O Olhar do Ocidente sobre o Islam

Por: Ahmed Ismail

Os atentados de Nova York e Washington despertaram o mundo ocidental para um surpreendente e à primeira vista, intransponível abismo cultural que até aquele dia não tinha sido corretamente levado em conta.

A cultura dominante centrada nos pressupostos e na visão de mundo do que o ocidente compreende como modernidade e civilização, até o dia 11 de setembro não via a civilização islâmica senão como um mundo incompreensível que não poderia despertar qualquer atrativo.

O que se verificou desde então foi o fim de um longo período de indiferença.

Por um lado os velhos preconceitos e rancores da idade média despertaram inspirados por uma ira tão fundamentalista como a dos setores islâmicos responsabilizados pelos atentados. Por outro, mentes mais sensatas e melhor capacitadas para uma análise mais profunda do que o mero apelo maniqueísta, que agora promove uma espécie de vendetta (tão criminosa e imoral quanto os atentados), passaram a propor uma aproximação através de uma abordagem isenta de preconceitos e conclusões simplistas e apressadas.

A grande mídia ocidental, em quase sua totalidade cedeu ao apelo fácil de reduzir a questão a “uma guerra contra o terrorismo” e num primeiro momento, a palavra terrorismo chegou a ser um sinônimo para o Islam. Graças à inconsistência desta análise e também diante da constatação de que sem o apoio do mundo árabe e islâmico a ação da coalizão internacional se tornaria muito mais difícil, logo o discurso maniqueísta foi amenizado e abriu-se uma maior possibilidade de busca de entendimento. Desde então diversos estudiosos e cientistas políticos passaram a falar e a escrever sobre o Islam, e a civilização islâmica emitindo seus pontos de vista particulares. Sem dúvida isso foi muito positivo.

O mito desenhado a princípio de uma guerra declarada por uma horda de fanáticos ou radicais foi acertadamente separado do que realmente o Islam e os muçulmanos defendem e crêem. Apresentou-se o Islam segundo a perspectiva de sua riqueza espiritual e cultural, não o reduzindo a uma ameaça ao ocidente ou ao que se pretendeu rotular como um conflito entre civilização e barbárie.

Entretanto, a análise desses estudiosos ocidentais não está inteiramente isenta de equívocos e preconceitos. O olhar do ocidente sobre o Islam há de ser sempre o “olhar do ocidente” pleno de tudo aquilo que o caracteriza. Tendo sempre como ponto de partida o pressuposto que as demais culturas devem se adequar aos seus próprios conceitos e aspirações. Assim, é típico de todos os ocidentais que abordam o Islam se julgarem no direito de dizer como o Islam e os muçulmanos devem ser e de como devem se adaptar a sua visão de mundo.

E esta é a questão central: Porque o Islam, uma cultura de 1400 anos haveria de ser moldada segundo os padrões da civilização ocidental? Muito tem se falado no que se identifica como uma necessidade do Islam se tornar um sistema subjetivo de crença, limitado a fé e a prática religiosa tal como o Cristianismo e o Judaísmo. Segundo os defensores desta tese, o Islam permanecerá sendo um “problema” enquanto não se tornar um sistema reformado em que a dimensão religiosa e a dimensão política sejam separadas. Esta é uma análise inteiramente absurda e superficial que demonstra uma total ignorância do que seja na verdade o Islam. E não é possível conhecer o Islam sem conhecer com profundidade o Livro Sagrado que o inspira. Não se conhece o Islam a partir de uma análise histórica ou cultural, tampouco pelas diversas correntes religiosas existentes na comunidade islâmica; todos esses aspectos são secundários e não decisivos no que o Islam realmente é. Apenas o conhecimento do Alcorão pode fornecer o conhecimento correto do Islam. E qualquer um que o conheça concluirá que o Islam é um sistema religioso, político e social indivisível, isto é, os aspectos religioso, místico, social e político não são de modo algum dissociáveis, mas sim, concebidos e concatenados um como a continuação natural do outro. E mais do que isso, cada um desses aspectos encontra sua razão de ser e sua plenitude no outro. Este sistema, esta estrutura de princípios e práticas se encontra na própria essência do texto revelado e podemos dizer que, esta é a própria razão de ser do Alcorão e do Islam.

Portanto, desejar que o Islam seja entendido e praticado apenas como uma crença subjetiva ou contemplativa, separada da política, do âmbito da legislação civil e da organização social é uma pretensão absurda.

Cabe lembrar que, as mesmas vozes que se levantam para criticar essa visão unificada de religião e política, são as mesmas que aplaudem, por exemplo, o papel político do Papa, especialmente quando este “colabora” para os interesses do ocidente, como no caso do colapso do mundo comunista. Não questionamos aqui o certo ou errado da atuação política do Vaticano neste caso e em nenhum outro, apenas citamos isso para demonstrar a falácia de uma visão religiosa apolítica, que pretendem impor ao Islam, quando o poder da igreja de Roma jamais foi exercido com base puramente “espiritual”.

O que é apresentado como um “problema” para o ocidente é todo um conjunto de princípios, injunções e práticas que se opõem ao pensamento e às concepções sociais, econômicas e políticas do mundo ocidental. Ancorados nesta pretensão, críticos do Islam levantam objeções ao programa de estabelecimento de um Estado Islâmico e de um sistema judiciário regido pela Sharia’h, ao Jihad, ao uso do hijáb e mais uma dúzia de aspectos autenticamente islâmicos. Há um forte elemento de arrogância nestas objeções à medida que isso equivale dizer que a civilização islâmica necessita do iluminismo ocidental para alcançar o estágio da modernidade e do desenvolvimento.

Sociólogos, antropólogos e cientistas políticos tem se dedicado a propor “soluções ao problema islâmico” segundo o seu ideário conclusivo e inquestionável de que fora dos valores e do pensamento ocidental não há “civilização ou modernidade possível”. Obcecados com suas próprias idéias sobre o que é e o que deve ser o Islam, têm sido muito apressados a rotular TODOS os muçulmanos que crêem e zelam pelos princípios, valores e práticas islâmicas aos quais o pensamento ocidental se opõe como sendo “fundamentalistas”, “fanáticos”, “extremistas” e por isso mesmo “contrários a modernidade”.

Esse rótulo de preconceito tem servido inclusive para estigmatizar e em certo grau “marginalizar” todo e qualquer movimento islâmico regional que esteja empenhado numa luta justa e autêntica por independência territorial ou nacional. Dois exemplos típicos deste sofisma elevado a categoria de análise-padrão são a revolução Islâmica do Irã e a luta do povo palestino.

A revolução Islâmica do Irã é apresentada por esses críticos ocidentais como um movimento de clérigos que impuseram um sistema teocrático na contra-mão da civilização e da modernidade. Os defensores deste ponto de vista cometem diversos erros e omissões sobre o caráter da mencionada revolução. Em parte o fazem devido ao forte preconceito que os leva a julgar que um sistema teocrático deve necessariamente ser retrógrado, inimigo da modernidade, obscurantista e repressivo.

O estereótipo medieval da cristandade é a única referência que o ocidente conhece de sistema teocrático, e, portanto, a revolução Islâmica do Irã foi compreendida deste modo. É evidente que a contra-revolução representada pela propaganda americana e a mídia ocidental ampliou sobremaneira este preconceito.

A mídia ocidental não teve o menor pudor de apresentar ao mundo a Revolução Iraniana como “a ameaça islâmica”. Imam Khomeini foi tachado de “Anti-Cristo” e no período mais agudo da crise Irã – EUA sua figura era associada a um Hitler ou um Stalin.

Todo esse desfile de sandices promovido pela mídia ocidental serviu como uma cortina de fumaça de desinformação e preconceito que ocultou importantes aspectos daquela revolução. Desprezou-se o fato de que o Irã, desde a queda dos sassânidas à quase 1400 anos era parte da civilização islâmica e que portanto, a revolução não estava introduzindo uma nova ordem pela força mas sim restaurando a identidade cultural de um povo que por décadas estava sofrendo um progressivo processo de aculturação, o qual não era desejado pela maioria e que havia sido implementado por um sistema corrupto e sanguinário de uma elite ocidentalizada. Desprezou-se inclusive o fato de que aquela foi uma revolução popular isto é feita pelo povo e não por um grupo de clérigos como uma espécie de golpe militar (nos moldes dos muitos patrocinados pelos EUA). Assim, a revolução iraniana foi um fenômeno autenticamente popular, fundamentado no direito natural de auto-determinação de um povo que de modo consciente rejeitou tanto o modelo capitalista quanto o modelo socialista optando pelo Estado Islâmico.

É compreensível que esta opção radical e tão contrária aos interesses geopolíticos das potências tenha tido um efeito desconcertante no mundo ocidental. O que é lamentável é que mesmo os intelectuais tenham se deixado levar pelos sofismas da propaganda pró-ocidente que insistiam em explicar a revolução iraniana como um golpe de fanáticos xiitas que desejavam implantar á força um estado medieval em pleno século XX.

As eleições e os inegáveis avanços em relação a outros países islâmicos nas duas décadas seguintes deveriam servir para uma revisão desta análise apressada e superficial. De fato, as eleições têm sido tomadas como base para que a mídia ocidental justifique o que chamam de enfraquecimento do regime dos Ayyatullahs quando na realidade, não se vê o óbvio apoio popular ao regime Islâmico. Ainda que o povo iraniano venha a desejar um modelo de aplicação social menos rígido, está claro que a maioria dos iranianos aprova o regime teocrático islâmico e NÃO DESEJA A ORDEM ANTERIOR.

É muito curioso vermos a mesma rede de informação que busca avidamente identificar “focos de descontentamento e resistência ao regime teocrático” sem atentar para o fato que esses focos de crítica e de reforma gozam de direito de manifestação e participação política e são melhor tolerados no país do que jamais os núcleos socialistas e comunistas o foram em território americano. Porque o regime teocrático Iraniano deveria ser uma Unanimidade Nacional? Nem Bush o é em seu país e nem por isso sua legitimidade institucional é questionada.

As reformas exigidas pelo povo iraniano segundo têm demonstrado nas urnas não significam de modo algum um retrocesso na revolução islâmica; desde que o processo revolucionário ali pretendido não é monolítico ou ancorado a uma concepção ou um molde de estado islâmico preso ao passado ou avesso a modernidade.

No que se refere à causa palestina, a análise corrente do ocidente tem se empenhado em minimizar ou desprezar inteiramente a legitimidade de uma luta de resistência daquele povo a um processo de invasão e dominação exercido da forma mais brutal possível pelo estado sionista.

Os fortes componentes de ódio e frustração resultantes de cinco décadas deste processo são tomados como uma justa prova e constatação de que “a reação é o terror”. Por trás da rejeição dos EUA e da Europa em reconhecer o sionismo como uma forma de racismo está a mesma lógica que sustentou o regime de Apartheid na África do Sul. Uma lógica que é profundamente imoral e criminosa e que coloca os seus defensores numa condição que não lhes dá o direito de arbitrar sobre o que seja e o que não seja “terror”. Tal direito lhes seria conferido caso tivessem a dignidade de pesar com justiça as condições desumanas e injustas as quais o povo palestino tem sido submetido no decorrer destas décadas de ocupação de seu território.

Na realidade, o olhar do ocidente sobre o Islam, longe de promover uma aproximação desejável em termos de respeito e diálogo, ainda está repleto de intolerância e presunção. É muito improvável que se forem mantidos os pressupostos políticos das potências ocidentais como medida de julgamento, cheguemos a uma superação dos antagonismos e algo que possa se chamar de coexistência pacífica. Caberia aos intelectuais pelo exercício da inteligência auxiliar o ocidente a encontrar os meios de reavaliação política e econômica (não apenas em relação às nações islâmicas), reavaliação que promovesse de maneira efetiva uma ordem mundial dirigida para a paz e a cooperação entre as nações.

«
»