Em Nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso
1 – Qual o Sentido da Vida Terrena?
Qual o sentido da vida humana neste mundo? Junto à questão do propósito da existência em si, invariavelmente surge em nossa mente a tentativa de entender o sentido da vida terrena. Sobretudo, quando nos deparamos com situações que escapam a nossa compreensão, como a do falecimento de um ente querido ou conhecido. Realidades como o envelhecimento e a morte nos obrigam a tais questionamentos porque contradizem e ameaçam tudo o que nos é tão caro. A questão é abordada no Alcorão Sagrado de forma bastante direta e simples. Duas afirmações básicas sobre o sentido da vida terrena são apresentadas: uma que se refere especificamente às coisas para as quais o ser humano concentra sua atenção, seus prazeres, rivalidades e distinções. A isto, o Alcorão classifica como “mero jogo e distração”. Em outras palavras, algo fadado ao perecimento e a dissipação. Nesse primeiro caso, a referência é ao que o homem, desatento da realidade maior, faz da vida terrena.
A segunda afirmação básica expõe a verdadeira razão da vida terrena e de seu fim. O Alcorão Sagrado nos diz: “Bendito seja Aquele em cujas mãos está a Soberania, e que é Onipotente; que criou a vida e a morte para testar quem de vós melhor se comporta…” (67/1 e 2) Esta segunda afirmação nos traz uma explicação abrangente. Nos diz que todas nossas ações, aspirações e atitudes diante das circunstâncias da vida terrena terão conseqüências aqui e na vida após a morte. Deixa evidente ainda que as bênçãos e favores divinos, as alegrias, as tristezas, os êxitos e os fracassos também correspondem a essa condição de teste; e que a nossa reação e o que faremos com cada uma dessas situações é que decidirá o nosso destino no Dia do Juízo. Assim, uma benção ou um êxito recebido com ingratidão ou sem sabedoria pode resultar em sofrimento no além e um fracasso ou tristeza pode resultar numa recompensa no além, tudo isso dependerá de nós mesmos.
Tratar do significado e implicações das inúmeras circunstâncias da vida terrena, as quais provamos das mais variadas maneiras, está muito além do propósito deste livreto. O que podemos dizer é que, a justiça divina não tem falhas ou omissões e que cada ser humano, na condição em que tenha vivido e na medida das oportunidades que tenha recebido, terá ou a recompensa ou o castigo segundo o seu merecimento.
Sendo “um teste” a vida terrena é o prelúdio de uma realidade muitíssimo mais vasta, tanto quanto a vida neste mundo o é em relação à vida uterina. A compreensão comum sobre a realidade maior (e os argumentos dos que a negam) se assemelha ao entendimento que um feto no útero pode ter sobre a vida terrena que o aguarda.
Assim, o Islam nos ensina que mais do que formar uma idéia mais precisa sobre o além, é mais importante criar um razoável entendimento sobre as leis que regem o nosso teste neste mundo.
2 – O Modo Islâmico de Condução de Nossa Vida
O Islam se diferencia de outros sistemas religiosos e filosóficos que estabelecem uma rígida distinção entre o “mundano” e o “espiritual”, a “carne” e o “espírito”; e que entendem a espiritualidade como um rompimento radical em relação às coisas do mundo. O Islam, ainda que faça uma distinção conceitual (não rígida) entre o mundano e o espiritual, de modo algum nega as sutis ligações entre ambos. A vida é uma totalidade, por conseguinte, o Islã não condena o mundano ou o carnal. O êxito espiritual não significa a supressão da natureza carnal, mas a educação do ser para que este seja senhor e não escravo de sua natureza mundana. O mal não é o mundo, mas o mal é o que o homem faz a si mesmo ao escolher ser escravo de suas paixões e caprichos. Portanto, o Islam não admite o celibato e não recomenda o ascetismo. O modo islâmico de vida é o modo do equilíbrio, do meio-termo nas ações. A ação moral que é exigida do homem nesse teste da vida terrena consiste, sobretudo, em viver no mundo, sem que ele se torne “o mundo. O Islam não nos diz para fugirmos do mundo ou para nos refugiarmos em claustros ou mosteiros. Ao contrário, nos ensina que devemos viver nossa vida no mundo com uma consciência ampla da realidade espiritual que rege nossa vida e o próprio mundo. Assim, o muçulmano deve cumprir seus deveres, cuidar de sua família e de seus dependentes, trabalhar para o seu próprio sustento, dividir seu tempo de modo sábio entre o culto a Deus, o estudo, o trabalho, o cuidado com os seus, o descanso e o lazer lícito. Empregar seus ganhos de modo prudente para o seu sustento e o dos seus, o auxílio dos parentes e dos que necessitam, a causa de Deus, e outras despesas com coisas lícitas sem incorrer em esbanjamento ou avareza.
A obediência sincera a Deus não exige excessos nem mortificações. Em todas as circunstâncias da vida diária esta obediência é possível e o Islam está baseado no que é factível, no que é possível segundo a capacidade física e psíquica de cada pessoa. Um exemplo disso, é o jejum do mês sagrado de Ramadã que, entre seus pré-requisitos está a saúde para cumpri-lo.
É a partir dessa consciência da religião, de seu caráter de equilíbrio entre razão e fé, que o fiel muçulmano conta com a correta perspectiva do objetivo da vida terrena.
Qual o melhor critério para as nossas escolhas neste mundo?
A pergunta sobre qual o melhor critério em nossas escolhas traz de forma implícita o entendimento que possuímos sobre os objetivos ideais em nossa vida. A despeito das numerosas diferenças entre os seres humanos, diferenças produzidas pela cultura, classe social ou nível intelectual, identificamos duas mentalidades básicas que os dirigem na adoção de um critério de escolha, no que diz respeito aos objetivos da vida: a mentalidade materialista e a mentalidade gnóstica.
Para a primeira, em razão de sua própria visão medíocre da realidade, a questão não requer qualquer reflexão: satisfazer as necessidades básicas e extrair da vida o máximo de bem estar e prazer imediato são os únicos critérios para suas escolhas na vida. As pessoas que possuem tal mentalidade, podem divergir apenas quanto a adotar ou não meios imorais para atingir tais objetivos. Contudo, concordam plenamente numa coisa: só os benefícios materiais importam, já que para elas, só existe a certeza sobre a vida neste mundo.
Essa mentalidade materialista forjou um estilo de vida descomprometido com uma possível realidade espiritual, que pode ser definido pelo adágio “vivamos o agora! Só se vive uma vez!” O Alcorão Sagrado em diversas passagens cita grupos de pessoas adeptas desse ponto de vista que desafiaram os Mensageiros enviados, e que se tornaram os seus mais ferrenhos opositores. A idéia de uma vida além da terrena, de uma ressurreição e um Julgamento lhes parecia absurda, lhes soava como uma insanidade. Por conseguinte, todo o esforço dessas pessoas se concentra unicamente em conseguir os benefícios da vida material.
A segunda mentalidade (gnóstica) é a mentalidade das pessoas que admitem a existência de uma realidade além da matéria e que de modo geral, acreditam numa vida após a morte. Por essa razão, tendem a adotar critérios melhor elaborados em suas escolhas e objetivos na vida.
Três grupos principais de pessoas possuem tal mentalidade:
Um grupo, o mais elementar deles, pode ser chamado de o grupo dos de mentalidade dúbia (ou hesitante). São aquelas pessoas que não obstante admitam uma realidade além da matéria, quer seja por fraqueza de caráter ou por uma convicção débil, se deixam influenciar pelo materialismo dominante. Vivem em conflito com seus próprios valores e em muitos casos se conformam a critérios e objetivos puramente materialistas. É comum que essas pessoas adotem padrões de comportamento e raciocínio limitados à busca dos bens terrenos e ao mesmo tempo, tentem satisfazer sua inclinação à busca espiritual aderindo a uma crença, filosofia, seita ou religião que lhes traga alguma esperança ou bem estar emocional.
Um segundo grupo, é o que pode ser chamado dos intuitivos. Sua percepção da realidade é mais instintiva e profunda do que os do primeiro grupo. Intuem uma realidade impalpável da vida e muitas vezes sequer possuem uma crença ou religião nem mesmo chegam a admitir uma vida após a morte. Entretanto, não se conformam aos padrões puramente materialistas ou à estreita mentalidade das aparências e convenções sociais, o que comumente os leva à uma condição de desajuste e em alguns casos à marginalização social. Uma parcela deles porém, supera tais condições adversas e se torna atuante; são os que desenvolvem um senso de justiça, altruísmo e ética e que tendem a se engajar em movimentos políticos, culturais, sociais ou religiosos que proponham mudanças na sociedade.
Um terceiro grupo, consideravelmente menor, é o dos buscadores. São pessoas que possuem todas as qualidades do segundo grupo. Todavia, vão mais além em sua busca espiritual e demonstram uma sincera intenção em adotar os critérios espirituais em suas escolhas e objetivos de vida. O Alcorão Sagrado em algumas passagens descreve um grupo de pessoas que, em todas as épocas, ao ouvirem os mensageiros enviados abriram seu coração à orientação e creram.
Portanto, a escolha de um critério para nosso procedimento e para a busca de nossos objetivos é determinada pela visão ou o entendimento que temos da vida. Exceto em circunstâncias óbvias em que a própria razão possa determinar, mesmo a compreensão que temos sobre o que seja “o melhor para nós” é relativa e freqüentemente equivocada. Isso ocorre porque para que tivéssemos a certeza de que uma decisão ou escolha fosse a melhor no sentido mais amplo de nossa existência, teríamos que ter o conhecimento de todas as conseqüências nesta vida e na outra de tal escolha ou decisão. Diante desse fato, o muçulmano é orientado a utilizar o melhor de seu raciocínio e conhecimento e a refletir se tal escolha ou decisão não será contrária à Orientação Divina. Feito isto, ele deve confiar no amparo de Deus e fazer sua escolha ou tomar sua decisão.
4. Uma Escala Sábia de Valores, Uma Diretriz para Determinar nossos Objetivos
O Alcorão Sagrado fornece grandes orientações acerca dos objetivos a serem buscados em nossa vida.
Primeiramente, o Alcorão nos recorda em diversas passagens que as bênçãos terrenas e espirituais pertencem unicamente a Deus; e que o nosso esforço, ainda que necessário, não é o fator decisivo na sua aquisição, mas sim, a generosidade divina. Por conseguinte, não devemos creditar a nós mesmos, à nossa inteligência ou capacidade os triunfos e aquisições.
Em segundo lugar, o Alcorão expõe a natureza das dádivas tal como realmente são, dizendo: “Aos homens foi abrilhantado o amor à concupiscência relacionada as mulheres, aos filhos, ao entesouramento do ouro e da prata, aos cavalos de raça, ao gado e às sementeiras. Tal é o gozo da vida terrena; porém, a bem-aventurança está ao lado de Deus.” (3/14)
Em seguida, nos explica como as dádivas são por Deus dispostas aos seres humanos, dizendo:
“A quem quiser as coisas transitórias (deste mundo), atende-lo-emos com o que desejar prontamente, a quem Nos aprouver, porém, destina-lo-emos ao inferno onde entrará vituperado, rejeitado. Aqueles que desejarem a outra vida e se esforçarem por obtê-la, e forem fiéis, terão os seus esforços retribuídos. Tanto a estes como àqueles agraciamos com as dádivas de teu Senhor; porque as dádivas de teu Senhor jamais foram negadas a ninguém. Repara como temos dignificado uns mais do que outros, Porém, na outra vida, há maiores dignidades e mais distinção.” (17/18 a 21)
Vemos que o Alcorão afirma que o amor aos bens terrenos é um fato consumado na vida humana. Contudo, deixa claro que a felicidade, a bem-aventurança está além disso, é um valor espiritual. Portanto, os que concentrarem seus esforços exclusivamente nos bens terrenos, nada terão na outra vida.
O Alcorão também deixa evidente que as dádivas terrenas estão ao alcance de todos. Como não constituem algo realmente relevante na escala de valores da existência, uma vez que são benefícios transitórios (fadados ao desaparecimento), não correspondem a uma justa compensação. Por isso mesmo, não são negadas nem mesmo aos ingratos e injustos. O Alcorão Sagrado reitera que nossos esforços serão recompensados segundo o que almejarmos, e diz: “Quem desejar a recompensa da outra vida, a terá aumentada; por outro lado, quem preferir a recompensa da vida terrena, também lhe concederemos algo dela; porém, não participará (da bem-aventurança) da outra vida.”(42/20)
Uma sábia escala de valores nos é apresentada. Uma prudente diretriz para os nossos esforços e aspirações, a qual não nega o direito a felicidade e o bem estar neste mundo. Entretanto, nos expõe uma realidade muito mais ampla do que a visão tacanha dos que fazem da busca dos bens terrenos um fim em si mesmo. Essa realidade que nos é mostrada é a de que não podemos fazer da busca dos bens terrenos a meta última de nossa vida. Que não podemos negligenciar o esforço para nossa felicidade espiritual neste mundo e no outro. Que devemos sobretudo dirigir nosso esforço para a meta espiritual, a adoção da Orientação Divina em nossa vida almejando a recompensa que Deus reserva aos fiéis. Essa é a escala de valores que o Islam apresenta, a que foi explicitada e vivida pelos Profetas (as) e Imames (as) para os que desejam o melhor neste mundo e na eternidade.