Porque Ciência Islâmica?

Autor: Yahia Cooper

O mundo islâmico atual é herdeiro de uma tradição intelectual que remonta a época da revelação alcorânica e mesmo antes disso. Não temos um completo registro histórico dessa tradição na literatura moderna, para situá-la na estrutura da história geral das ideias; um projeto nesse sentido não é algo novo.

De fato, encontramos referências a uma continuidade do pensamento, que vai além do contexto islâmico, em todas as grandes obras dessa tradição. Enquanto alguns filósofos (na Metafísica e nas Ciências Naturais) traçam suas origens no período da revelação até os antigos gregos, outros identificam suas raízes na Índia, na Pérsia ou Egito antigo. Mesmo as ciências teológicas situam seu desenvolvimento por intermédio dos profetas que precederam Mohammad.

A revelação alcorânica foi o ponto no tempo e na consciência no qual todos esses diferentes raios do pensamento convergiram para um novo raio de luz. Esse raio parece ter diminuído de intensidade, e muitos muçulmanos nos dias atuais perguntam-se sobre a razão disso ter ocorrido. Ansiosos para restabelecer as “ciências islâmicas”, primeiramente tentam descobrir as razões que levaram essas ciências à decadência e, em alguns casos, ao desaparecimento. Numa perspectiva mística, alguns chegaram a supor que, como uma luz guardada, essa sabedoria se encontra protegida nos repositórios dos verdadeiros guardiões do Islam. Não pretendemos aqui investigar tais razões, tomaremos um outro rumo.

Comecemos examinando a identidade das “ciências islâmicas”; nesse processo saberemos que essa identidade não repousa nessas ciências propriamente dito, mas em algo mais profundo.

Tomemos por exemplo uma ciência que ainda é praticada, a filosofia islâmica, como um ponto de partida. O que há nessa filosofia que a torna “islâmica”? Três elementos nela podem ser responsáveis: o objeto de seu estudo, os seus praticantes ou a metodologia que adota. Cabe acrescentar a falta de especificidade em seu objeto de estudo no que diz respeito à afiliação religiosa. Naturalmente grande parte de seu estudo se dirige às questões teológicas, tais como a Unicidade Divina ou os Seus Atributos; à metafísica, à fonte da autoridade na filosofia prática da ética ou da política.

De modo indireto, muitas das questões que foram levantadas pelos primeiros filósofos dessa tradição, assuntos que se tornaram convencionais na literatura, devem sua concepção aos debates teológicos, aos quais os filósofos buscaram abordar à sua maneira. Entretanto, essa característica não torna a filosofia mais “islâmica”, uma vez que o mesmo ocorreu na tradição filosófica cristã. Devemos lembrar que quando a filosofia ocidental investiga questões teológicas, chama a isso de “filosofia da religião”, não filosofia “cristã”.

A esse respeito, é revelador o fato que os autores ocidentais nos apresentaram “uma filosofia budista”, “Uma filosofia védica” e assim por diante, porém não nos apresentaram “uma filosofia cristã'”. Parece-nos uma mera conveniência para rotular filosofias de outros povos ou civilizações, por razões duvidosas ou para relegá-las a outras áreas do conhecimento (antropologia, sociologia, história, etc); deixando o campo aberto para a “verdadeira filosofia”: a filosofia ocidental contemporânea.

Grande parte da Filosofia Islâmica não se preocupa com os assuntos que até aqui mencionamos. A Lógica não é considerada parte da filosofia enquanto se mantenha dentro dos seus limites, mas sempre que levante questões além de seu campo formal, as quais impliquem em noções de existência ou conhecimento, a lógica (no contexto dessas questões) torna-se parte da Metafísica. Seria difícil entender que alguém julgasse essa teoria como “islâmica”. De fato, os filósofos islâmicos formularam esse conceito com o intuito de ir muito além de quaisquer considerações teológicas sobre o pensamento humano.

O que é verdadeiro sobre essa parte da filosofia é sua natureza aristotélica, e não parece haver dúvida que é preciso considerar esse conceito como um tributário do rio original proveniente do Primeiro Mestre. (Não tencionamos aqui afirmar que essa parte da filosofia seja não-islâmica, estamos questionando qual o sentido de chamá-la “islâmica”, no que diz respeito ao objeto de seu estudo).

Tornou-se por algum tempo comum utilizar o termo “filosofia árabe”, até que se chamou a atenção para o fato de que muitos dos seus praticantes não eram árabes. Na verdade, isso não vem ao caso uma vez que o termo “árabe” indica quase que exclusivamente o idioma empregado, não obstante muitas obras (sobretudo as mais recentes) tenham sido escritas em outros idiomas. De qualquer modo, o principal veículo de difusão dessa filosofia foi o idioma árabe. Porém, essa característica foi acidental, e especificar o assunto pelo idioma favorece somente a dispersão da discussão para além da preocupação acadêmica, com indesejáveis conotações nacionalistas.

Ambos os adjetivos (árabe e islâmica) devem ser vistos com ressalvas, uma vez que servem apenas para dirigir a atenção para fora da variedade da filosofia, distinguindo o objeto de estudo dessa filosofia das metodologias e temas das filosofias “não-islâmicas.”

Ao estudarmos sobre os praticantes dessa filosofia, para saber se a sua condição de muçulmanos foi ou não a razão para que se denominasse sua filosofia de “islâmica”, fica evidente que houve outras motivações envolvidas nisso (não somente acadêmicas). É um fato que quase todos os filósofos islâmicos foram muçulmanos. Contudo, houve exceções, filósofos cristãos e judeus que viveram num ambiente predominantemente islâmico. O que é inquestionável é que todos esses filósofos islâmicos acreditavam estar observando o princípio islâmico de buscar o conhecimento ao estudar, ensinar e escrever sobre ciência.

Mas, quando pode ser de interesse, conhecer as crenças religiosas de um filósofo, frequentemente uma digressão se a sua obra for julgada somente desse ponto de vista; sobretudo se ele afirma um grau de universalidade para suas ideias. Decerto que o filósofo merece ao menos o benefício da dúvida.

A questão é: quando um filósofo está discutindo, por exemplo, a natureza do conhecimento humano, desde que ele restrinja o método de sua discussão à racionalização filosófica, tudo o que for compreensível de suas ideias, compreenderemos melhor se também limitarmos nossa leitura ao mesmo tópico e análise. As distrações que nos acompanham por relembrarmos constantemente as filiações religiosas dessa filosofia são mais do que o resultado da incompreensão. Tais considerações podem ter importância em outros assuntos, quando por exemplo, consideramos as afinidades neo-platônicas de Copérnico no que diz respeito à evolução de suas ideias; porém serão de pouca valia para o entendimento da matemática de sua tabela astronômica.

Se tivermos lido um filósofo, poderemos afirmar que ele escreveu algo absurdo ou incompreensível, nesse caso será interessante perguntar se isso resultou de suas crenças religiosas, ao menos até onde concerne a disciplina da história das ideias.

Até agora evitamos ir além de supor quais seriam as verdadeiras razões para a popularidade do nome “filosofia islâmica”, seremos então mais diretos. O leitor pode pensar que estamos às voltas com mais um dos debates contra os maus caminhos adotados pelos orientalistas, mas nós achamos que aquilo que já se disse sobre suas motivações é o bastante. O problema que temos aqui é mais amplo e mais específico do que tratar de atacá-los. Ademais, o termo “orientalista” encoraja atualmente o mesmo tipo de distração que associa ao uso da expressão “filósofo islâmico.”

O aspecto mais simples do problema se refere ao estado de imersão do indivíduo na cultura ocidental. Nós percebemos, por um lado, uma consciência de que a crescente especialização da ciência ocidental está transformando-a em algo sem sentido. Sua mistificação por parte dos próprios cientistas exige um longo período de iniciação para qualquer um que tente entender mesmo uma parte disso; uma iniciação que ao ser mais e mais compreendida, não conduz o acólito no caminho do raciocínio prudente. (Essa iniciação) lhe revela complexidades, como seus criadores gostariam que ele acreditasse, mas que emprega uma variedade de outras técnicas que garantem a aceitação tácita do iniciado de modos determinados de ver as coisas, sem fazer uso da reflexão. Essa é uma iniciação necessária, pois é impossível que um ser humano assimile as conclusões de qualquer ciência moderna sem aceitar muitos pressupostos de modo acrítico. Isso tudo é muito bom para a ciência moderna, mas deve o acólito desaparecer, ou preferir não acatar algo que lhe seja imposto (sem o devido exercício da reflexão) e não mais ser tratado como um co-pesquisador; tendo o direito a toda solidariedade que um viajante espera receber? Outras técnicas estão disponíveis além daquela de uma paciente revisão crítica, para determinar se ele deve receber autorização para continuar sua jornada.

Por outro lado, há uma insatisfação com os resultados da ciência moderna (e notem a ironia disso, levando em conta o argumento de sua superioridade com base nos resultados incomparáveis, argumento sempre utilizado por seus praticantes ao justificarem sua defesa), insatisfação que leva mais e mais pessoas a buscarem em outros lugares as respostas aos problemas criados por tais resultados.

Essa rebelião pode ser contida enquanto a busca dos insatisfeitos resulte somente em indigestão diante da miscelânea cultural; pois isso pode ser atribuído à fragilidade da alma humana que, percebendo as complexidades da “ciência” como alguma coisa de difícil ingestão, o que a faz entregar-se aos luxos das irracionais, porém confortantes e exóticas alternativas constantes no menu. Quanto mais exótica a escolha, mais o argumento se sustenta.

Não temos a intenção de defender que qualquer coisa com o adjetivo de “islâmico” seja o adequado antiácido para essa indigestão, longe disso. Todavia, é certamente uma vantagem que um adjetivo com tão impressiva conotação para os ocidentais esteja ligado a uma completa tradição científica. Com isso, efetivamente riscar do menu séculos do pensamento humano, e ainda inseri-lo na lista das drogas prescritas, rompendo o limite com a mais intrépida das dietas.

Para concluir, e para que ninguém levante a objeção de que a filosofia não seja uma ciência, apresentemos então a nossa terceira sugestão que possa explicar a razão para o uso do termo “islâmico.” Essa sugestão diz respeito à metodologia da filosofia islâmica.

O que dissemos até aqui sobre o objeto de estudo e os seus praticantes toma a filosofia como exemplo, mas não há nada que não pudesse ser aplicável à ciência natural ou a qualquer outro ramo do conhecimento, e também à metodologia.

Embora não seja mais uma prática corrente no mundo ocidental chamar a filosofia de ciência, não é o que ocorre nas demais tradições, sobretudo no Islam. Ciência e Conhecimento compartilham do mesmo termo árabe (‘ilm), e toda área em que o conhecimento pode ser adquirido se torna uma ciência.

Não devemos nos preocupar aqui com a razão que levou a filosofia no Ocidente a não ser mais considerada uma ciência. Porém, uma vez que dentro da tradição estamos considerando-a uma ciência, podemos utilizar esse fato para justificar o uso do termo “islâmico”.

É possível supor que estamos falando do esquema de ciência dedutiva de Aristóteles; deixemos claro que não. É bem verdade que o sistema aristotélico para classificar as ciências é o predileto dos filósofos islâmicos, tanto que mesmo a lei e a história foram classificadas de acordo com o mesmo. É igualmente verdadeiro que, além da metafísica e da lógica (seriam versões ocidentais desse aristotelismo) talvez o único exemplo sobrevivente do que podemos chamar ciências aristotélicas seja a jurisprudência, a qual ainda se encontra dentro do sistema educacional islâmico, muito embora não seja essa característica que torne tais ciências “islâmicas”. De fato, há uma outra coisa na tradição islâmica em geral que possui uma afinidade específica com a abordagem aristotélica.

Se algum muçulmano for perguntado qual é a crença principal de sua fé, sem dúvida responderá: o Tawhid (Unicidade Divina); antes mesmo de citar a profecia de Mohammad.

O não-muçulmano pode identificar a característica peculiar do Islam no seu princípio de “declaração” da revelação; mas o muçulmano não enxerga isso, mas a crença no “Tawhid”. Ele crê que essa é a mensagem real, não apenas do Islam, mas de todas as religiões, mensagem que foi aperfeiçoada na revelação islâmica.

O que muitas vezes é traduzido como “Monoteísmo” ou está contido nesse sentido. Todavia, quando se olha para sua forma gramatical, se revela seu aspecto ativo de unidade; e é esse aspecto de unicidade que justifica a afinidade dos sábios islâmicos com o sistema científico aristotélico, e que ajuda a explicar a graduação elaborada por eles.

Nós dissemos antes que havia um aspecto específico nesse problema (relacionado aos muçulmanos), e também um outro, mais geral, que está relacionado ao Ocidente. (Quanto ao primeiro é): Os muçulmanos estão a negligenciar sua própria tradição científica.

A campanha da ciência ocidental teve pleno sucesso em suprimir a competição, não apenas no ocidente como no oriente; sucesso que talvez tenha sido maior no mundo muçulmano. Em qual universidade do mundo islâmico as ciências islâmicas são praticadas, não como disciplinas históricas, mas como “ciências vivas”?

É possível que um fator decisivo nessa transformação tenha sido a ideia de que, sendo a ciência aristotélica o fundamento para “as ciências islâmicas”, torna-se necessário para qualquer pessoa que queira seguir a tradição, aceitar o sistema aristotélico como dogma; mas tentamos demonstrar que essa ideia é um equívoco. Não há coisa alguma dogmática no sistema aristotélico, o qual foi escolhido por causa da grande afinidade com o conceito do “tawhid”. Portanto, deve estar aberto para exame; e se nele encontrarmos algo insatisfatório em seus princípios, será preciso tomar medidas para uma retificação.

Não queremos dizer que há erros na visão aristotélica do mundo; e há razões para supor que muito das críticas que se fazem a essa visão no Ocidente não se fundamentam nos princípios racionais que afirmam defender. Contudo, trata-se de matéria de uma área de pesquisa pouco explorada, e que deve chamar a atenção de algum verdadeiro filósofo islâmico. Quando isso acontecer, há de se concentrar nas razões pelas quais o sistema aristotélico tenha sido tão atraente para os pensadores muçulmanos, mas a ideia de que esse sistema seja “inferior” deve ser descartada desde o início.

O problema é, ir além dos rótulos, sobretudo os rótulos que nos foram impostos, para ver se carregam ou não as gratuitas mensagens subliminares com o intuito de nos fazer acatar ideias sem a devida crítica; ideias que impedem o avanço desejado.

O pensador não deve se intimidar na exploração de novos territórios, pela simples razão que outros estejam tentando convencê-lo da imprudência de sua aventura ou da inutilidade de seu esforço.

Poucas coisas na história das ideias são atacadas pelos cientistas ou filósofos, uma vez que são inclinados à reavaliação. Assim sendo, antes de fazer o que pretendemos e afirmar que a contribuição islâmica à ciência teve o seu tempo, devemos examinar se existem boas razões para tal retratação histórica.

Nem é preciso dizer que a história das ciências em terras islâmicas não foi uma corrente quebrada de uma “descoberta” seguida de outra, tal como na ciência moderna; nessa história científica havia riqueza abundante de ideias, algumas adotadas e desenvolvidas, outras rejeitadas e esquecidas, embora não perdidas para sempre.

Um estudo minucioso dessas ideias pode, acompanhado de outro sobre as novas ideias, trazer renovado vigor às ciências no mundo islâmico, e propor soluções para os crescentes problemas da humanidade, resultantes da obsessão que se tornou a ciência oficial.

“Allah é a Luz dos céus e da terra”. (Alcorão Sagrado, C.24 – V.35)

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