Como o Alcorão trata a força física?
Se examinarmos as narrativas que tratam desse tema, verificamos que Deus, glorificado e exaltado seja, não deu valor à força física em si, mas exaltou sua importância quando empregada para a prática do bem, ou seja, em benefício do ser humano. Quando nos fala a respeito de Talut , o Alcorão Sagrado diz: “Disse-lhes: É certo que Deus o elegeu sobre vós, concedendo-lhe superioridade intelectual e física” (Alcorão Sagrado, 2:247), ou seja, reuniu as duas forças, a intelectual e a física. Isso porque a força física sozinha é uma força animal. O boi é forte, o cavalo é forte, o leão é forte, o lobo é forte, o tigre é forte, o elefante é forte, o camelo é forte. Porém, nestes casos, trata-se de uma força meramente física, de carga, empregada no transporte a longas distâncias, ou para satisfazer a necessidade de caça para alimentação.
Ao lermos a respeito da força concedida a Moisés (a.s.), quando jovem, vemos que foi utilizada na defesa da justiça e dos injustiçados, não como instrumento de ataque, como ocorre no caso dos opressores, que desejam perpetuar a prática do ilícito. Conta o Alcorão Sagrado que Moisés (a.s.) deu de beber ao gado das duas filhas de Xuaib (a.s.) retirando a água de um poço onde havia muitos pastores. Ele utilizou a sua força jovem para proteger a castidade das moças. Quando retornaram para a casa do pai, ambas elogiaram Moisés (a.s.): “Ó meu pai, emprega-o, porque é o melhor dos que poderás empregar, pois é forte e leal” (Alcorão Sagrado, 28:26).
Observamos que não foi somente a sua força física que atraiu as moças, mas a sua lealdade e o seu caráter também.
O jovem Abraão (a.s.), que destruiu os ídolos, não se lançou com a sua força física para ameaçar ou matar o seu próximo, para mostrar a sua força física às pessoas. Ele carregou o seu machado para destruir ídolos que não beneficiavam ninguém, fazendo com que seu povo questionasse a função daquelas pedras, que não conseguiam se defender: “E os reduziu a fragmentos, menos o maior deles, para que, quando voltassem, se recordassem dele” (Alcorão Sagrado, 21:58). Quando o acusaram do ocorrido: “Foste tu, ó Abraão, que fizeste isso com os nossos deuses?” (Alcorão Sagrado, 21:62), ele não temeu, nem quando foi acusado, nem quando decidiram arrojá-lo ao fogo. Ele enfrentou a conspiração com outra força, a da sublime fé espiritual. Tinha confiança em que Deus iria ajudá-lo contra a conspiração dos seus adversários, confirmando que somente a força física não seria uma garantia plena de defesa.
Quando Abraão se encontrou com o tirano Nimrod, enfrentou-o com duas forças: a mental e a espiritual. Ele não utilizou a força material por saber que a de Nimrod era superior à dele: “Abraão disse: Deus faz sair o sol do Oriente, será que tu poderias fazê-lo sair do Ocidente? Então o incrédulo ficou confundido, porque Deus não ilumina os injustos” (Alcorão Sagrado, 2:258). O fato digno de destaque nessa cena foi a vitória incontestável de Abraão (a.s.) sobre o rei, que não era forte, mas alegava sê-lo, o que sói acontecer, diga-se de passagem, com outros tiranos atuais.
Encontramos nas páginas iluminadoras do Alcorão a história de Abraão (a.s.) e seu filho Ismael (a.s.), ajudando-se mutuamente na construção da Casa de Deus, a nobre Caaba. Ismael (a.s.), o filho, carregava as pedras e Abraão (a.s.), o pai, assentava-as até completarem a construção. Este é um outro exemplo, que deve ser acrescido aos anteriores, demonstrando que a força física, no Islã, deve ser destinada à realização de qualquer obra – braçal, científica, cultural, educacional ou ritual. O caso de Abraão e Ismael (que a paz de Deus esteja sobre ambos) nos faz lembrar a construção da mesquita do Profeta, em Medina. Quando ele ordenou, após a hégira, a sua construção, os muçulmanos, muhajirin e ansar , propuseram-se a erguê-la em conjunto. Cada muçulmano carregava uma pedra, enquanto Ammar Ibn Yasser (R) carregava duas pedras de cada vez. O Profeta (S) abençoou-lhe a força e o entusiasmo.
Encontramos no Alcorão, também, o jovem Davi (a.s.), que se apresentou para combater o gigante Golias, apesar da diferença de idade e força física entre eles. Davi (a.s.) apresentou-se carregando apenas pedras e uma funda. Então, arremessou uma pedra na fronte de Golias, abatendo-o. Tem-se, aqui, mais um caso em que a força da fé sobrepuja a força física.
Vamos ao caso do servo virtuoso denominado no Alcorão Sagrado como Zul Qarnain, que utilizou seu potencial criativo na defesa dos mais fracos, erguendo uma barreira para protegê-los dos ataques dos inimigos de Gog e Magog. A construção de uma barreira de ferro necessita, como é sabido, de grandes esforços coletivos. Portanto, ele pediu aos jovens da comunidade para que empregassem sua força física para ajudá-lo naquela enorme tarefa, que os salvaria de ataques permanentes dos inimigos.
Em contrapartida a esses exemplos edificantes de emprego da força dedicada ao bem, temos, no Alcorão, várias passagens em que fica explícito o seu uso em favor do mal e da injustiça: “Não reparaste em como o teu Senhor procedeu, em relação à (tribo de) Ad, aos (habitantes de) Iram, (cidade) de pilares elevados, cujo similar não foi criado em toda a terra? E no povo de Samud, que perfurou rochas no vale? E no Faraó, o senhor das estacas, os quais transgrediram, na terra, e multiplicaram, nela, a corrupção, pelo quê o teu Senhor lhes infligiu variados castigos?” (Alcorão Sagrado, 89:6-13).
Todos os povos e governantes citados eram dotados de uma enorme força material, porém dedicada à proliferação da corrupção na terra, ao domínio de um ser humano sobre outro, escravizando e o desrespeitando o semelhante.
Qual das duas forças desejamos para os nossos jovens? A força do bem, em defesa do que é lícito e dos benfeitores, ou a força do mal, em defesa do que é ilícito e em apoio aos malfeitores? Em qual das duas fileiras devemos permanecer, seja na condição de esportistas-heróis ou homens fortes: Na dos nobres crentes como Abraão, Moisés, Davi e Zul Qarnain, que a paz de Deus esteja sobre todos eles, ou na dos incrédulos, como Nimrod, o Faraó, Haman e Golias?
Método Islâmico
O Islã não deseja que o muçulmano seja forte na sua adoração e débil em seus atos. Ele deseja que a pessoa seja forte nas duas atividades. Por isso, preferiu o crente forte, ponderado nos dois aspectos, equilibrado na sua conduta e na integridade de seus atos: “O crente forte é preferível ao crente fraco.”
Aqueles que, ao longo da história, defenderam o Islã nas batalhas contra a incredulidade, o politeísmo e a hipocrisia, eram heróis suficientemente fortes, severos, de primeira linha, tanto na crença quanto na consciência. Foram combatentes corajosos, que causavam medo nos inimigos no campo de batalha:“Mohammad é o Mensageiro de Allah, e aqueles que estão com ele são severos para com os incrédulos, porém compassivos entre si. Vê-los-ás genuflexos, prostrados, anelando a graça de Allah e a Sua complacência” (Alcorão Sagrado, 48:29)
Entre estes nobres paradigmas humanos, encontramos o Imam Ali Ibn Abi Tálib (AS). A seu respeito, o Mensageiro de Deus (S) disse: “Não há jovem além de Ali”, porque ele ofereceu a sua força a serviço da religião. Quando o Profeta (S) quis migrar de Meca para Medina e a tribo de Coraix aguardava um movimento seu para matá-lo, ele ordenou que Ali (a.s.) se deitasse em seu leito. Ali (a.s.)estava disposto a se sacrificar por Muhammad (S). A coragem a serviço da religião e em apoio a seus objetivos é mais importante do que todo tipo de adoração, porque é ela que protege a continuidade da religião.
Na famosa Batalha de Khaibar contra os conspiradores judeus que se fortificaram em sua cidade, narram os historiadores que Ali (a.s.) arrancou a enorme porta da fortaleza dos inimigos com tal força que a respeito dela disse: “Não foi uma força física, mas uma força divina.” Isso não significa que tenha sido uma força mágica, enviada por Deus, mas a força da fé, gerada pela confiança e dependência absoluta de Deus. A força da fé é que faz com que a força física opere milagres.
Na Batalha de Karbalá, quando os exércitos de Hussain, filho Ali (a.s.), e o de Yazid, filho de Muáwiya, se encontraram, verificamos que, apesar do menor tamanho do exército do Imam Hussain (a.s.), os seus jovens companheiros resistiram e combateram bravamente. Sua força veio da defesa da sua religião, da sua honra e da lealdade ao seu comandante, que representava o Islã.
De tudo isso, depreendemos que o Islã busca avaliar a inter-relação entre a força física, espiritual e mental, demonstrando que as três devem estar presentes no ser humano. Além delas, o Islã deu grande importância à força moral. Quando o Imam Ali (a.s.) estava educando e treinando o seu jovem filho Mohammad Ibn Al Hanafiya, ele lhe ministrava aulas conjuntas sobre as regras de combate e morais, dizendo: “As montanhas talvez mudem de posição, mas tu não deves deixar a tua. Comprime teus dentes. Dá tua cabeça para Deus. Fixa os teus pés no chão. Mantém teus olhos no mais remoto dos inimigos e fecha os olhos (para a quantidade numérica deles). E assegura-te de que o socorro procede de Deus, o Glorificado.” (O Método da Eloquência, Sermão 11, pág. 18).
A Verdadeira Força
Quem é o forte? Esta é uma pergunta à qual o Profeta (S) respondeu em mais de uma oportunidade. Vamos tentar registrar algumas destas respostas, porque estão dentro do nosso contexto:
1- O Mensageiro de Deus (S) passou, um dia, por algumas pessoas que levantavam pedras. Ele perguntou: “O que estão fazendo?” Responderam: “Estamos testando quem é o mais forte entre nós.” Ele lhes perguntou: “Querem que lhes informe quem é o mais forte entre vocês?” Disseram: “Sim, ó Mensageiro de Deus.” Ele disse: “O mais forte entre vocês é aquele que, caso esteja satisfeito, sua satisfação não o faz cometer pecado ou ilícito; caso esteja irritado, a sua irritação não o veda de dizer a verdade; caso assuma (posição de) autoridade, não faz nada além do que lhe diz respeito.”
A força, aqui, é moral. Que valor tem a força física daquele que luta com os fortes, porém não se envergonha de cometer o pecado e o ilícito? Nesse campo ele é derrotado com facilidade, apesar de ser difícil vencê-lo fisicamente.
2- O Mensageiro de Deus (S) passou, um dia, por alguns jovens que estavam lutando entre si. Perguntou-lhes o que estavam fazendo. Eles responderam: “Estamos verificando quem é o mais forte entre nós.” Ele lhes disse: “Querem saber qual é a verdadeira luta?” Responderam: “Sim, ó Mensageiro de Deus!” Ele disse: “A verdadeira luta (e repetiu isso três vezes) é quando o indivíduo se irrita, aumenta a sua irritação, o seu rosto fica vermelho, a sua pele se arrepia e ele não obedece à sua irritação.”
Em outra oportunidade, o Nobre Mensageiro (S) disse a um homem que foi ter com ele para pedir-lhe conselho: “Não se irrite!” Quando o homem retornou para a sua tribo, encontrou-a se preparando para combater outra tribo. Ele interferiu no assunto para evitar a luta, ofertando à sua tribo uma compensação pelos espólios que iriam auferir. Com isso, evitou o derramamento de sangue de ambas as tribos, contendo sua ira e apaziguando a sua cólera. A respeito disso, o Imam Ali (AS) disse: “A pessoa mais corajosa é aquela cuja benevolência sobrepuja a sua ira.”
3- Os muçulmanos tinham o hábito de disputar corridas de cavalo e de camelos, e competiam no tiro ao alvo como arte da guerra e do combate. Narra-se que o Profeta (S) costumava participar dessas corridas. Ele tinha uma camela conhecida pelo nome Jari, que ninguém conseguia vencer. Alguns companheiros pensaram que ela era imbatível por ser a camela do Profeta (S). Um dia, um beduíno apostou corrida com a camela do Profeta. Os companheiros estavam presenciando a corrida. O resultado da corrida foi o contrário do que eles esperavam, pois a camela do beduíno ganhou da camela do Profeta (S). Os companheiros do Profeta ficaram decepcionados. O Profeta (S) disse: “Ela se vangloriou, e é do direito de Deus humilhar quem se vangloria.”
Estas são lições proféticas aos esportistas que vivem iludidos, orgulhos, admirando-se a si mesmos, arrogantes pelo simples fato de ganhar uma corrida qualquer. O Profeta (S), apesar de suas vitórias nas corridas anteriores, quis chamar a atenção dos presentes para o fato de que a sua camela não ganhava corridas por sua relação com ele (S).
Em outra ocasião, o Profeta (S), na volta da Batalha de Tabuk, fez os animais apostarem corrida. A sua égua, montada por Ussama Ibn Zaid, ganhou a corrida. As pessoas começaram a dizer: “O Mensageiro de Deus (S) ganhou.” Ele, porém, disse: “Ussama ganhou a corrida”, querendo frisar que a vitória é do cavaleiro e não da montaria, muito menos de seu dono.