Por: Ahmed Ismail
A entrega de Slobodan Milosevic, “o monstro dos balcãs”, ao tribunal de Haia para o julgamento por seus crimes de guerra e crimes contra a humanidade, resultado do jogo de interesses econômicos entre a Comunidade Européia e o atual governo iugoslavo foi sem dúvida um importante acontecimento. Muito embora seja lamentável que a motivação não tenha sido o autêntico zelo pela justiça ou a execração a tirania e a desumanidade.
Na realidade, o julgamento de Milosevic trará luz a fatos de igual gravidade sobre o verdadeiro grau de omissão e indireta colaboração das potências ocidentais na bestial agressão aos povos bósnios, Kosovar e croata na década passada, idealizada e perpetrada em seus detalhes mais sórdidos por Slobodan Milosevic.
É provável que o mundo não venha saber com absoluta clareza as razões que levaram as potências a demonstrarem tal condescendência e hesitação. Mesmo quando o conflito iniciado em 1991 adquiriu um evidente caráter de sistemático plano de genocídio, fazendo ressurgir o odioso termo nazi-facista de “limpeza étnica”. Milosevic jamais ocultou suas intenções. Desde o início, quando as forças sérvias, muito bem treinadas e municiadas com o melhor aparato bélico herdado da antiga república socialista iugoslava, lançou-se a agressão sobre a Croácia e a Bósnia, Milosevic propagou aos quatro ventos seu “Nacionalismo” que a priori não reconhecia direitos senão ao povo Sérvio, segundo ele, “os únicos e autênticos senhores dos bálcãs”. Seu programa doutrinário (repito, conhecido pelo ocidente) pregava com o fim do regime comunista a criação da Pan-Sérvia, um resgate histórico da grandeza do passado em que todas as demais etnias nada mais seriam do que “invasores” que deveriam ser eliminados.
Milosevic em seu delírio bestial planejou cada passo de sua ação criminosa: a destruição das cidades e de todos os monumentos e templos, a execução sumária dos prisioneiros (especialmente dos jovens), o estupro em larga escala das mulheres muçulmanas, a criação de campos de concentração para uma eliminação gradual. E cada uma dessas medidas foram sendo executadas em todas as cidades que caíram sob o avanço sérvio, medidas que claramente visavam apagar todos os traços e toda história dos vencidos. Este nacionalismo patológico, fanático, era assumido (e ainda o é) sob pretextos inacreditáveis de um suposto complô ocidental, da Igreja Romana e do Islam com a intenção de corromper e destruir o Povo Sérvio. Portanto, desde o início era sabido pelo mundo ocidental que a guerra dos bálcãs não era um conflito étnico-religioso que pudesse ser tratado como tantos outros. De um lado havia um exército muito bem armado e treinado, imbuído de uma ideologia destrutiva (pronto a cometer todos os crimes que pudesse contra as populações da Bósnia) e do outro um povo com um autêntico direito de autonomia política e territorial, tal como a Croácia e o Montenegro.
Numa primeira fase o conflito parecia bastante previsível: a superioridade bélica dos sérvios indicava que o conflito se decidiria com um desfecho cômodo para as potências ocidentais. A imprensa ocidental não cansava de ressaltar o caráter étnico-religioso como um a razão que justificava a inação daqueles que poderiam intervir.
Os primeiros clamores denunciando um programa genocida posto em prática pelas forças sérvias não foram realmente levados a sério; e quando finalmente a verdade já não podia ser mais negada, ou seja, as primeiras provas insofismáveis da existência de campos de concentração de prisioneiros bósnios tornaram-se públicas a reação de indiferença foi sem dúvida imoral e criminosa. O então presidente George Bush (pai) chegou a dizer: “Ora, se eles (os sérvios) pretendem matá-los, que ao menos o façam longe das câmeras!”
Os porta-vozes das potências faziam declarações inacreditáveis em que alegavam que “em toda guerra há excessos cometidos pelos dois lados envolvidos”. Hoje, uma década depois, não se tem notícia de nenhum massacre indiscriminado de civis, nenhuma cova coletiva de prisioneiros executados em larga escala que possam ser atribuídos aos combatentes bósnios muçulmanos.
A ONU reconheceu como comprovada a existência de campos de concentração mantidos pelos sérvios, e o encontro de pelo menos 46 covas coletivas com centenas de corpos de prisioneiros bósnios. Uma inesperada reação das forças bósnias pegou de surpresa as potências que já davam como certa a definição do conflito com a vitória sérvia e a conseqüente anexação da Bósnia ao território sérvio. Então, uma outra ação covarde foi implementada pelas potências: o embargo de armas a Bósnia e a Croácia. Pretendia-se sufocar uma possível reação ao avanço sérvio.
Vendo todas as esperanças de um socorro por parte da comunidade mundial só restou ao povo bósnio lutar e resistir desesperadamente. Fayek Fahim, expôs os objetivos das nações ocidentais na crise dos bálcãs: “Há uma quase reticente unanimidade entre os Europeus de sufocar os muçulmanos no continente. Há um tácito acordo entre as potências para dissolver um (possível) estado islâmico. Milosevic é o líder de todas essas forças juntas (…)”
O apoio irrestrito da Rússia à Slobodan Milosevic parecia ter um peso decisivo na questão. Porém, a opinião pública mundial já tornava a situação intolerável: os erros e as omissões das potências ocidentais tinham se tornado tão evidentes que se fazia necessária uma intervenção. Finalmente a ONU e a OTAN se mobilizaram para garantir a chegada de auxílio humanitário à população Bósnia. Contudo, em breve esta intervenção provou-se um fracasso tão vergonhoso quanto a indiferença inicial. As seguidas humilhações que a ONU e a OTAN sofreram diante da arrogância e da audácia sérvia apenas tornaram o quadro ainda mais bizarro.
Anulados entre os seguidos fracassos diplomáticos que se caracterizavam numa quilométrica distância entre as declarações e as ações práticas, por um bom tempo as tropas enviadas a região tiveram que presenciar durante o cerco de Saravejo as tropas sérvias cometendo todas as barbaridades que podiam sobre os civis. Descaradamente, os sérvios interceptavam os caminhões com alimentos e medicamentos destinados aos sitiados diante dos soldados da ONU, que tinham ordem expressa de não interferir. De braços cruzados, estes soldados, por meses assistiram os franco atiradores sérvios alvejando civis nas ruas de Saravejo.
Milosevic, amparado em Yeltsin, se punha a fazer exigências para qualquer acordo de paz, e a diplomacia ocidental absolutamente desmoralizada chegou ao absurdo de tomá-lo como mediador na questão. Em meio as discussões diplomáticas, o Comandante General Sérvio Ratko Mladic (um dos criminosos de guerra de paradeiro ignorado no momento) anunciou orgulhosamente que Srebrenica havia sido “limpa” com a expulsão de 40.000 bósnios de suas casas. A cidade tinha sido entregue aos sérvios pelas forças de intervenção da Onu sob o inacreditável acordo em que se aceitava o compromisso dos invasores de que “nada aconteceria a população Bósnia sitiada”. A limpeza anunciada pelo General (hoje, também indiciado como criminoso de guerra) como mais tarde se viria a saber, envolveu a “eliminação sumária” de cerca de 10.000 jovens.
O ápice da humilhação das potências foi a ação sérvia de aprisionar 367 soldados das forças de paz, os quais foram utilizados como escudos humanos diante das ameaças de retaliação da OTAN.
A crescente possibilidade de uma ação efetiva das potências levou pouco a pouco Milosevic a recuar, aceitando um tratado de paz. Contudo, aos bósnios muçulmanos restava a constante ameaça de uma nova agressão, desde que ficava evidente que não importava ao Ocidente, ao menos naquele momento, punir o principal causador daquele conflito. Novamente a omissão e o descaso predominaram, um erro que permitiu que dois anos depois Milosevic dirigisse sua sanha assassina, seu fanatismo bárbaro a um outro objetivo: Kosovo.
Kosovo é reivindicado historicamente pela Albânia, porém encontra-se anexada à antiga Yugoslávia desde 1912. De população majoritária de origem albanesa e de religião predominante muçulmana (96%), o povo Kosovar não reconhece como legítimo o domínio sérvio (cuja população na região é por volta de 2%). Como a região há décadas luta por independência e com a existência de uma força organizada de luta, o governo Sérvio que sempre exerceu um controle tirânico, efetivou um plano de limpeza étnica sobre a região nos mesmos moldes bárbaros aplicados na Bósnia e na Croácia.
Novamente, as potências primeiro aceitaram os pretextos do governo Sérvio que alegava uma ação em defesa nacional contra uma horda de criminosos armada pela Albânia para conturbar o país. Sob esta justificativa as forças sérvias lançaram-se a uma ofensiva sangrenta queimando cidades e vilarejos, matando civis indiscriminadamente. Diante da passividade do ocidente, o governo sérvio chegou mesmo a proibir o acesso de serviço médico as áreas do massacres. A selvageria das forças paramilitares sérvias provocou um desastre humanitário que levou por volta de 400.000 kosovares a fugirem do país buscando refúgio nas repúblicas vizinhas. De acordo com James Shea, porta voz da OTAN,100.000 jovens em idade militar foram separados de suas famílias e estão desaparecidos, prisioneiros foram usados como escudos humanos, milhares de jovens foram sumariamente executados e seus corpos foram encontrados em 43 covas coletivas, 200 vilarejos foram arrasados, centenas de mulheres foram estupradas .
Somente quando a aberração sérvia tornou-se clara demais para ser ignorada, a OTAN entrou em ação. Por meses, discussões se seguiram quanto ao direito do governo sérvio de autonomia na questão, devia ou não ser respeitado. Enquanto isso, órgãos de direitos humanos recolhiam na região os relatos dos sobreviventes que chegavam aos campos de refugiados na fronteira Macedônia. Relatos tão horríveis como o de um rapaz que teve as duas mãos amputadas e disse ter tido sorte, afinal os seus familiares e amigos tinham sido todos mortos.
Finalmente, os líderes das potências resolveram que uma ação genocida em plena Europa não seria mais aceitável, decisão tomada tarde demais. A OTAN diante da irredutível arrogância sérvia (novamente apoiada pela Rússia) tomou a drástica medida de bombardear Belgrado. Ao provar um pouco do seu próprio veneno Milosevic se viu obrigado a recuar.
A pressão ocidental exercida nos meses seguintes levou-o a sair do poder. Não que tenha abdicado de suas idéias criminosas (o que ficou claro quando se apresentou diante do tribunal de Haia).
De um modo ou de outro e não importando qual seja o veredicto que pesará sobre ele e seus colaboradores, os conflitos dos Bálcãs permanecerão como uma vergonhosa mancha na consciência mundial e a atitude omissa das potências não poderá ser levada aos tribunais dos homens.
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Em 2006, Milosevic morreu na prisão. Com ele, morreram todas as informações que poderiam incriminar as potências ocidentais por cumplicidade em seus crimes. Alguns dos seus colaboradores confessaram participar de massacres de civis bósnios, alegando que “cumpriam ordens”. Quanto a Milosevic, durante todo o tempo em que esteve preso, manipulou o tribunal com o que sabia e que se falasse, deixaria vários governos do ocidente numa situação desmoralizante. Jamais reconheceu algum tipo de culpa individual. Meses depois de sua morte, o Tribunal de Haia, de modo surpreendente, isentou o Governo Sérvio da acusação de um plano de eliminação étnica. Os crimes foram atribuídos a oficiais que, segundo Haia, teriam praticado assassinatos e estupros sem que tivessem ordem para isso. A maioria desses oficiais continua foragida, alguns deles sob a proteção do governo sérvio.
As provas da existência de um plano de eliminação étnica foram ocultadas ou ignoradas, já que Milosevic durante anos pregou estas medidas publicamente. É evidente que a decisão de Haia protegeu os interesses das potências ocidentais. Isentou historicamente a Comunidade Européia da cumplicidade em atos bárbaros. A república Sérvia, soube se aproveitar desse trunfo. O nacionalismo sérvio continua ativo e muitos ainda compartilham das idéias fanáticas de Milosevic. As repúblicas de Sérvia-Montenegro, Bósnia e Croácia estão se recuperando de uma década de guerra, as cidades estão sendo reconstruídas. O sofrimento da guerra e da crueldade que ceifou milhares de jovens bósnios não foi capaz de apagar a chama de fé islâmica do povo. Ao contrário, assiste-se a um renascimento do Islamismo por todas as partes do país.