Trad: Ali Sivonaldo
Na sala quente e lotada, abafada por lamentos que são lançados como pombas taciturnas e lágrimas que rolam em meio a soluços como o orvalho sobre as pétalas de rosas. Todos estão focados no Imam Hussein. Todos estão pensando sobre o mestre dos mártires. Não há passado, não há presente, só existe o agora, nós não existimos, apenas o Imam Hussein, não há medo da morte, não há desejo para este mundo, apenas a sua libertação, a liberdade e o amor verdadeiro, pois esta é a cerimônia (Majlis) do Imam Hussein (as). Desde a infância, aprendemos sobre a tragédia de Karbala. Onde existem xiitas é possível encontrar pessoas se lamentando e participando das cerimônias. Algumas pessoas têm “questionado a verdadeira natureza” islâmica desses atos. Alguns afirmam que é um pecado grave, uma inovação no Islam. Outros consideram esse evento nobre como sendo “atrasado”, outros, ainda, acreditam que seu objetivo é simplesmente fazer as pessoas chorarem. Neste artigo, se Deus quiser, vamos examinar as origens históricas, bem como a filosofia por trás disso.
O elemento principal da comemoração de Karbala é a lembrança (thikr) do sofrimento dos personagens sagrados desta tragédia. Pelo menos na época do Imam Jafar al-Sadeq (as), isso foi feito através de um relato poético dos eventos. O primeiro Majils, no entanto, foi realizado pela irmã do Imam Hussein, a senhora Zainab, e o quarto Imam Zainul Abideen (as). Durante seu tempo e por muitos anos mais, as condições políticas e sociais não permitiram a recitação pública do Majils (celebração). Assim, os xiitas devotos realizavam as cerimônias privadas.
A realização pública do Majlis teve suas origens no ano 963 AD/352 AH, quase trezentos anos depois da tragédia de Karbala. Ele foi instigado pelo Sultão Muizz Dowla, um governante xiita que desejava protestar publicamente sua oposição à liderança corrupta da dinastia Abássida. Ele usou o incidente de Karbala como uma metáfora para a corrupção e apresentou o desvio em relação à comunidade (Ummah) em sua época. As celebrações (Majlis) do Imam (as) se tornaram um ponto de encontro para os xiitas abordarem as injustiças do passado, bem como exigir uma maior autodeterminação. No século dezesseis AD (século IX da era islâmica), os xiitas da dinastia Saffavida foram estabelecidos no Irã e o xiismo foi declarado a religião do Estado. Isso criou uma condição política socialmente mais favorável para as comemorações. Na cidade de Isfehan, que se tornou a capital da dinastia, vários grupos competiam entre si para as apresentações mais elaboradas e mais emocionantes. (Talvez seja nesta situação que surgiu o metal que corta partes do corpo (ghameh) e autoflagelação, apesar das reservas dos estudiosos a respeito destas atividades.)
Mas qual é a filosofia do Majlis? É realmente apenas uma tradição levada longe demais? Devemos nós, que vivemos no Ocidente, abandoná-la? Se examinarmos a base do Majlis, podemos aprender que é realmente o coração do Islam e é uma de suas maiores manifestações de amor a Deus, ao Profeta (SAW) e a sua descendência pura. A filosofia do Majlis do Imam Hussein (as) é baseada no conceito do livre arbítrio, uma das questões que distingue a nobre escola xiita de outras escolas do Islam. A questão do pré-destino versus livre-arbítrio foi-se ampliado devido à tragédia de Karbala, por causa das questões levantadas na mente da comunidade (Ummah). Não esquecemos que as pessoas que cometeram atrocidades contra o Imam Hussein (as) foram muçulmanos que acreditavam na unicidade (Tawhid) e na ressurreição (Maad), e praticavam suas orações e jejuavam. Como eles poderiam decapitar uma pessoa a quem seu próprio profeta colocava no colo, quando criança, e o beijava, e não sentir culpa? Como eles poderiam justificar as suas barbaridades deixando o corpo do Imam Hussein despido e fazendo os cavalos pisotear o corpo do senhor dos jovens habitantes do paraíso? Depois de perceberem o que tinham feito, como é que eles não se revoltaram contra Yazid?
A resposta que Yazid apelou para a elite dominante, foi à idéia de que tudo é predestinado por Deus. Isso serviu para manter o seu status de (Califa). Porque tudo é pré-destinado, se o resultado é bom, a ação foi boa e se o resultado for ruim, a ação é ruim. Se Deus não quer que algo aconteça, ele não o faz, o que significa que Ele aprova. As pessoas não podem se rebelar contra as autoridades porque Deus predestinou para serem suas autoridades e se rebelarem contra elas seria se rebelar contra a vontade de Deus. Um pouco de meditação vai rapidamente revelar a natureza falsa deste argumento. Deus declarou: “E se quiséssemos, teríamos iluminado todo o ser, porém, a Minha sentença foi pronunciada; sabei que encherei o inferno com gênios e humanos, todos juntos.”. (32:13). Deus nos deu as faculdades do pensamento e das sensações, os profetas, os Imames e os livros divinos para nos guiar. É assim que Ele faz a distinção entre os fiéis e os infiéis. Se todas as ações foram predestinadas, então ninguém poderia ser responsabilizado pelos seus atos, porque não optariam por fazê-las. No entanto, Deus declarou que alguns irão para o inferno por causa de sua desorientação. Se Ele fez algumas pessoas desviadas serem destinadas ao inferno não foi por Sua vontade ou para puni-los, mas por algo que Ele os fez fazerem. Isso implicaria que Deus seria um Deus injusto (Valha-nos Deus), o que é uma impossibilidade, porque é contra a natureza refinada e gloriosa de Deus. Como Ele declarou: “Deus não frustará ninguém, nem mesmo no equivalente ao peso de um átomo…” (4:40), e, “Deus em nada defrauda os homens; porém, os homens se condenam a si mesmos.” (10:44).
A justiça de Deus sempre foi um dos pilares da crença xiita no Islam. Deus é justo e nenhuma injustiça pode ser atribuída a Ele. Desde o tempo de Zainab e do Imam Zainul Abideen (as), todo o propósito do relato da tragédia de karbala foi lembrar a injustiça feita não só ao Imam Hussein (as), mas o sofrimento suportado por todos os personagens santos da família do profeta (Ahl al-Bayt). O Majlis tornou-se um veículo para expressar esse conceito vital e importante do livre arbítrio. Como havíamos mencionado anteriormente, o Majlis público originado pelos esforços dos xiitas fizeram valer os seus direitos políticos e desenharam uma conexão entre a tirania e a opressão sofrida pelo Imam Hussein (as) aos seus próprios sofrimentos. Tendo uma situação semelhante agindo de forma semelhante. Assim, fora do movimento Majlis surgiu uma representação teatral dos eventos em Karbala, chamado taziyeh. Esta tem sido uma das maiores armas dos xiitas ao longo dos anos de resistência contra os opressores, e os inspira a renovar os nossos laços de fé e de fidelidade ao Islam. A opinião de muitos dos nossos grandes estudiosos islâmicos tem igualmente apoiado as performances taziyeh. Fazel Qommi, um grande teólogo do século 19 afirmou: “… há um momento em que está entre as maiores obras religiosa. E isto é apenas para agradar a Deus, uma grande luta (jihad), e se uma pessoa for humilhada em sua causa, ele não o excluirá de sua bênção”.
Os princípios do taziyeh são imitação (tamaththul) e semelhança (tashabboh). Isto é baseado em um hadiz conhecido pelo profeta Muhammad (SAAS) que afirma: “Quem se assemelhar a um grupo está na categoria deste grupo”. Imitando o Imam Hussein no desempenho e gritando por ele através da simpatia e da compreensão da sua situação, se assume o caráter da personalidade pura e radiante. Tanto assim, que se lembrar dele e de seus companheiros é como ter permanecido nas suas fileiras e ter se sacrificado pelo Islã como fizeram.
Muitas pessoas têm perguntado qual é o propósito do choro por pessoas que viveram e morreram 1.200 anos atrás, sugerindo que esqueça tudo e siga em frente. Para fazer isso seria como esquecer o Islã. Na verdade, chorar pelo Imam Hussein (as) é tão desejável, que se comparou com os frutos da adoração de Deus. Imam al-Sadeq (as) afirma: “O suspiro da tristeza pelo mal que nos fizeram é um ato de adoração”, e “Quem se lembra de nós ou lembra-se de nós em sua presença, é uma lágrima tão pequena como a asa de um mosquito que cai dos seus olhos, Deus perdoa todos os pecados … ” Imam Hussein (as) disse, “Eu sou o mártir de lágrimas, nenhum homem de fé se lembra de mim e deixa de chorar”.
Por que os Imames (as) com grandes méritos atribuíram estes atos numa marca de fé e um ato de adoração? Você não pode chorar verdadeiramente por eles a menos que você compreenda a sua generosidade, coragem, devoção e sacrifício pela Verdade. Para fazer isso, você deve estudar suas palavras e ações, pela sua própria verdade irá incutir o desejo de colocá-los em prática. Então, quando você suspirar por eles, você terá a recordação de Deus e Sua promessa do Reino apenas a serem estabelecidas pelo Imam al-Mahdi (as), aumentando assim a sua fé e paciência durante as dificuldades. Quando você lembrar que Deus em Sua misericórdia, enviou os guias e as provas de sua religião para nos salvar do desvio, e do fogo do inferno, então você deve derramar lágrimas pelos Imames que se sacrificaram para a orientação de toda a humanidade. Lembre-se como o profeta (SAW) disse que uma hora de contemplação é melhor do que setenta anos de adoração a Deus (SWT).
“Recordai-vos das mercês de Deus (para convosco), a fim de que prospereis” (7:69) Recita o que te foi revelado do Livro e observa a oração, porque a oração preserva (o homem) da obscenidade e do ilícito; mas, na verdade, a recordação de Deus é o mais importante. Sabei que Deus está ciente de tudo quanto fazeis.” (29:45)
E sobre a promessa de serem perdoados os pecados? Como é possível que o choro pela família sagrada (Ahlul Bayt) seja recompensado com o perdão dos pecados e um palácio no paraíso quando o mesmo não está prometido para outros atos menores (fariya)? Meus queridos amigos, saibam que vocês não têm que morrer no campo de batalha para ser um martir (Shahid). Você não precisa segurar uma espada na mão para ser um sábio islâmico (mujahid) no caminho de Deus. O mártir (Shahid) é literalmente alguém que presta testemunho, neste caso, sobre a unicidade de Deus (Towhid). Uma pessoa que testemunha a verdade e traz as pessoas para ela e se esforça para compreender a verdade, aplicar a verdade, viver a verdade e espalhar a verdade, é um mujahid e Shahid enquanto ele está vivo e vai morrer e a morte fará dele um mártir, mesmo que ele morra dormindo em sua cama. Como já foi mencionado acima, gritar pelos líderes infalíveis da arca da salvação requer uma mudança total de paradigma e uma dedicação para viver e morrer pela verdade e amor. Talvez por isso todos os pecados sejam perdoados quando alguém chora pelo Imam Hussein (as), porque se tornou um dos shahid em sua luta, e um sacrifício pelo Islam de Mohammad (saas). E talvez por isso que o oitavo Imam al-Rida (AS), declarou: “Se fosse do agrado de vocês teriam a recompensa daqueles que foram martirizados com Hussein, dizem sempre que se lembram dele, Oh como eu desejo que eu estivesse com eles, que eu possa ter alcançado a grande vitória. “
Outro benefício do Majlis do Imam Hussein (as) é que também cria uma continuidade de experiências entre os muçulmanos e seus líderes, fazendo com que cada geração se sinta como se estivessem com os Imames (AS) e o profeta Mohammad (saas). Pense em como você se lembra de um ente querido, é como se eles estivessem vivos e em sua presença. Ao recordar as vidas daqueles entes queridos infalíveis, repetindo a sua tradicão (hadith) e vivendo seu modo de vida (Sunna), que animam o espírito de conexão entre eles e nó, temos esperança, o que nos aconselha em momentos de dificuldade, e fornece um caminho de bravura, sabedoria, generosidade e paciência.
O Imam Hussein (as) tomou a decisão de enfrentar a injustiça e a tirania, em vez de ser complacente com ela. A vitória de Karbala não foi decidida no campo de batalha, mas no coração dos que procuram a verdade e amam a Deus. A verdadeira batalha não era sobre o poder, mas sobre a justiça e obediência a Deus e ao Seu Profeta. É também travada por aqueles que compreenderam corretamente a mensagem de Karbala e do Imam Hussein (as). Olhe como nos últimos vinte anos, sob a orientação do Imam Khomeini (ra), o povo do Irã foi capaz de derrubar o xá apoiado pela CIA, armados apenas com o amor pelo Imam Hussein (as) e um desejo pela verdade ou martírio! Foi esta mesma mensagem de Karbala, que inspirou a resistência islâmica no sul do Líbano ocupado pelas tropas israelenses. Para finalizar, algumas palavras do sábio, Seyyed Ali Yazdi: “Não é para fazer chorar que os Imames da fé xiita estão relacionados ao Imam Hussein, e eles se regojizam com isso? Não são as palavras do grande Imam Hussein, serei morto para que os xiitas chorem por mim… ”.