As Sementes da Miséria e do Terror

Por: Ahmad Dallal
Tradução: Ahmad Ismail

Ainda aturdido pelas imagens de morte e destruição que abalaram Nova York em 11 de setembro, o mundo parece ter entrado numa guerra cultural e religiosa de magnitude. Mais que nunca, os prognósticos do “choque de civilizações” feitos por muitos “profetas do apocalipse” dão o paradigma dominante para entender e até criar a ordem global atual. No entanto, ver a crise em curso apenas pelo prisma de dicotomias essencialmente religiosas encobre as realidades complexas que culminaram nela. Além disso, pode mais exacerbá-la que ajudar a resolvê-la. No mundo inteiro a política externa americana sempre foi atentamente acompanhada. Sabendo muito bem os efeitos que provoca em sua vida, todos os povos e Estados se esforçam para prever de que forma a política externa americana poderá moldar seu destino. Em contraste, porém, a maior parte dos americanos podia tranqüilamente não se importar com o que ocorresse em terras distantes, sem influência direta em seu cotidiano. Mas, com a sensação de invulnerabilidade atingida, muitos americanos percebem agora que ignorar o resto do mundo e dar as costas a seus conflitos é um luxo que o país não se pode mais permitir.

Os terroristas que cometeram o crime contra civis inocentes estavam armados de uma espantosa crueldade, sem outro objetivo que o de infligir morte, destruição e medo. Eles conseguiram levar o mundo inteiro à beira de uma catástrofe e acionar um ciclo de violência cujas maiores vítimas serão, sem a menor dúvida, os muçulmanos.

A guerra travada em resposta aos ataques tem o objetivo de perseguir varias redes terroristas, bem como os países que lhes dão guarida. Entretanto, por mais que a cobertura teatral nos possa atrapalhar o entendimento desta guerra, a realidade fundamental da campanha contra o terror continua sendo o fato de que, neste conflito, não há país a derrotar. O terrorismo não tem endereço geográfico nem político e não pode ser eliminado por bombas múltiplas e mísseis teleguiados. Mais importante ainda, o terrorismo surge da fome, do sofrimento e da destruição, e uma guerra contra o terrorismo não tem chance de atingir seus objetivos se não for uma guerra contra a fome, contra a miséria humana.

Com extrema facilidade, a atual retórica de guerra divide o mundo entre terroristas malévolos e seus valorosos adversários. No entanto, a maioria dos países não se encaixa em nenhum dos dois lados. Embora os atos terroristas despertem pouca simpatia em qualquer lugar, a longa história de agravos citada pelos terroristas para justificar suas ações ainda ressoa em boa parte do globo. E essa história corrói a dicotomia simples do bem absoluto e do mal sem limite.

Terrorismo é apenas um sinal da doença que vem fermentando de há muito. A crise de terror é uma imagem do mundo e um sintoma de seus males. O desafio de longo prazo não é apenas encontrar e combater os terroristas, mas identificar as condições sociais, políticas e econômicas que produzem terrorismo.

Em vez de ser relegada para um canto em favor de um enfoque exclusivo na guerra e na segurança, a história deveria formar as ações e políticas atuais e futuras.

Durante boa parte de sua história moderna, quase todo o mundo muçulmano esteve sob domínio colonial e ainda está a recuperar-se dos efeitos do colonialismo e de seu fim. Quando as potências coloniais começaram, aos poucos, a se retirar dos países que ocupavam, em geral passaram o poder a regimes autoritários sem representatividade, dando pouca atenção ao desejo das populações locais. Alguns desses primeiros regimes foram depois derrubados por golpes militares, mas os estados que surgiram logo viraram ditaduras que dissiparam os fundos públicos, violaram direitos humanos e impediram formas democráticas de expressão política.

Por todo o mundo muçulmano, inclusive nos países ricos em petróleo, dívidas nacionais imensas, níveis de desemprego e analfabetismo sem precedentes, corrupção e irresponsabilidade generalizadas continuam a afligir a economia e a contribuir para seu constante declínio. Apesar da localização estratégica e da abundância relativa de recursos naturais, a maior parte do mundo islâmico é pobre. A desigualdade de riqueza entre a maioria dos países islâmicos e os estados produtores de petróleo do golfo continua a crescer, assim como crescem as diferenças internas entre ricos e pobres em cada país. Assim como outras regiões do sul do globo, grandes regiões do Islam continuam também vítimas de políticas econômicas globais que causam sofrimento e miséria social tremendos no mundo inteiro. Na qualidade de principais beneficiários da ordem econômica mundial, os americanos são naturalmente tidos como guardiões dessa economia injusta globalizada.

De maneira mais específica, O APOIO DADO PELOS EUA A MUITOS REGIMES OPRESSORES DO MUNDO MUÇULMANO é motivo de agravos e grande ressentimento. Sem sustentação interna, vários desses governos corruptos e repressivos têm se servido do apoio americano para conservar seus privilégios e consolidar-se no poder. O amparo aos chamados “amigos moderados” dos americanos e a presteza em intervir militarmente em favor deles, por outro lado, reforçam a opinião de que a política externa americana é guiada exclusivamente por interesses econômicos e políticos oportunistas, sem atenção a princípios e padrões humanitários.

Antes do surgimento dos movimentos políticos islâmicos e antes que alguns deles adotassem a violência como meio de enfraquecer os adversários e tomar o poder, a violência política foi usada por diversos regimes para esmagar a oposição e impedir a tentativa de reformas democráticas. Na verdade, ela foi usada contra todos os grupos de oposição, tanto seculares quanto islâmicos, deixando pouco espaço para o dissenso político e social. Ante violações crescentes dos direitos humanos e com regimes dinásticos corruptos tentando desesperadamente manter o poder, um misto de miséria e ditadura não deixou outro recurso aos oprimidos que não a violência cega e promessas de salvação futura. Esse lamentável estado de coisas foi a causa dos conflitos que afligiram países como o Paquistão, o Egito, a Turquia e o Afeganistão nas últimas décadas. Nesses e noutros lugares, houve tentativas corajosas e freqüentes de reformas democráticas, mas a onda de democratização ainda não atingiu o mundo islâmico. São inúmeras as razões disso, mas os obstáculos internos ao avanço das reformas sempre têm sido reforçadas por forças externas.
O aliado mais próximo dos americanos no mundo muçulmano é a Arábia Saudita, o regime menos democrático e de ordem social mais repressora.

O HISTÓRICO AMERICANO DE DESCONSIDERAR SELETIVAMENTE OS DIREITOS HUMANOS E POLÍTICOS DOS MUÇULMANOS é apenas uma entre as várias razões que explicam o duradouro ressentimento do mundo islâmico para com a política externa americana.

Primordial, entre as outras causas desse ressentimento, É O APOIO INCONDICIONAL, POLÍTICO, FINANCEIRO E MILITAR QUE OS ESTADOS UNIDOS DÃO À OCUPAÇÃO BRUTAL DA PALESTINA POR ISRAEL. A IMENSA MAIORIA DOS VETOS A TODAS AS RESOLUÇÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU PARTIU DOS EUA EM DEFESA DESSA OCUPAÇÃO.

Caças a jato de fabricação americana bombardeiam uma população civil, enquanto os EUA se recusam a condenar ou impedir esses e outros atos do terrorismo israelense de estado. Além disso, mesmo quando reconheceram implicitamente o perigo da política expansionista de Israel, faltou aos americanos vontade moral ou política para pressionar Israel e eles preferiram culpar as vítimas palestinas da ocupação israelense. Muitos muçulmanos estão irados com a incapacidade de seus próprios governos de socorrer os palestinos, cujo sofrimento é acompanhado de perto no mundo todo. Outro motivo de raiva é a incapacidade desses mesmos governos de impedir o inacreditável desastre humano que ocorre no Iraque. Depois da derrota do Iraque na guerra do Golfo, foi imposto um embargo ao país com o objetivo de enfraquecer o regime de Saddam Hussein. Sem dúvida, Hussein é um ditador brutal que causou grande mal ao povo iraquiano e à região toda. Contudo, a política de embargo, imposta sobretudo pelos EUA, não atingiu o objetivo declarado de enfraquecer as bases desse regime brutal. Saddam Hussein continua a construir seus palácios e a maltratar a população. O único efeito palpável das sanções foi a morte de cerca de meio milhão de crianças iraquianas devido a falta de remédios, água saneada e alimentos. TODOS OS MESES, O NÚMERO DE CRIANÇAS MORTAS NO IRAQUE (EM RAZÃO DO EMBARGO) É IGUAL AO DE VÍTIMAS DOS ATAQUES DE 11 DE SETEMBRO.

A ausência de uma revisão dessa política externa, apesar da trágica perda de vidas inocentes, é vista como outra prova da indiferença americana à perda de vidas muçulmanas. Muitos dizem que esse “dano colateral” jamais seria tolerado se os mortos fossem de uma etnia ou religião diferentes.

E há o Afeganistão. Como no caso do regime de Saddam, não existem muitos muçulmanos dispostos a viver voluntariamente sob o governo cruel do Taliban. A versão do Islamismo defendida pelo taliban é uma forma grosseira e ignara de religião, que a maioria dos muçulmanos do mundo despreza. Mas a subida do Taliban ao poder foi em si mesma uma das conseqüências de uma política míope em que os EUA tiveram papel central. A gênese da estratégia americana no Afeganistão está na ocupação soviética do país, em 1979. A estratégia era travar uma guerra por procuração contra os russos, usando uma aliança com os muçulmanos afegãos. E assim começaram o recrutamento, o treinamento e o controle de um exército de mujahiddin. Osama Bin Laden foi um dos participantes do recrutamento. O apoio organizado à coalizão de resistência veio da Arábia Saudita e dos EUA que despejaram no país fantásticas somas e uma quantidade enorme de armas modernas e munição, ainda hoje usadas pelas diversas facções guerreiras. Os soviéticos acabaram se retirando em 1989, mas o preço da liberdade foi alto. Metade da população afegã foi morta, deslocada ou ficou aleijada; a agricultura foi quase toda destruída e 10 milhões de minas terrestres espalhadas pelo território tornam praticamente impossível revivê-la. Derrotados os soviéticos, o mundo deu as costas ao país que lhes causara a derrota. Em vez de despejar ajuda no Afeganistão, de contribuir para a reconstrução de suas cidades e de sua cultura e de criar um centro político que unificasse a sociedade, os patronos dos mujahiddin permitiram que facções em luta interna corroessem o pouco que restara do país, abandonando-o para apodrecer. E apodreceu. A coalizão que capturou Cabul em 1992 foi incapaz de manter-se unida em meio a lutas entre as facções étnicas. No fim de 1994, o Taliban, uma milícia apoiada pelo Paquistão, composta de fundamentalistas da etnia patane lançou uma ofensiva de bases na fronteira paquistanesa, visando a acabar com a guerra sectária. Embora restaurasse a ordem, o Taliban brutalizou o país e reprimiu todos os muçulmanos que não concordaram com sua grosseira interpretação do Islam. Interpretação, é preciso que se diga, promovida numa extensa rede de colégios internos custeados pelos sauditas e fundados durante os anos de resistência nos acampamentos de refugiados afegãos.

Claro que para fazer uma guerra ampla contra o terror será preciso prestar muita atenção a essa história complexa. As raízes do terrorismo não serão arrancadas com a mera conquista de um dos países mais esgotados e destroçados do mundo. Juntamente com a perseguição militar dos responsáveis pelos atentados é preciso haver uma guerra paralela contra a pobreza, a miséria e a injustiça. Mais ainda, desenraizar o terror também requer um sério re-exame da política externa americana, para garantir que os erros do passado não se repitam. Só então as sementes da esperança poderão substituir as sementes da miséria e do terror.

Dezembro de 2001.

Ahmad Dallal é professor de História do Oriente Médio na Universidade Stanford nos EUA.

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