Em Nome de Allah, O Clemente, O Misericordioso!
Por: Ahmed Ismail
Os acontecimentos políticos que tiveram lugar após o falecimento do Nobre Profeta (S.A.A.S.), se analisados de uma perspectiva estritamente histórica, livre de partidarismos ou opiniões pré-concebidas, não surpreenderão o pesquisador esclarecido.
A avidez com que aqueles que detinham o poder político e econômico na era pré-islâmica, se lançaram à conquista do califado, desconsiderando quaisquer obstáculos aos seus interesses, correspondeu a uma tendência verificável em todas as revoluções sociais e políticas da história.
O estabelecimento de uma ordem definida pela maioria, ou, melhor dizendo, por um grupo detentor do poder político de modo exclusivo, submete os opositores ou os grupos minoritários a uma condição de perigosa fragilidade. A perseguição política, a opressão e, sobretudo, a marginalização ideológica desses grupos se tornam quase que inevitáveis. Este foi o cenário político enfrentado pelos xiitas duodecimanos e as demais correntes religiosas genericamente denominadas de xiitas, durante os regimes omíadas e abássidas.
A estigmatização do xiismo e a tentativa de “provar” o seu caráter “não-islâmico” ou “herético” tiveram sua origem ainda no califado de Muawiya, quando as ofensas públicas a memória de Imam Ali Amr Al Mu’uminin (A.S.) foram incentivadas.
Concomitante à cruel repressão de Yazib Bin Muawiya ao movimento revolucionário de Imam Al Husein (A.S.), a política não menos repressiva dos regimes subseqüentes em relação às insurreições alawitas, no campo teológico ganhava corpo a tendência de clara hostilidade ao xiismo, com o objetivo de propagar entre a comunidade muçulmana o descrédito aos seguidores dos Imames dos Ahlul Bayt.
O surgimento de grupos ou seitas ultra-ortodoxas, caracterizadas pelo literalismo, a intolerância e uma forte inclinação à polêmica; foi um fenômeno posterior à formação dos mahzab tradicionais sunitas. Na realidade, nenhum dos líderes dos mahzab tradicionais corroborou uma posição de exclusão dos seguidores dos Ahlul Bayt(A.S.) das fileiras do Islam, tampouco generalizou a questão do xiismo enquadrando todos os xiitas à condição de heresia ou de apostasia.
Qualquer abordagem histórica honesta constatará excessos, inovações e distorções tanto entre algumas seitas ou ramificações xiitas tardias como entre seitas sunitas minoritárias. Uma identificação imediata entre xiismo e heresia jamais foi correta, a não ser para aqueles que fanaticamente adotaram a hostilidade à Shia como princípio.
Mas afinal, até que ponto seus argumentos se baseiam em fatos, até que ponto suas conclusões se originam de interpretações apressadas e superficiais? Será que as práticas e crenças xiitas são realmente o que seus opositores dizem ser? Será que uma interpretação puramente literal de todas as passagens do texto sagrado e de todas as tradições proféticas é capaz de demonstrar o que, de fato, é o Islam?
Ao nos determos atentamente aos argumentos lançados contra o xiismo percebemos, em cada um deles, a deliberada tentativa de dar à realidade a cor que convém aos acusadores; e mais ainda, utilizar os textos sagrados em apoio de suas próprias idéias, não considerando o que realmente estão a dizer. É irônico que algumas das acusações e críticas ao xiismo se assemelham, em sua formulação, às acusações e críticas que os cristãos e agnósticos fazem ao Islam e aos muçulmanos.
Tomemos então, alguns desses argumentos e críticas lançadas aos xiitas para uma análise mais cuidadosa:
1- A Polêmica da origem (O argumento do Sectarismo)
O argumento mais comum utilizado pelos críticos é a opinião de que o xiismo seria um desenvolvimento posterior ao Profeta (S.A.A.S.), e, por conseguinte, careceria de fundamento na revelação e na tradição. Os que sustentam tal opinião argumentam que o termo Shia (xi’ah) não teria sido utilizado nos tempos do Profeta (S.A.A.S.) com a atual acepção.
Há, contudo, abundantes evidências históricas acerca da existência de um número considerável de nobres companheiros do Mensageiro de Deus (S.A.A.S.) que, ainda durante sua vida foram conhecidos como “partidários de Ali (A.S.)”, que manifestaram seu apoio ao Imam (A.S.) nos dias que seguiram o passamento do Santo Profeta (S.A.A.S.) reconhecendo a precedência de Ali (A.S.) sobre os demais muçulmanos. Diante de evidências históricas irrefutáveis sobre a questão, a utilização ou não de um termo específico para denominar esse grupo se torna algo irrelevante.
Entretanto, ao se aceitar como válido o pressuposto de que “o xiismo não existia desde os primeiros tempos” é possível se concluir que se trata então de uma “inovação” ou “um cisma”. Alguns críticos costumam mencionar o versículo sagrado 159 da surata n.6 (Al An’am): “Não és responsável por aqueles que dividem a sua religião e formam seitas, porque sua questão cabe a Deus…” como base para sua acusação. Porém, alguns deles são honestos em reconhecer que o propósito da revelação do versículo acima nada teve a ver com os xiitas e que a palavra xi’ah nele é mencionada de modo genérico.
Na realidade, a xi’ah de Ali (A.S.) não surgiu como uma deliberada tentativa de “dividir” os muçulmanos tampouco “refundar o Islam” ou uma nova religião. As divergências surgidas a partir do falecimento do Profeta (S.A.A.S.) não se enquadram em nenhum tipo de “apostasia” ou “cisma” como apressadamente concluem os opositores do xiismo. Ademais, como em qualquer divergência, se tratou de uma ação bi-lateral, isto é, ambas as partes optaram por manter suas posições. Não há base racional na noção de que, numa divergência a parte minoritária deva, a priori, ser considerada errada ou culpada. Tal noção só encontra abrigo na conveniência da parte majoritária. E é exatamente este ponto que esclarece a razão da estigmatização do xiismo: numa relação desigual de poder político o lado mais forte impõe aos seus opositores o fardo da culpa. Os regimes omíadas e abássidas utilizaram todos os meios que dispunham para fazer valer esse princípio da luta ideológica.
2- Sobre Uma Suposta Inserção no Xiismo de Crenças Não-Islâmicas
Esta crítica carrega, mais do que as outras, o matiz político característico da época em que o poder no mundo islâmico começava a se tornar difuso. A fragmentação do mundo islâmico de então, em núcleos de poder distintos, suscitava novas rivalidades de caráter racial e tribal.
A acusação de que o xiismo seria resultante do desenvolvimento de crenças estranhas ao Islam, provenientes do zoroastrismo, do judaísmo e de outras tradições antigas se baseia numa generalização (ou campanha difamatória), comum a uma época em que a informação não era acessível a todos, o que permitia a estigmatização e a propagação de acusações infundadas acerca de um grupo minoritário. A generalização aqui, diz respeito ao fenômeno inegável do surgimento de diversos movimentos e seitas (xiitas e sunitas) nos primeiros séculos da Hijra que se caracterizavam por sustentarem crenças realmente estranhas ao Islam. A generalização se trata em acusar os xiitas duodecimanos de propagarem crenças desse tipo. Trata-se sem dúvida de uma acusação infundada, com o claro objetivo de alimentar a dissensão entre sunitas e xiitas.
Não sendo o objetivo deste trabalho esmiuçar os aspectos teológicos e exegéticos mais profundos dessa polêmica, me limitarei a dizer que não há no xiismo duodecimano maior influência do judaísmo ou do zoroastrismo do que há no próprio Islam. Da mesma maneira que acusação contra o Islam, de seus opositores cristãos e judeus, de que o Islam seria uma cópia das crenças do judaísmo, ou que o Alcorão Sagrado seria uma compilação das revelações precedentes, não se sustenta na realidade, a acusação contra o xiismo duodecimano nesse assunto também não é fundamentada. O que há, na verdade, é a própria veracidade da revelação, isto é, a crença num único Deus, na existência do Paraíso e no Inferno, a crença no Último Dia, no profetismo, no imamato, entre outras, não são exclusivas do Islam. Se encontravam também nas escrituras antigas dos povos supracitados. O que não nos permite inferir que o Islam seja uma “cópia” das revelações precedentes.
Com efeito, na doutrina dos Imames dos Ahlul Bayt(A.S.) não há nada “estranho ao Islam” tomado do judaísmo ou do zoroastrismo e incluído aleatoriamente, mas, a confirmação do que haja sido divinamente revelado no passado. Ademais, os ensinamentos dos Imames dos Ahlul Bayt (A.S.) não é senão o desdobramento ou a continuação dos ensinamentos do Mensageiro de Deus (S.A.A.S.), e a explicação detalhada do que Deus Altíssimo revelou no Alcorão Sagrado.
Por outro lado, o surgimento de crenças infundadas entre os sunitas, que não encontram qualquer base na revelação ou na tradição fiel, como a crença na eternidade do Alcorão ou da possível falibilidade ou desobediência do Profeta (S.A.A.S.) no cumprimento de sua missão, não despertam nos críticos a mesma disposição em acusar seus proponentes de hereges.
3- A acusação de que os xiitas propagam e praticam o politeísmo.
Esta acusação, mais do que as anteriores, revela a sua origem nas conveniências políticas dos que se apossaram do califado, tornando-o uma propriedade particular e hereditária.
O amor, o carinho e o respeito do povo comum à gente da Casa Bendita (A.S.) e aos mártires vitimados pela opressão governamental despertaram, desde o princípio, profundo descontentamento naqueles que, apesar de sua influência e poder, eram temidos, porém, jamais respeitados e queridos pelo povo. Tanto mais a brutalidade e a tirania estendiam suas asas sobre a nação muçulmana, mais os oprimidos tinham seus corações cativados pelos Ahlul Bayt (A.S.) e pelos virtuosos que os seguiram. A visita aos seus túmulos se tornou no decorrer do tempo, uma incômoda resposta do povo aos governantes que se sucediam no poder. Não causa surpresa, portanto, que se tornasse também alvo da campanha difamatória dos inimigos históricos dos Ahlul Bayt (A.S.) e de seus seguidores. Estes estavam cientes que os Imames (A.S.) e os xiitas duodecimanos em sua totalidade, eram os primeiros a condenar os excessos nessas práticas. Sobre esse ponto, Shaykh Mohammad Al Mudhafar comenta em sua obra “A Doutrina Islâmica da Escola Imamita”: “É impossível crer que aqueles que, por Deus, foram sinceros em suas intenções; em seus atos de devoção, que deram seu sangue pela causa do Islam, pudessem ser capazes de orientar o povo para o politeísmo (e adorar a outro ser senão) a Deus”.
O vasto compêndio de súplicas, litanias e sermões dos imames dos Ahlul Bayt (A.S.), popularizado entre os xiitas duodecimanos e disponível a quem quiser conhecê-lo e pesquisá-lo, é uma prova indiscutível do caráter monoteísta das crenças xiitas.
4. A acusação baseada na suposta crença do conhecimento do oculto por parte dos Imames (A.S.)
Esta acusação se vincula tematicamente à anterior. Faz parte da mesma intolerância fanática que pretende distorcer os fatos para confirmar suas pretensões e conclusões apressadas.
Seus proponentes buscam fundamentá-la em tradições constantes nos livros xiitas que afirmam “o conhecimento estérico dos imames dos Ahlul Bayt (A.S.), concedido por Deus, sobre o que foi revelado aos profetas”. Segundo eles, essa crença contraria o Livro Sagrado, uma vez que Deus Altíssimo diz: “… Ninguém exceto Deus conhece o oculto dos céus e da terra…” (27:65).
Trata-se, pois, de uma acusação bastante primária em sua formulação. O conhecimento do que foi revelado não se confunde, a não ser nos intelectos limitados, com o conhecimento do oculto (que só pertence a Deus). Ou seja, nenhum dos Imames Purificados (A.S.) jamais reivindicou o conhecimento do oculto (daquilo que Deus não revela a nenhuma criatura na terra ou nos céus). O Imamato compreende o conhecimento mais elevado do que Deus deu a conhecer aos seus servos diletos. Os fatos passados e futuros, no contexto ou no âmbito desse conhecimento, fazem parte do que “Deus deu a conhecer”, não do que é de conhecimento exclusivo Dele.
Um comentário final
Fizemos aqui uma breve explanação sobre as polêmicas que envolvem o xiismo. O tema é bastante vasto e necessitaria de volumes inteiros para uma devida abordagem. O que é importante a ser ressaltado é que a retórica da exclusão e da estigmatização do xiismo atende a um plano deliberado, sobretudo após o triunfo da revolução islâmica iraniana, de acender a rivalidade entre os muçulmanos, explorar suas divergências e manter a Ummah numa condição de impotência diante das forças inimigas do Islam que estão a agir dentro e fora dela. Aprofundar o diálogo e o estudo, promover o conhecimento, a pesquisa livre de idéias pré-concebidas e utilizar os recursos modernos da comunicação são algumas iniciativas que, se Allah quiser, resultarão num movimento de reação a essa onda obscurantista.