O Islam e a Luta contra a Opressão e a Injustiça

Por Ahmed Ismail

Um dos importantes legados do Imam Khomeini (r.a.) aos muçulmanos de todo o mundo, foi a sua veemente conclamação aos povos islâmicos, extensiva a todos os povos oprimidos do planeta, a que se empenhassem na luta contra os seus opressores e para que de modo algum adotassem uma posição de passividade, à espera de que alguma força externa lhes presenteasse com a liberdade.

De fato, este testamento político explicitou de maneira formidável o verdadeiro espírito do Islam; resgatando-o do estéril e enfadonho secularismo que os ignaros e os aliados dos imperialistas haviam-no envolvido no decorrer de várias gerações. Mais do que uma simples declaração de princípios, o que se verificou naquele momento histórico foi um autêntico despertar islâmico para uma perspectiva muito mais ampla: A busca da Justiça em sua plenitude. Tal como o Livro Sagrado que se anuncia como UMA MENSAGEM PARA TODA A HUMANIDADE, a perspectiva islâmica partilhada pelos muçulmanos xiitas seria francamente a de luta por uma justiça global.

Passadas duas décadas, os desafios se tornaram ainda maiores; as dramáticas condições em que as nações islâmicas e as demais nações pobres têm sido sistematicamente submetidas, tornaram ainda mais evidente a inviabilidade dos propósitos e rumos adotados pelas super-potências. O modelo político e econômico que preconizam é por princípio, excludente e dirigido por uma lógica e um mecanismo que consiste em criar benefícios para uma ínfima parcela por meio do prejuízo e do sofrimento de todo o resto da humanidade.

O recente encontro dos líderes das nações ricas protegidos por um admirável aparato de repressão da indignação e do protesto de milhares de militantes anti-globalização, deixou patente o fato que esse seleto grupo que faz prevalecer suas decisões pelo uso da força, não se importa com que o resto da humanidade tenha a dizer. Eles, os “homens mais poderosos do mundo” investidos daquilo que chamam de “prerrogativas democráticas” são na verdade, desprovidos de qualquer moral para se passarem como arautos da democracia. Representam nações que por séculos exerceram um criminoso imperialismo saqueando, explorando, escravizando e massacrando os demais povos e nações. Num passado recente (e sempre que lhes pareceu conveniente) deram aval as mais brutais ditaduras, foram cúmplices do sistema sul-africano de apartheid racial e no momento presente apóiam o estado assassino sionista. Definitivamente, os seus sofismas não podem ser aceitos pelo resto da humanidade.

É essencial que a opressão e a injustiça sob qualquer forma que se apresentem, sejam devidamente compreendidas em sua natureza mais profunda e em seus sutis mecanismos. Ao nos referirmos a uma “luta pela libertação dos povos” devemos saber que isso significa em última análise “uma luta pela libertação do homem”. Essa luta possui aspectos políticos, sociais, econômicos e sobretudo significa uma redenção da consciência humana.

Em virtude disso, o Islam não propõe uma visão em compartimentos sobre a vida humana: este é um problema global que por conseguinte só pode ser resolvido por uma solução global. O ponto de partida é compreendermos cada uma das muitas faces da injustiça e da opressão nas sociedades; o modo como isso se estabelece e se perpetua na consciência dos povos. Se analisarmos por exemplo o fenômeno histórico do sistema escravista perceberemos que este sistema não era uma mera disposição imposta pela força de um grupo que escravizava e outro que era escravizado. Um componente muito mais complexo e efetivo garantia sua existência e predomínio: uma sólida base ideológica que pressupunha uma espécie de consenso entre opressores e oprimidos. Os primeiros eram educados para exercer o domínio escravista em nome de um direito natural enquanto os dominados eram sistematicamente convencidos por todos os meios a “aceitar o direito natural” dos opressores, o qual era apresentado como uma autoridade e superioridade espiritual e intelectual que lhes conferia tal direito. A importância desse componente para garantir a perenidade das desigualdades e da opressão é de tal forma determinante, que quando o sistema escravista já não era conveniente pôde ser substituído por um outro sistema de exploração sem que a base ideológica que sustinha o primeiro fosse alterada. O nosso país que é um exemplo perfeito e acabado dessa triste realidade, possui toda sua identidade cultural, toda sua estrutura sócio-econômica profundamente talhada sob esse molde ideológico: um consenso entre classes sociais e raças quanto a uma “hierarquia natural” que permanece inalterável e que ainda determina diferentes escalas de valores, de direitos e deveres entre os cidadãos.

Esse quadro de desigualdade institucionalizada é reconhecido por todas as camadas sociais e por todas as raças, e na verdade, é justificado e plenamente aceito pela quase totalidade dos indivíduos. Desse modo, somos uma nação dividida em duas, onde o consenso das desigualdades pôde suscitar leis diferentes para pessoas diferentes, onde este mesmo consenso determinou distinções odiáveis e que, no entanto, são tranqüilamente aceitas pela sociedade.

A menos que esse consenso da desigualdade seja combatido e expurgado da consciência do povo jamais estaremos livres da estrutura de opressão e injustiça que predomina em nosso país. Este componente ideológico sobre o qual se fundamenta a perpetuação da injustiça e da opressão sobre os povos também se caracteriza por “uma cultura de dominação” que visa legitimar as ações, os ideais e objetivos das nações ou classes que detenham esse domínio sobre as demais.

Recentemente presenciamos um exemplo bastante significativo de como essa cultura de dominação é exercida. Os 500 anos da chegada dos europeus a América foi tomado como um marco civilizatório. Os apologistas e os demagogos formaram fileiras para exaltar a importância da data. Em vários países latino-americanos governos investiram fabulosas quantias para “comemorar”. Entretanto, havia um incômodo: os povos indígenas remanescentes e os descendentes dos escravos africanos trazidos à força para cá tinham uma opinião bem diferente sobre o fato. Estes não tinham razão alguma para comemorar. Mesmo os setores mais esclarecidos da sociedade não ficaram imunes da cínica posição de “cultura dominante”; mesmo os poucos que se dispunham a uma crítica honesta terminavam por chafurdar a lama das justificativas, dos prós e dos contras, daquilo que chamavam de “aspectos positivos da colonização européia”. Obviamente nenhum dos intelectuais a serviço da cultura dominante pôde demonstrar “um” motivo sequer para que as nações indígenas do continente se juntassem aquele espetáculo infame.

Aquilo que foi uma catástrofe etnocida para milhões de pessoas pertencentes a centenas de culturas e povos por cinco séculos que sob o prisma da cultura de dominação é interpretado como um triunfo da civilização. E esta cultura de dominação age na consciência das massas, forja a história, não exatamente os fatos, mas sim os padrões de julgamento desses mesmos fatos. É ela que determina o que deve ou não deve ter valor ou relevância. Esta cultura de dominação imprime sua lógica bastante curiosa que, por exemplo, ressalta a barbárie dos ameríndios e o primitivismo das nações negras submetidas a escravidão e ao mesmo tempo exalta o idealismo e o espírito desbravador do europeu, o que segundo esta mesma lógica justifica as crueldades e os crimes cometidos por este. É precisamente esta cultura de dominação que na atualidade busca isentar as super-potências das condições sub-humanas predominantes nas sociedades condenadas ao sub-desenvolvimento.

Uma de suas infâmias mais comuns é imputar a culpa da miséria sobre os miseráveis. A tendência revisionista da história com um certo teor de auto-crítica que se desenvolveu no pós-guerra , tendência esta encabeçada por liberais e intelectuais de centro-esquerda e esquerdistas não deve ser vista como um sinal de mudança . Não é preciso muita atenção para se perceber na literatura revisionista ocidental os mesmos pressupostos da cultura de dominação. O alcance transformador desta tendência revelou-se pífio e em tal medida que, muitas de suas teses saíram dos círculos das universidades e foram graciosamente adotados pela cultura de dominação quase como curiosidades históricas.

Esta mesma cultura de dominação que manipula a história para que esta seja entendida como “a história da civilização branca” é a mesma que com toda arrogância pretende legitimar o sistema de exploração capitalista como a dizer que “isto é o melhor para todos porque nós e somente nós sabemos o que é melhor para todos”, “vocês, asiáticos, latinos, africanos, vocês não são nada, vocês não são capazes de exercer qualquer tipo de auto-determinação”.

Nenhum revisionismo de intelectuais é páreo para a doutrinação ideológica em larga escala de Hollywwod, que por um século inteiro tem usado a força do capital para destruir a auto-estima dos povos, ridicularizando negros, asiáticos, árabes, ameríndios e latino-americanos. A estrutura da opressão e da injustiça se fundamenta nesta cultura de dominação mais do que no domínio bélico, econômico e tecnológico, desde que ela mina o espírito e escraviza a consciência dos povos. Portanto, as nações islâmicas têm um desafio imediato nesta retomada de sua identidade.

O Islam neste contexto possui inegavelmente uma força transformadora e libertadora que magnetiza os povos, o que sem dúvida é um dos fatores do seu crescimento. Nenhuma outra tradição religiosa é capaz de libertar a consciência humana dessa insidiosa e sutil corrupção que este sistema de dominação e exploração promove nos indivíduos e nos povos. O que, em resultados concretos significou para os afro-americanos e ameríndios a cristianização? Em que a adoção da fé dos seus dominadores lhes trouxe benefício? A pergunta talvez devesse ser: O que o cristianismo (em suas várias concepções) propõe e destina para os povos oprimidos e injustiçados? O sistema de dominação e exploração (do qual o cristianismo é um importante componente) muito embora visceralmente irreligioso, manipula o fervor místico de modo a que este o legitime na consciência dos povos. Esse processo só se torna possível porque a tradição cristã ocidental também é um produto deste sistema de dominação e exploração. Um produto fabricado no decorrer dos séculos no qual o propósito de dominação das consciências era a razão essencial de sua criação. Não há muito o que identificar nesta “tradição cristã ocidental” da verdadeira mensagem de Jesus (as) e da fé original dos primeiros cristãos. Na realidade, esta tradição cristã ocidental é a antítese daquela, se assim não fosse, como um sistema de dominação e exploração (e por isso mesmo irreligioso) a adotaria como um poderoso elemento em seu avanço histórico?

A dúbia posição da cristandade sobre o escravismo durante todo o tempo em que esse sistema criminoso de exploração perdurou, é uma imperdoável prova de seu comprometimento com o poder tirânico dos estados imperialistas. Por quatro séculos pelo menos em um ponto a Igreja de Roma e as seitas protestantes concordaram: a escravidão do homem negro era (segundo eles) aceitável; e para boa parte dos padres e ministros protestantes não só era aceitável como também “necessária”. As poucas vozes cristãs que nestes quatro séculos se levantaram contra a escravidão encontraram a hostilidade dos núcleos de poder religioso.

O pensamento cristão dessa época vergonhosa, se caracterizava por um ideário abominável que visava convencer o homem negro convertido a fé cristã de que aquele era o “seu destino nesse mundo”, “pelo qual ele poderia ascender a uma “redenção eterna”.”

O fenômeno do fervor religioso das populações negras nos Estados Unidos do final do século XIX não pode de modo algum absolver a cristandade de sua cumplicidade com o sistema de dominação. Ao afro-americano, inserido numa sociedade que lhe negava qualquer papel digno de um ser humano, restava apenas o seu fervor religioso, a sua interpretação da fé cristã que ao menos lhe trazia algum conforto espiritual. De fato, esta sua própria “interpretação da fé e dos valores cristãos” foi de valia no sentido de formar uma identidade como povo, importantes lideranças como Marcus Garvey e Martin Luther. A partir desta identidade puderam lançar as bases para uma consciência de emancipação do homem afro-americano. Contudo, este fervor religioso cristão, quer seja protestante ou católico, quer nos Estados Unidos ou em qualquer outra nação americana ou africana, em momento algum foi capaz de “salvar” o homem negro de sua desdita de “povo oprimido”. Mais do que isso, não foi capaz de libertar o povo negro das amarras da ignorância, da corrupção e de um sistema que o conduziu e o conduz às penitenciárias, a miséria, ao alcoolismo, as drogas e aos asilos psiquiátricos. Alguém pode argumentar que nenhum desses flagelos se abate exclusivamente sobre os cidadãos negros e mestiços (o que é verdadeiro). Não obstante, ninguém poderá atribuir a um mero triste acaso o fato de que seja no Brasil ou nos Estados Unidos a esmagadora maioria da população carcerária, da população condenada a indigência ou trancafiada como animais nos hospitais psiquiátricos, bem como das populações marginalizadas em geral sejam cidadãos negros e mestiços.

A trágica constatação é que a identidade “cristã” não possibilitou ao povo negro erguer-se da infame condição da escravidão para uma condição de verdadeira dignidade. O povo negro saiu da escravidão institucional para uma outra que o inseriu num processo de exploração que o enfraquece, destrói sua dignidade oferecendo a ele (e a todos os demais setores marginalizados da sociedade) o alcoolismo, o crime, as drogas, a prostituição e as celas das penitenciárias. Os chamados avanços apregoados pelos setores liberais da sociedade, que tentam identificar pontos positivos numa eventual inserção dos afro-americanos nas camadas sociais privilegiadas, inserção esta antes impensável; na verdade, nada mais é do que uma natural tendência do sistema de dominação a assimilar aspirações e por fim esvaziá-las de seu sentido transformador.

Enquanto alguns indivíduos de raça negra encontram ascensão social e econômica, a grande massa do povo negro permanece condenada a esta marginalização instituída; e este processo é o que há de mais característico nesse sistema de dominação e exploração. Em adição a isso, há o fato de que esta nova elite de cidadãos a quem a sociedade premiou com algum tipo de inserção econômica e social raramente fugirá a um processo de “adoção dos valores da cultura de dominação” reproduzindo as mesmas distorções que legitimam a injustiça e a opressão.

Em nosso país, por exemplo, estes “valores da cultura de dominação” se traduzem por um feroz desprezo ao homem e a mulher pobre, (sejam eles negros ou brancos). Muito embora isso se intensifique contra o homem e a mulher negra. As classes dominantes concebem a vida social da nação como uma imensa “casa grande e senzala” onde papéis, direitos e deveres são estabelecidos pela condição econômica, social e também racial dos indivíduos. Tanto quanto os privilégios e as comodidades dos que dominam se manifestam extraordinariamente exuberantes e abundantes em igual intensidade as privações e as humilhantes condições dos excluídos se manifestam abomináveis. Sob este código abjeto de “ordem social” o povo brasileiro convive com uma inacreditável passividade com todo tipo de desmandos e crimes sociais, desde a tragédia do abandono à fome de toda uma região (nordeste) e à eliminação pura e simples de crianças de rua nas grandes cidades por parte de grupos de extermínio. O flagrante comprometimento do poder instituído com estes dois crimes entre tantos outros (o narcotráfico, o crime organizado, a corrupção política para citar alguns) é minimizado por uma sutil manipulação da opinião pública, que se estabelece sobre os pressupostos da “ordem social” segundo a qual se desvia o foco das verdadeiras razões desses males.

Há na realidade dois países, duas nações distintas (a despeito do fracassado discurso de “integração nacional”) e isto nada mais é do que uma natural reprodução da lógica do sistema mundial de opressão e injustiça. De fato, todos os indicadores sociais têm demonstrado que as desigualdades entre estes dois “distintos mundos” estão em franca expansão em toda parte.

O Islam e a Luta contra a Opressão e a Injustiça

Como as reflexões aqui apresentadas demonstram o sistema mundial de opressão e injustiça, muito embora adote muitos nomes e se afigure sob a máscara de diversas ideologias e sistemas políticos, não se trata de um inimigo abstrato, sua lógica é muito simples: perpetuar-se as expensas da supressão das autênticas aspirações dos seres humanos a liberdade e a felicidade. Portanto, o Islam impõe como um dever moral de todo homem e mulher, e de todos os povos oprimidos, a luta em todos os campos, a resistência contra este sistema diabólico. Esta luta há de ser pacífica enquanto isto for possível, por vias democráticas quando uma sociedade conte com esses meios, e há de ser revolucionária ou mesmo violenta quando só restar isso como alternativa. Em qualquer dos casos será absolutamente necessária uma correta consciência política que previna a reprodução viciosa da opressão e da tirania. O Islam classifica como “consciência política” uma clara percepção do que promove o bem da humanidade e o que promove sua ruína nesta vida e na vida futura. É portanto, um dever dos muçulmanos como nação propagar o Din em sua verdadeira dimensão religiosa e política, individual e social onde quer que se encontrem, não importando se são muitos ou poucos. Este dever, que é inerente ao próprio din está expresso no testamento político do Imam Khomeini (r.a.) e se impõe como o verdadeiro espírito do movimento xiita como a própria trajetória histórica do Mensageiro de Allah (saas) e do Imamato dos Ahlul Bait (as).

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