Em nome de Allah o Clemente o Misericordioso
Quatro Aspectos Importantes da Prática da Religião
Neste quarto número, abordaremos alguns aspectos que compõem e aperfeiçoam a fé, aspectos que desempenham um importante papel na vida diária do fiel muçulmano. É muito comum, ao conversarmos com pessoas não-religiosas, ouvirmos críticas bastante razoáveis em relação aos que se definem como “religiosos”. Não raro, o comportamento dos religiosos na sociedade parece refletir muito pouco dos valores que afirmam acreditar. Chama a atenção das pessoas sensatas que, não obstante exista tanta religiosidade no mundo, se verifique tanto relaxamento moral, tanta violência e desrespeito à vida humana e uma tendência progressiva de falência ética e de corrupção. A crítica, embora justa, se fundamenta numa análise superficial e apressada.
Religiosidade e religião são conceitos distintos; crença racional e fé em seu verdadeiro sentido também são coisas diferentes.
A religiosidade é um fenômeno natural e muitas vezes determinado pela cultura a qual se pertence. Os diversos sistemas religiosos e seitas existentes no mundo ainda que de modo geral afirmem os mesmos valores éticos e morais, divergem quanto a efetivação desses valores na vida prática. É preciso também considerar as limitações e imperfeições humanas no que se refere à compreensão e a aderência à religião.
A religião, em seu sentido real, é um processo de aprendizado e crescimento contínuo. É, sobretudo, um processo que depende do grau de sinceridade e aderência de cada pessoa, muito embora a má orientação e os maus exemplos contribuam bastante para a crise ética e moral que não poupa aos que se definem como religiosos. Por que isso ocorre? A resposta, para o Islam, se encontra na própria religião. O Islam parte da unidade da fé e da prática e por conseguinte, não considera esse problema como um problema religioso, mas, um problema de irreligiosidade.
Do ponto de vista islâmico, é incorreto supor que existindo tanta “religiosidade” deveria existir “orientação” na sociedade humana. Religiosidade, não é em si, garantia de correta orientação ou mesmo de “fé”, de acordo com o conceito islâmico que entende que fé deve necessariamente ser acompanhada de “temor.” Então, o que verificamos no mundo é uma abundância de “religiosidade” é uma profunda carência de “temor.”
No Alcorão Sagrado e nos exemplos e dizeres do Mensageiro de Deus (saas) e dos Imames de sua Casa (as) está absolutamente claro que a fé não é uma realidade perfeita e acabada ou um fato consumado na vida de uma pessoa. A fé é algo vivo e dinâmico, e por isso mesmo, requer zelo e aperfeiçoamento. A negligência pode conduzi-la à morte. Convencionalismo, extremismo literal (farisaísmo), fanatismo e por fim, a hipocrisia, são estados igualmente graves que podem destruir a fé de uma pessoa reduzindo sua religião a algo que se assemelha a um “corpo sem vida.”
O Islam enfatiza um conjunto de aspectos e princípios a serem cultivados pelo fiel muçulmano a fim de que salvaguarde sua fé. Trataremos aqui de alguns desses aspectos e princípios.
1 – O Temor a Deus
O primeiro e fundamental aspecto a ser ressaltado é o temor a Deus. Do ponto de vista do Islam, podemos compará-lo ao espírito da fé, o espírito que a move e a mantém. Algumas pessoas argumentam que o temor não se harmonizaria com o amor a Deus. Na realidade, esse argumento não se baseia no conhecimento da religião e da dimensão real do tawhid. O temor é uma expressão viva do amor a Deus, uma vez que o temente é aquele que cultiva o amor a Deus sem nunca confundi-lo com o amor em sua modalidade humana, isto é, com as idéias e expressões que temos do que seria amor. O temor a Deus, na perspectiva islâmica, é a consciência ou convicção de que “Deus nos vê”, de que nada foge do Seu conhecimento e de que todas as ações humanas serão julgadas. O Alcorão Sagrado nos diz: “Criamos o homem e sabemos o que sua alma lhe confidencia, porque estamos mais perto dele do que (sua) artéria jugular.” (50:16)
Existem diversos níveis de consciência desse temor, o que não é relevante a ser discutido aqui. O que é importante é sabermos que o temor salvaguarda a fé, capacita o fiel muçulmano a meditar sobre seus atos e exercer seu livre arbítrio dentro dos limites que Deus estabeleceu. Sem essa qualidade razoavelmente desenvolvida, ou seja, sem um mínimo grau dessa consciência, é quase impossível que a pessoa não ceda às inclinações do ego e venha a agir segundo o que lhe convenha, sem considerar as ordens de Deus.
Na verdade, o grau do “temor a Deus” é uma condição primordial para que a pessoa seja abençoada com a Orientação Divina. Tanto que o Alcorão Sagrado se apresenta a nós dizendo: “Eis o Livro no qual não há dúvida, orientação para os tementes.” (2:2) Não se afirma como orientação aos que crêem num sentido genérico ou meramente formal, mas aos que “temem a Deus”. Com efeito, é o temor a Deus que guia a prática religiosa, quer seja no culto compulsório (a prática das preces, do jejum de Ramadã, do Zakat, etc.), ou nos atos de bondade e na abstenção do que Allah proibiu, porque ninguém nos obriga a cumprir nossos deveres religiosos. A dimensão do Islam é uma dimensão privada em que a pessoa tem apenas, segundo sua fé, a percepção de que Deus está ciente de tudo.
2 – A Sinceridade (a Purificação da Intenção)
O segundo aspecto a se destacar é a sinceridade ou sincera devoção a Deus. O Islam ensina que o culto a Deus não se limita às práticas religiosas (a prece, o jejum, etc.), ao contrário, o culto (adoração) abrange todos os aspectos de nossa vida: nosso relacionamento com as pessoas, nosso trabalho, nossos negócios, nossa intimidade e tudo o mais. A sinceridade requer a busca da purificação que, significa o esforço para dirigirmos nosso modo de vida para o padrão determinado por Deus. A purificação referida envolve essencialmente quatro tipos:
1) a purificação da intenção
2) a purificação em relação ao Haram (vedado)
3) a purificação com respeito aos meios de sustento
4) a purificação da intenção com respeito a seus semelhantes
A purificação da intenção se trata do esforço da pessoa no sentido de agir para a satisfação de Deus, quer seja nas práticas do culto religioso, quer seja nas ações diárias. Isto é, não devemos fazer de nossas boas ações “um meio” para conseguir recompensa ou reconhecimento alheio. A vida não é um comércio como muitos pensam. O comércio em si, é algo bom, mas não devemos fazer de nossa vida um balcão de negócios. Uma boa ação, por mais meritória que pareça, se envolve outros interesses que não a satisfação de Deus, não reflete a pureza de intenção, e Deus não aceita nada que não seja puro. A purificação da intenção requer o abandono de toda forma de auto-glorificação, ostentação ou vaidade. O valor das ações, segundo o padrão divino, é o procedimento por amor a Deus.
A purificação em relação ao Haram é uma correta distinção entre o Halal (o lícito, o puro) e o Haram (ilícito, impuro). O Islam nos orienta a buscar a Deus segundo as condições estabelecidas por Ele, dentre elas, está a observância dos limites estabelecidos por Deus, isto é, a abstenção dos alimentos que Deus decretou como impuros (a carne de porco, os animais sacrificados incorretamente, a bebida alcoólica, etc) bem como da prática dos kaba’ir (pecados graves) como a fornicação, o adultério, a calúnia, etc. A purificação significa a obediência efetiva a Deus. A fé ou prática religiosa que desconsidera esses princípios é um esforço nulo porque a fé se estabelece no que é puro.
A purificação com respeito aos meios de sustento segue a mesma lógica da anterior. Requer a abstenção de todo meio ilícito de ganho ou sustento. O fiel muçulmano deve se abster de toda forma de fraude, exploração, usura ou corrupção em seus negócios. Deve trabalhar honestamente em atividades lícitas e buscar seu quinhão neste mundo sem incorrer em avareza ou desperdício.
A purificação com respeito aos semelhantes é a sinceridade nas relações pessoais; a abstenção da mentira e da dissimulação, especialmente da mentira que venha a prejudicar aos outros ou lesar seus direitos. O fiel muçulmano deve zelar por sua palavra e ser fiel também em suas promessas e acordos.
3 – A Humildade
A humildade é uma qualidade exclusivamente interior, que não deve ser confundida com as idéias humanas em relação a ela, baseadas freqüentemente nas aparências e em conceitos equivocados. É comum que a humildade seja confundida com uma tendência a submissão, subserviência ou passividade. Nenhuma dessas características é necessariamente humildade. Uma pessoa pode ser submissa, subserviente ou passiva por várias outras razões, inclusive por razões nada louváveis como a covardia ou o comodismo. Ademais, a “a aparência de humildade, a falsa modéstia” é uma perigosa forma de dissimulação. Na realidade, a humildade é uma qualidade moral, que de modo semelhante à honestidade, se afirma por si mesma, isto é, quando uma pessoa é verdadeiramente humilde ou honesta seu procedimento atesta isso, não suas palavras ou sua aparência. De qualquer modo, a humildade nunca pode ser confundida com abdicação de direitos ou omissão diante da injustiça. Aquele que abdica de seus direitos ou se omite diante da injustiça por fraqueza de caráter, covardia ou comodismo, não respeita a si mesmo, e se o fizer sob o pretexto de “humildade” estará a mentir. Tal comportamento é indigno para um fiel muçulmano.
Uma boa definição de humildade seria “a qualidade de se colocar em seu justo lugar em qualquer circunstância da vida”. Então, há a humildade em relação a Deus, em que a pessoa cultiva uma adoração incondicional, cumpre suas preces diárias com veneração, dirige seus pedidos com sensatez e ponderação, não como fazem os carentes de entendimento e os politeístas que se dirigem a Deus, Exaltado Seja, sem considerar de modo correto Sua Grandeza, Poder e Sabedoria.
Em seguida, há a humildade em relação às criaturas, em que a pessoa “não se sente superior e nem permite que ninguém se sinta inferior a ela”. A abstenção de toda forma de arrogância é um importante elemento na fé. O Alcorão Sagrado, em diversas passagens, deixa claro a aversão de Deus aos arrogantes, e o Imam Jafar Assadeq (as) disse: “Arrogância e orgulho destroem a fé como o fogo destrói a madeira.”
4 – O Auto-Julgamento e a Contrição
A quarta qualidade a ser destacada é o auto-julgamento e a contrição. Trata-se de uma conseqüência natural das anteriores e sobretudo, da humildade. Desde que uma pessoa se liberte da arrogância, que nada mais é do que “um conceito exagerado sobre si mesmo”, não se sentirá inclinada a apontar os erros alheios. Imam Ali (as) disse: “Sejam seus próprios juízes, pois os outros têm seus próprios juízes para cuidar deles”.
O fiel muçulmano deve cultivar a meditação diária sobre seu procedimento, suas escolhas e o modo como está a dirigir sua vida, e esta meditação certamente lhe será de grande valia.
Contudo, o auto-julgamento se completa com a contrição. Arrepender-se de seus pecados e pedir perdão a Deus (istighfar) deve ser uma ação diária na vida do muçulmano. Em diversas tradições do Profeta e dos Imames Purificados encontramos a ênfase em se pedir proteção a Deus contra a subestimação do erro e do pecado e a recomendação para que não se adie o pedido de perdão.
A negligência nesse assunto e a persistência no erro (especialmente nos pecados graves) pode conduzir a pessoa a um estado de letargia da consciência, o qual nas fiéis tradições é denominado de “uma mancha no coração” que se não houver o pedido de perdão a Deus e arrependimento sincero, se alastra e domina o coração (espiritual) da pessoa destruindo sua fé e minando seu discernimento.
Os quatro aspectos que aqui comentamos são estados de consciência, atitudes mentais que, como tais dependem de nosso esforço pessoal e da medida de nossa sinceridade, do amparo e da misericórdia de Deus. O fiel muçulmano que cumpre suas preces diárias com correta devoção e sem negligenciar seus detalhes e injunções dá um passo importante nesse caminho. Comentamos aqui apenas alguns dos aspectos da fé, que segundo os eruditos do Alcorão e da Tradição somam em torno de setenta ou setenta e dois graus.
No início citamos algumas das principais formas de degeneração espiritual, é importante que as conheçamos:
– O convencionalismo é uma tendência a reduzir a religiosidade a um mero cumprimento de rituais ou à adoção de convenções sociais (reuniões, cultos, etc). A prática ao se tornar convencional se reduz a uma “aparência religiosa” que de modo algum implica em devoção ou comprometimento interior.
– O extremismo literal é uma tendência a tomar a religião e os ensinamentos sem o correto discernimento, perdendo-se a essência espiritual da fé. Nesse caso, é comum que a pessoa se desvie seguindo “inovações” e “inovadores” da religião.
– O fanatismo é uma conseqüência do extremismo literal. Com ele, a pessoa perde inteiramente o espírito da religião, abdica do raciocínio, fecha-se totalmente para o diálogo e a tolerância com os que não pensam como ela. Convence-se de que possui exclusividade sobre a verdade e é inevitável que cometa injustiças, opressão e pecados ainda mais graves.
– A hipocrisia é a absoluta ruína da fé. As três formas anteriores podem conduzir a esta quarta. Nessa condição, a pessoa se torna inimiga da verdade. As qualidades da fé se tornam detestáveis para ela embora nunca abra mão de sua aparência religiosa diante dos demais.
Os aspectos ou qualidades da fé, se cultivados em nosso íntimo, são eficientes para salvaguardá-la de todas essas formas de degeneração espiritual.