolução industrial, coloca a humanidade neste momento num dramático impasse: a insustentabilidade desse modelo, não apenas pelas graves conseqüências que produzirá a médio e longo prazo, mas também pela incapacidade do planeta em suprir a crescente demanda da “máquina de produção e consumo”, exige a adoção de uma nova forma de relação com o meio-ambiente. A questão adquire um aspecto assustador desde que ao se avaliar a mentalidade do lucro que tem dirigido as decisões políticas, fica evidente sua natureza irracional e calculista. Diante de um futuro desastroso para as próximas gerações, e por outro lado, a manutenção do atual modelo predador de produção e acúmulo de riquezas, é provável que o restrito grupo que controla o sistema utilizará de toda sua influência para adotar e “fabricar” medidas paliativas e enganosas para perpetuar a exploração predominante.
Quando nos deparamos com as declarações triunfalistas acerca da “animadora situação da economia mundial”, ou dados como os que demonstram que os três homens mais ricos do mundo possuem um capital equivalente ao PIB dos quarenta oito países mais pobres do mundo, concluímos que uma mudança radical planejada e executada pelos detentores do poder econômico e político é uma esperança de um otimismo próximo a ingenuidade. Na realidade, a questão se a humanidade conseguirá ou não evitar uma colapso ambiental se encontra ligada a uma outra questão: O que nos trouxe a este ponto? Somente com uma honesta reflexão sobre esta questão e uma sincera determinação em abandonar as falsas concepções e prioridades, o gênero humano será capaz de superar esse impasse.
1.
Filósofos e pensadores modernos têm se dedicado a investigação sobre quais seriam as causas ou a natureza das inclinações humanas que produziram a atual situação ambiental, e sobre quais seriam as alternativas viáveis.
As respostas para essas duas questões não se encontram fora do próprio homem. O Islam e todas as demais tradições religiosas do passado apresentaram claramente a natureza do problema, e também delinearam em linhas gerais a conduta humana nesse aspecto, porém, a humanidade escolheu um outro rumo. O conhecimento espiritual milenar tem sido por séculos considerado um “entrave” a visão de progresso e desenvolvimento, uma vez que o modelo predominante para este progresso e desenvolvimento corresponde ao padrão da ganância humana. Os avanços tecnológicos e as conquistas científicas durante o processo desse desenvolvimento foram superestimados pela humanidade que, encantada pelo novo mundo que se descortinava e principalmente, pelas imensas possibilidades que se apresentavam, adotou o cientificismo como sua nova e definitiva diretriz.
“Dominar a natureza” tornou-se a suprema realização humana. O advento da ciência moderna e a revolução industrial prenunciavam o triunfo da humanidade “pela ciência e tecnologia”. Todo o legado espiritual e filosófico que não corroborasse tal visão foi abandonado à condição de obscurantismo e apego ao passado. Entretanto, não devemos concluir com isso que o mal se encontrava na ciência. Ao contrário das muitas análises equivocadas que afirmam um conflito essencial entre religião e ciência, jamais o conhecimento espiritual autêntico das grandes tradições religiosas se opôs ao conhecimento científico ou ao progresso humano. A natureza do problema, sob o ponto de vista das tradições religiosas milenares, residia na ganância humana e em sua crença cega no cientificismo. Em razão desses dois fatores a ciência moderna no século XIX deixou de ser um método para o conhecimento da natureza, se transformando numa ferramenta para a consecução dos objetivos da ganância humana e mais do que isso, uma espécie de “ídolo” para a humanidade e uma filosofia que reduzia todas as realidades à matéria.
Este cientificismo começou a ruir no decorrer do século XX. As conseqüências deletérias de sua ação sobre o planeta e o próprio avanço científico serviram para iluminar a mente de grandes cientistas que não só passaram a questionar a “deificação da ciência” como também reavaliaram seu postulado puramente materialista. Contudo, a ganância humana já operava por meio de uma gigantesca máquina de exploração dos recursos naturais, para a qual a ciência era apenas mais um servidor, e assim, o século XX foi o século da massiva agressão ao meio ambiente, numa escala inédita na história da humanidade. De qualquer maneira, o cientificismo foi um dos fatores que produziram no homem moderno a falsa percepção de sua total desconexão com a natureza e mais ainda, a desconsideração a qualquer possível valor transcendente nela. Esta visão que reduz a natureza a uma mera fonte de riquezas exploradas e transformadas em lucro resultou no atual modelo de economia global ou capitalismo global.
Se a origem do problema, como afirmamos, não se encontra no pensamento científico, o qual não pode ser responsabilizado pela mentalidade predadora e materialista, também não se encontra no pensamento religioso fundamentado nas diversas tradições religiosas milenares. Alguns filósofos ocidentais modernos como o britânico Arnold Toynbee têm abraçado a idéia errônea de que “a crença da criação do mundo para o Homem e de que a este pertença tudo o que nele há” crença comum às tradições monoteístas, seria responsável pelo processo destrutivo que a humanidade engendrou nos últimos séculos. Segundo esses filósofos, tal crença traria implícita a justificativa moral para que o homem agisse como quisesse em relação aos recursos naturais, sem que considerasse quaisquer limites ou escrúpulos na exploração da natureza.
Esta é uma teoria que se baseia numa análise bastante superficial da questão. Ignora completamente os fundamentos da perspectiva das tradições monoteístas sobre o caráter da natureza e da posição que o homem ocupa nela. Na realidade, a absurda justificativa citada não encontra qualquer base nos ensinamentos e na interpretação original quer seja do Judaísmo, do Cristianismo ou do Islam. Ao contrário, encontramos uma profunda tradição ética de reverência a criação nas três tradições religiosas.
Os filósofos aderentes dessa suposição erram ao confundir o ensinamento milenar, fundamentado nas Escrituras das tradições monoteístas, com a interpretação distorcida de um grupo restrito de teólogos católicos da Idade Média, seguidos séculos mais tarde por alguns grupos sectários protestantes que, tomando num sentido literal as Escrituras forjaram “uma base doutrinária e messiânica” para o colonialismo Europeu. Esta interpretação obscurantista (que também justificava a dominação dos outros povos e a escravidão) não pode de modo algum ser atribuída a tradição monoteísta. Sua forte influência no pensamento cristão ocidental a partir do século XVI se deveu ao processo histórico ocorrido na Europa e à própria secularização da religião no Ocidente, e não se pode dizer em razão disso que o Cristianismo ou a tradição monoteísta como um todo, tenha produzido uma justificativa religiosa para a exploração ilimitada dos recursos naturais.
O lema “Dominar a Natureza” sintetiza a essência do problema. O sentimento que o inspira é bastante evidente: a ganância. Sua origem não é religiosa nem científica, tampouco filosófica; ainda que em certos momentos da história os agentes da exploração desenfreada tenham buscado justificativas científicas, religiosas e filosóficas para o crime que perpetravam. A crença num “domínio da natureza” parte do falso pressuposto de que o homem seria um ser separado da natureza e por conseguinte, a relação do homem com o meio-ambiente deveria ser a de “conquista” e que tal conquista traria a humanidade um bem-estar e uma prosperidade sem precedentes na história. As conseqüências dessa mentalidade começam agora a ser sentidas.
A crença num “domínio sobre a natureza” baseia-se numa profunda ignorância sobre a existência do homem e do universo, sobre a interrelação intrínseca que possibilita a vida em nosso planeta. Realidades perfeitamente conhecidas pelos povos e culturas antigas e enfatizadas no Islam e em muitas tradições religiosas milenares, como veremos a seguir.
2.
O Alcorão apresenta em grande número de versículos sua visão ontológica da natureza e as realidades ligadas a criação. Alguns desses versículos abordam características determinantes e de grande importância para que possamos entender o universo do qual fazemos parte. A existência, em todas as suas manifestações, segundo o que o Islam ensina, não é uma realidade absoluta, mas um véu que cobre sua essência transcendente. Esta é a definição dada pela gnose islâmica na qual o mundo e tudo o que nele há, é manifestação dos Nomes e Atributos da Verdade Suprema (Deus). Com efeito, o Alcorão nos apresenta esta natureza essencial manifesta na criação, o que significa que não temos o direito de considerar a natureza algo sem significado ou transcendência.
O seguinte versículo fundamenta o princípio de que o universo e que todos os seres que o compõem são manifestações da Palavra Divina. O fenômeno da criação é apresentado como um processo contínuo da manifestação do Verbo do Altíssimo:
AINDA QUE TODAS AS ÁRVORES SE CONVERTESSEM EM CÁLAMOS E O OCEANO(EM TINTA) E LHES FOSSEM SOMADOS MAIS SETE OCEANOS, ISSO NÃO EXAURIRIA AS PALAVRAS DE DEUS…(31:27)
Assim, o Sagrado Alcorão enfatiza a consciência da Origem Divina, isto é, ensina o homem a dirigir sua reverência e adoração ao Criador Todo-Poderoso reconhecendo seu Poder e Sabedoria na grandeza de sua criação, dizendo:
E ENTRE OS SEUS SINAIS, CONTAM-SE A NOITE E O DIA, O SOL E A LUA.NÃO VOS PROSTREIS ANTE O SOL OU A LUA, MAS PROSTRAI-VOS ANTE DEUS, QUE OS CRIOU…. (41:37)
O versículo acima estabelece o correto discernimento que permite ao homem libertar-se da condição de ignorância que o leva a divinizar a natureza e cultuá-la (panteísmo), pelo reconhecimento de que toda a vasta rede de interdependências que forma a vida do universo foi criada e é mantida pelo Poder e a Bondade de Deus Altíssimo.
Se por um lado, o Sagrado Alcorão nega o caráter divino a criação (no sentido de entidade divinizada, a ser adorada) definindo-a como Sinal do Poder de Deus e manifestações da Palavra Criadora, por outro, apresenta os seres animados e inanimados como entidades vivas, o que de fato, pressupõe que, no reconhecimento dessa condição de Manifestação da Palavra Divina está implícito o respeito a todas as formas de existência. Por conseguinte, a atitude de agressão ou abuso dos recursos naturais constitui segundo o ensinamento islâmico, Dzulm (injustiça) para com a criação e ingratidão para com Deus Altíssimo.
Outro relevante aspecto dos fenômenos e forças naturais que o Sagrado Alcorão ressalta é a ligação entre as bênçãos e a punições divinas que, eventualmente se manifestam por meio da natureza. Ao ser relatada no Alcorão a exortação do Profeta Nuh (as) a seu povo é dito: DEPOIS EXORTEI-OS ABERTA E PRIVATIVAMENTE, DIZENDO: IMPLORAI O PERDÃO DE VOSSO SENHOR, PORQUE É INDULGENTÍSSIMO., VOS ENVIARÁ DO CÉU COPIOSAS CHUVAS… (71:9 a11).
Também nas tradições encontramos diversos dizeres do Santo Profeta e dos Ahlul Bait sobre a ligação entre a predominância da injustiça e da transgressão nas sociedades e o desequilíbrio natural manifesto em secas e mesmo catástrofes naturais. As histórias de povos e civilizações antigas como A’ad e Çamud que foram destruídas por fenômenos naturais em virtude de sua rebeldia e opressão, apontam para a realidade da Punição Divina por meio da natureza.
Ao afirmar a condição de entidade viva a natureza, o Sagrado Alcorão nos revela que todas as partes (seres) componentes da criação possuem, segundo sua natureza um grau de consciência que as permite reconhecer a Realidade Última da Criação glorificando seu Criador, assim, o Alcorão nos diz:
“TUDO QUANTO EXISTE NOS CÉUS E NA TERRA GLORIFICA A DEUS…”(62:1)
“NÃO REPARAS ACASO, EM QUE TUDO QUANTO HÁ NOS CÉUS E NA TERRA GLORIFICA A DEUS, INCLUSIVE OS PÁSSAROS, AO ESTENDEREM SUAS ASAS? CADA UM SABE (O SEU MODO) DE ORAR E LOUVAR. E DEUS É SABEDOR DE TUDO O QUANTO FAZEM. ” (24:41)
Sobre o entendimento do que estes versículos sagrados apresentam, Dr. Sayyd Mustafa Muhaqqiq Damad incluiu em seu artigo “Teologia do Meio Ambiente” este esclarecedor comentário: “De acordo com o grande teósofo islâmico Sadr Al Muta’alihhin Shirazi (Mulla Sadra) todo ser foi agraciado com capacidade de compreensão na proporção de sua essência. Portanto, todos os seres no mundo natural possuem consciência e compreensão até o ponto de sua aptidão. Ele diz: “Todos os seres, mesmo a matéria sólida que é aparentemente inanimada, são na realidade, vivos, conscientes e glorificam o Criador Todo-Poderoso. Eles mantêm a atenção na Magnificência e Majestade de Allah, tendo total consciência da Fonte de toda existência, uma vez que o Sagrado Alcorão revela: “…NÃO HÁ NADA QUE NÃO O GLORIFIQUE, PORÉM, NÃO COMPREENDEIS AS SUAS GLORIFICAÇÕES..”(17:44).”
Mulla Sadra não interpretou o ayat sagrado (Não compreendeis) numa forma ativa, ao contrário, ele o considera passivo, sugerindo assim que os próprios seres é que não são conscientes de sua capacidade de glorificação muito embora glorifiquem conscientemente. Para provar esse ponto, ele acrescenta: “Pois este tipo de ciência, isto é o conhecimento do conhecimento (que na filosofia islâmica é chamada de conhecimento composto) é particular aos seres que são puramente abstratos e fisicamente transcendentais.”
Um segundo ponto de relevância é que o Sagrado Alcorão reitera continuamente o propósito da Bondade de Allah, Exaltado Seja, expresso na natureza na forma de benefícios ao homem, como nos seguintes versículos:
“NA CRIAÇÃO DOS CÉUS E DA TERRA; NA ALTERAÇÃO DO DIA E DA NOITE, NOS NAVIOS QUE SINGRAM O MAR PARA O BENEFÍCIO DO HOMEM; NA AGUA QUE DEUS ENVIA DO CÉU COM A QUAL VIVIFICA A TERRA, DEPOIS DE HAVER SE TORNADO ÁRIDA E ONDE DISSEMINOU TODA A ESPÉCIE ANIMAL, NA MUDANÇA DOS VENTOS; NAS NUVENS SUBMETIDAS ENTRE O CÉU E A TERRA, HÁ SINAIS PARA OS SENSATOS.” (2:164)
“ELE É QUEM ESTABELECEU A NOITE PARA O VOSSO DESCANSO E O DIA LUZENTE PARA TORNAR AS COISAS VISÍVEIS. NISTO HÁ SINAIS PARA OS QUE ESCUTAM.” (10:67)
A condição de benefícios ao homem é ressaltada em outros versículos com o adendo da submissão, como quando o Sagrado Alcorão diz:
PORVENTURA NÃO REPARAIS QUE DEUS VOS SUBMETEU TUDO QUANTO HÁ NOS CÉUS E NA TERRA, E VOS CUMULOU COM OS SEUS FAVORES, COGNISCÍVEIS E INCOGNISCÍVEIS ?…(31:20)
E SUBMETEU PARA VÓS A NOITE E O DIA…(16:12)
Cabe notar que a submissão citada como ato Divino, possui duas razões. A primeira delas diz respeito ao favorecimento do homem. Por sua clemência e misericórdia, Deus Altíssimo dispôs a criação de tal maneira que esta proporcionasse todas as condições para a preservação do gênero humano, e mais do que isso, para que provesse todas as necessidades para sua multiplicação e seu bem-estar na terra. Ao refletirmos que se por exemplo, o sol se aproximasse de nosso planeta, a vida humana se extinguiria, percebemos então a realidade dessa disposição divina. A segunda razão decorre da posição para a qual o ser humano foi designado por Deus Altíssimo. Sobre isso, o Sagrado Alcorão nos diz:
“E QUANDO TEU SENHOR DISSE AOS ANJOS: VOU VOU INSTITUIR UM LEGATÁRIO NA TERRA! PERGUNTARAM: ESTABELECERÁS NELA QUEM ALI FARÁ CORRUPÇÃO, DERRAMANDO SANGUE, ENQUANTO NÓS CELEBRAMOS TEUS LOUVORES, GLORIFICANDO-TE? DISSE (O SENHOR): EU SEI O QUE VÓS IGNORAIS. ELE ENSINOU A ADÃO TODOS OS NOMES DOS SERES E DAS COISAS E APRESENTOU-OS AOS ANJOS E LHES FALOU: NOMEAI-OS PARA MIM SE ESTIVERDES CERTOS. DISSERAM: GLORIFICADO SEJAS! NÃO POSSUIMOS MAIS CONHECIMENTO ALÉM DO QUE TU NOS PROPORCIONASTE, PORQUE SOMENTE TU ÉS PRUDENTE , SAPIENTÍSSIMO. ELE ORDENOU: Ó ADÃO REVELA-LHES OS NOMES. E QUANDO ELE LHES REVELOU OS NOMES(DOS SERES E DAS COISAS), ASSEVEROU(DEUS): NÃO VOS DISSE QUE CONHEÇO O MISTÉRIO DOS CÉUS E DA TERRA, ASSIM COMO O QUE MANIFESTAIS E O QUE OCULTAIS?” (2:30 a 33)
Estes versículos sagrados nos apresentam um elevado propósito vinculado a criação do homem: a posição de Khalifa (legatário) de Deus na terra. Em razão desta designação fomos criados e formados com a mais complexa natureza dentre todas as demais criaturas; com uma estrutura física, mental e espiritual ímpar, dotados de potencialidades intelectuais que podem influir positiva ou negativamente no equilíbrio e no bem-estar de toda natureza. O exercício de nossas potencialidades intelectuais, ao se materializarem na aquisição dos benefícios da natureza, quer seja direta ou indiretamente, isto é, por meios elaborados como o uso da eletricidade ou do átomo, é um sinal do que o Sagrado Alcorão nos diz sobre o ato divino de “submeter a natureza ao homem.”
Contudo, de maneira alguma é possível julgar esse ato divino como sendo algum tipo de “direito irrestrito” de explorar e dispor da natureza. Um legatário ou encarregado não é efetivamente “dono”. Com base no Sagrado Alcorão e na Tradição Fiel, é ponto pacífico no Islam que “Tudo o que há nos céus e na terra pertence unicamente a Allah.” Na condição de legatário de Deus na terra, o homem está submetido a limites estabelecidos. Todos os seus excessos, seus atos de esbanjamento, suas injustiças ou opressões com as demais criaturas, enfim, todo o seu mau desempenho no cumprimento daquilo para que foi designado lhe será cobrado por Deus. Além disso, a razão nos mostra que o homem depende sobretudo dos benefícios que a natureza lhe proporciona; e mesmo sua posição de excelência na Criação não o torna o elo mais forte da cadeia natural, muito ao contrário. Seus excessos e desmandos o colocam numa situação delicada, passível de sentir as graves conseqüências disso ainda nesta vida.
Os versículos acima ainda tratam de um outro ponto muito importante. Especificam um “conhecimento superior” dado ao homem, o qual não foi dado nem mesmo aos Anjos. Sayyd Muhhaqiq Damad dá uma maravilhosa definição sobre a natureza deste conhecimento dizendo: “De que tipo de ciência é este conhecimento? É da mesma ciência que nos últimos séculos devastou o meio ambiente e arruinou o planeta terra? Deus ensinou este conhecimento a Adão de modo que seus filhos quebrassem o pacto e obrassem a corrupção na terra?Decerto que não. O conhecimento ensinado por Deus a Adão, é uma ciência sagrada que vê o mundo como uma manifestação de seu Senhor e o reflexo da Essência da Verdade. A melhor tradução para este conhecimento é a do Sagrado Alcorão que menciona que Allah ensinou ao homem os Nomes Divinos e Atributos, ensinou pois ao homem, o mundo. Portanto, conhecer apropriadamente o mundo, é conhecer o Criador Todo-Poderoso, e violentar o mundo e o meio ambiente, é violar a manifestação da Verdade. O poeta persa Shaykh Farid Al Din diz a este respeito: “Quando enviamos Adão, cobrimos a terra com Nosso Esplendor.”
Todavia, a despeito de receber de Deus esse alto conhecimento, que era um elemento distintivo de sua posição, o homem, tal como os Anjos haviam mencionado, fez uso de seu livre-arbítrio sem qualquer sabedoria. O Sagrado Alcorão diz:
“POR CERTO QUE APRESENTAMOS A CUSTÓDIA AOS CÉUS, À TERRA E ÀS MONTANHAS, QUE SE NEGARAM E TEMERAM RECEBE-LA; PORÉM, O HOMEM SE ENCARREGOU DISSO, MAS PROVOU SER INJUSTO E INSIPIENTE.” (33:72)
A história da humanidade tem sido o retrato fiel desta afirmação. Entretanto, quando refletimos sobre o propósito humano a partir do que o Sagrado Alcorão nos diz, não podemos concordar com filósofos como Thomas Hobbes que definia o homem como um ser egoísta e predador por natureza. É inegável que estas características estão presentes na complexidade humana, fazem parte de sua constituição natural, porém, há no homem o potencial de sublimação e consciência espiritual que o diferencia de todas as demais formas de vida. Se assim não fosse o objetivo da Religião e do Conhecimento seria vão. Se há no homem, uma disposição natural e básica de buscar “dominar a natureza” há nele, igualmente, o potencial para sublimar e superar esta inclinação. Não há no homem, nenhuma espécie de predestinação genética nem para a barbárie devastadora em nome de seus interesses, nem para a civilidade e a consciência espiritual.
Em linhas gerais, a visão ontológica da natureza que o Sagrado Alcorão apresenta é recorrente nas outras grandes tradições religiosas do mundo. O caráter transcendente da natureza é perfeitamente explicitado no Judaísmo e no Cristianismo dos primeiros séculos. A idéia de uma relação de reverência a todas as formas de vida é um elemento importante no Zoroastrismo, no Hinduísmo, no Budismo, no Confucionismo e no Taoísmo.
No hinduísmo inclusive, a crença védica de “atman” ou “maya” que considera a existência não como uma realidade absoluta mas um véu que cobre a essência transcendental é bastante similar ao que a Gnose islâmica afirma na crença dos Atributos e Nomes Divinos que se manifestam nos elementos existentes no universo. As práticas anímicas e xamânicas presentes nos povos primitivos de todo o mundo, corroboram a crença numa relação intrínseca entre a vida humana e a vida de tudo que o cerca e sobretudo, na importância de uma cultura de reverência pela natureza. Ainda que também no passado a humanidade tenha cometido excessos contra o meio ambiente (como a caça indiscriminada de algumas espécies animais no Oriente), até o surgimento de uma mentalidade materialista que negasse qualquer valor transcendental a natureza, predominou como um valor cultural mais ou menos estabelecido em toda parte o respeito ao meio ambiente.
Parte Final
A decisão ou escolha que a humanidade tem diante dela é muito simples, porém, envolve um complexo conjunto de ações e substituição de prioridades. A adoção de novas técnicas de produção e agroecologia, um planejamento cultural e educacional nas sociedades que produza a conscientização nas novas gerações, o combate aos crimes ambientais e tantas outras medidas são necessárias porém, a questão em seu cerne permanece sendo a ganância humana. A adoção de uma visão verdadeiramente “religiosa” da vida é a única alternativa realista.
O enganoso argumento dos que se classsificam como “progressistas” de que a devastação do meio ambiente é um preço lógico a se pagar pelas comodidades da vida moderna, não pode ser mais levado em consideração uma vez que a própria sobrevivência humana se aproxima de uma “linha de risco”. É precisamente neste ponto que se encontra a chave para o impasse em que nos encontramos. Manter o atual modelo de progresso e desenvolvimento baseado na exploração ilimitada (o qual é justificado por seus defensores pela necessidade de consumo do homem moderno) será escolher um inevitável colapso ambiental em algumas gerações. Medidas reguladoras que não serão mudanças estruturais apenas atrasarão (na melhor das hipóteses) este colapso.
Uma outra escolha possível (ainda que não seja fácil) será uma reaproximação dos valores éticos e religiosos e dos conhecimentos tradicionais relativos a relação harmoniosa do homem com o meio ambiente. Esta opção exigirá da sociedade moderna, a partir da consciência da impossibilidade de sua obstinação no atual rumo de conduta e pensamento, a humildade de acatar e reavaliar o conhecimento das demais culturas e civilizações, o firme propósito de abolir todas as formas de produção e consumo que sejam ecologicamente insustentáveis.
As estruturas de poder econômico e político deverão ser reavaliadas. Não podemos cegamente acatar a perspectiva de “salvar o sistema” que dirige as decisões políticas e econômicas como se não tivesse sido esse “mesmo sistema” que nos trouxe a atual situação. O sistema mundial centrado na produção e no consumo, nas leis de mercado no topo das decisões, é um sistema claramente suicida. Seu caráter cruel e irracional é atestado pelos índices crescentes de miséria e de concentração das riquezas. A irresponsabilidade e o cinismo que arrasta as sociedades a adoção do mais abjeto consumismo não propõem senão a continuidade de um processo de ruína até um ponto do qual não há retorno. Este será o desafio desse século, desta e das gerações seguintes.
Por: Ahmed Ismail
– Principal fonte de Pesquisa: Artigo “A Teologia do Meio Ambiente” (Dr. Sayyd Mustafa Muhhaqiq Damad)