Autor: Ahmad Asmady
Introdução
Sufismo, no sentido de piedade, busca de libertação e santidade, originou-se sob a inspiração dos ensinamentos espirituais do Islam.
Homens piedosos e devotos como Salman, Abu Dharr, Suhayb Ibn Sinan e Ammar, desde os primeiros tempos do Islam, estiveram entre os Ashab Al Suffah, que gozaram da especial atenção do Profeta (saas). Alguns trabalhos mencionam Salman Al Farsi, Uwayys Al Qarani e Hasan Al Basri entre outros, como sufis, e muito aprimoramento espiritual é atribuído a eles.
Durante o regime omíada, quando a despótica e materialista monarquia distorceu os corretos ensinamentos islâmicos, um grupo de verdadeiros muçulmanos decidiu afastar-se dos assuntos mundanos e dedicar-se a piedade e a adoração. Segundo Ibn Khaldun, foi esse primeiro grupo que veio a ser chamado de “Sufiyyah”.
Alguns historiadores sustentam que o movimento Shu’ubiyyah, uma revolta contra a hegemonia árabe, movimento este formado em sua maioria por persas, foi responsável pela difusão do Sufismo.
Estudiosos supõem que o termo “sufi” deriva do termo “suf” (lã), sendo empregado para denominar (os adeptos do sufismo) que usavam vestes grosseiras de lã, com o intuito de desenvolver (resistência psíquica) e alcançar aperfeiçoamento pessoal.
A mais antiga obra que menciona o termo “sufis” para uma seita de piedosos é o Al Bayan Wal Tabyyn, de al Jahiz. A primeira pessoa a quem empregou-se o termo foi Abu Hashim As Sufi, contemporâneo de Sufyan At Thawri (161 hij.) e Ibrahim Adham al Balki (162 hij.).
A Origem do Sufismo
O sufismo baseia-se nas noções de autopurificação, abstinência, descoberta da verdade por intermédio do treinamento espiritual e a aquisição do autocontrole. Nesse estágio o coração é purificado de todas as formas de desequilíbrio, e a Luz Divina é refletida no ser por meio da Emanação, e as coisas invisíveis são percebidas com a remoção dos véus.
Esse esforço espiritual é registrado desde o princípio da história de todas as tradições religiosas antigas, tanto que é impossível definir a origem histórica ou precisar uma origem geográfica ou étnica para essa prática espiritual.
O Sufismo era muito simples no princípio. Como prática espiritual, era efetiva para aqueles que viviam uma vida de piedade, reclusão e total devoção a Deus.
Todavia, com a passar do tempo, essa simplicidade e pureza desapareceu dando lugar a uma prática miscigenada, composta de doutrinas forâneas tais como a crença na Emanação (do Neoplatonismo), gnosticismo, filosofia pitagórica, estoicismo, filosofia khusrawi (filosofia persa), Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e tendências místicas similares predominantes nas religiões da Antiga Pérsia.
Tais influências foram úteis no desenvolvimento de uma síntese filosófica baseada nas concepções de revelação da realidade mística (muhashafah), da visão (mushahadah), do amor e do êxtase. Essa filosofia inclinava-se à aceitação da Unidade Abosuluta de Deus, da Unidade do Ser, da aniquilação do ego em Deus (Fana fii Allah) e da eternidade em Deus (pela submersão do eu na Essência Divina – Baqa bi Allah).
Portanto, o sufismo não é uma religião tampouco um sistema de pensamento que possa se separar dos demais sistemas filosóficos que o compõem; podemos dizer que sua base é o monoteísmo puro e a noção de que qualquer pessoa pode se comunicar com Deus, como afirmam neste verso: “Os caminhos para Deus são tantos quanto o número de seres humanos / De fato, cada coração abre uma via que leva a Deus.”
No século 3 da Hijra ensinamentos gnósticos foram introduzidos no pensamento islâmico. Embora o sufismo tenha sua origem nos versículos do Alcorão, na tradição e nos dizeres do Profeta (saas), podemos dizer que o gnosticismo islâmico é sobretudo derivado do monoteísmo semita e do racionalismo grego combinados com a filosofia pitagórica e as influências estoicas, a teoria da causação, o aristotelismo e o panteísmo neoplatônico, combinação esta que moldou o caráter peculiar desse movimento.
Nossos predecessores declararam a existência de quatro vias para a verdade:
1- A filosofia peripatética (Hikmat-i- Mashd)
2- A filosofia da Emanação (Hikmat-i- Ishraq)
3- A Filosofia Kalam (Escolástica)
4- O I’rfan
A filosofia peripatética é discursiva, ou seja, baseia-se na razão e na prova. É derivada da filosofia aristotélica. Seus principais expoentes no Islam foram Al Kind, Al Farabi e Ibn Sina.
A filosofia da Emanação (ou Iluminacionismo) afirma que a realidade absoluta é compreensível somente através de muhashafah (revelação da realidade transcendentes), do mushahada (da visão mística), do shawq (ishraq) (Iluminação), do ishq (amor) e do riyadah (autodisciplina espiritual).
Nessa filosofia a fé confirma as descobertas da experiência religiosa, não que possa por si só guiar o indivíduo à realidade. Os filósofos (peripatéticos) não necessariamente seguem a Revelação Divina ou a Shari’ah. Contudo, isso não significa que neguem os fundamentos da Shari’ah.
Filosofia Kalam
A fiolsofia escolástica islâmica é a escola que interpreta a realidade como algo cognoscível pela razão e suas ferramentas (os argumentos da lógica). Objetiva provar racionalmente a validade das Leis Divinas (ahkam) harmonizando-as com os ditames da razão e refutando as objeções levantadas por seus oponentes. Foram importantes filósofos mutakallimun Wasil Ibn Atar, Al Ashtari, Al Baqilani, Imam Fakhr Al Din Al Razi, Al Shahristani, Allamah Al Hilli e Khwajah Nasir Al Din Al Tusi. Todos eles seguiram estritamente a lei canônica (al Shari’ah).
I’rfan
(Irfan) Filosofia gnóstica baseia-se na iluminação (ishraq), na epifania (inhishaf) e na absorção (injidhab) em Deus. Os ‘urafa (gnósticos) consideram a razão e a lógica instrumentos insuficientes para a compreensão do Divino. Eles são fiéis ao Livro de Deus, aos dizeres dos profetas e a orientação dos santos do Islam (awlia). O verdadeiro ‘urafa recita continuamente os versículos do Alcorão e o dhikr (recordação de Deus), sendo cumpridor dos mandamentos da lei religiosa.
Shari’ah, Tariqah e Haqiqah
Shari’ah (Lei Religiosa)
O sentido literal do termo shari’ah é “aproximar-se da fonte da qual a água é retirada”. No jargão religioso porém, significa as leis da religião comunicadas por Deus através do Profeta (saas) e também as palavras e as ações do Profeta (saas) no trato dos assuntos mundanos ou dos assuntos relativos a outra vida.
Uma vez que a Shari’ah é uma manifestação da generosidade de Deus, que é igual para todos, Deus beneficiou a humanidade inteira ao enviar seu Mensageiro (saas) para todos os seres humanos.
Segundo Sharh i-Ghushan-i-Raz, a Shari’ah compreende a lei que governa o comportamento exterior e serve como uma proteção interior. Qushayri diz: “A Shari’ah está relacionada necessariamente à submissão a Deus, a qual significa aceitação da Unicidade Divina, a afirmação do testemunho dos mensageiros de Deus e a aderência ao Islam. De acordo com o Imam Ali ibn Abi Taleb (as), Islam significa submissão, ou seja, agir de acordo com as exigências do serviço devocional.
O Islam possui um aspecto exotérico e outro esotérico. O exotérico é a firmação verbal ou aparente da submissão às Leis Divinas (shari’ah).
O aspecto esotérico exige, em adição à afirmação verbal, uma ligação incondicional (a Deus) pelo coração; a fé pura; porque o coração e o espírito constituem a verdadeira realidade humana.
O fundamento da shari’ah é a identificação da verdade (absoluta), que somente é possível por meio do autoconhecimento (aquele que conhece a si mesmo, também conhece a Deus). Um dos ahadith qudsi afirma: “Eu (Deus) era um tesouro oculto, e desejei ser conhecido. Portanto, recorri ao ato da criação, para que pudesse ser conhecido”. Assim, Deus, por Sua graça, deu início ao processo da criação, criou o homem e concedeu-lhe uma luz manifesta em seu ser. Ele o designou Seu representante confiando-lhe a tarefa da consciência absoluta (de Deus). Hafiz disse: “Os céus não puderam suportar o encargo de Deus. Portanto, (esse encargo) foi destinado a um homem louco, como eu”.
O ato da primeira criação foi um ato da Vontade Divina, e todas as demais criaturas também foram criadas por essa vontade. A compreensão de Deus e a lembrança Dele são alcançadas pela adoração. Para recordar a Deus continuamente uma pessoa deve manter-se em adoração, pela prece, o jejum, o zakat, o khums, o jihad, etc; e nunca deve negligenciar o dhikr (recordação) pela recitação dos Nomes Divinos.
No sufismo o primeiro estágio é o preparo pessoal através da adoração (‘ibadah), seguido pela estrita aderência. A menos que uma pessoa cumpra os deveres básicos (prescritos pela shari’ah) não poderá avançar para os estágios superiores.
De acordo com Ibn Sina, o “eu” deve ser preparado por meio da adoração (‘ibadah) e do exercício espiritual, até que alcance o nível do “nafs -al-mutma’innah” (a alma que se auto-repreende) o qual o capacitará para a visão da realidade. Aqueles que não seguem a shari’ah estão muito longe do verdadeiro “i’rfan”. Chamam a si mesmos de ‘arifs”, porém na verdade são tolos, grosseiros e irresponsáveis. Um Sufi quando atravessa a fase da shari’ah adentra ao estágio de Tariqah, tendo o direito de ser chamado “a’rif.” Contudo, aqueles que permanecem preocupados com as aparências e os aspectos externos da religião, e que não desenvolvem uma visão clara, não conseguem superar o estágio mais inferior.
Se alguns ‘urafa (verdadeiros gnósticos) fazem dos autodenominados “sufis” alvos de suas zombarias é porque têm a intenção de expor o autoengano daqueles cujos corações não foram iluminados pela luz da verdade. Um sincero seguidor desse caminho deve passar pelos estágios prescritos para atingir a pureza.
Tariqah
Um discípulo que toma a recordação de Deus como caminho de adoração, prepara-se para elevar-se ao estágio denominado tariqah, ou “senda sufi.” O Alcorão afirma:
“Quanto àqueles que se empenham em Nossa causa, serão guiados em Nossas sendas. Deus está com os virtuosos”. (C.29 – V.69)
As condições essenciais para a shari’ah são: sinceridade e verdadeira fé. Aqueles que alcançam esse estágio estão prontos para adotar o caminho do progresso espiritual e podem adquirir pureza moral e espiritual. A condição para o progresso nesse caminho é ter um guia, como um poeta diz: “Não tome esse caminho sem um khidr (guia), pois é uma região escura; cuidado para não se perder”.
De acordo com Shaikh Mahmud Shabistari, “tariqah” significa uma jornada específica para um viajante na senda da Verdade, a qual inclui recordação (de Deus), renúncia ao mundo, concentração na Fonte Divina, reclusão, observância contínua dos preceitos, pureza corpórea (taharah), ablução, fidelidade, sinceridade, etc.
Al Qushayri define “tariqah’ nos termos de aderência a shari’ah e cumprimento dos deveres estabelecidos pela mesma, o que implica purificação moral, realização das qualidades humanas, esforço para seguir os exemplos dos santos e ação segundo a sunnah do Profeta e o caráter modelar do Imam Ali, de todos os demais Imames dos Ahlul Bayt e santos do Islam. O principal objetivo da tariqah é o aperfeiçoamento pessoal.
De acordo com Ibn Sina, o primeiro estágio do progresso espiritual é a purificação da vontade, a qual é obtida por meio da fé, levando à certeza e a paz de espírito. Uma pessoa que realiza essa purificação é chamada de “murid”(discípulo).
Um discípulo, antes de qualquer coisa, deve possuir a determinação de adquirir esse estado; e é essa determinação que o faz passar pela auto mortificação (do ego) ou “subordinação do eu carnal ao estado de “alma pacificada” (an nafs al mutma’inah)”. O discípulo atravessa três estágios nesse processo:
1-Takhilyah (desligamento), que significa libertação no que diz respeito aos desejos sensuais.
2- Tahiyah (embelezamento), que significa o refinamento das virtudes na alma.
3- Tajlyyah (iluminação), a imersão na Essência Divina, que é o abandono do egoísmo para o testemunho da Unicidade Divina (la Ilaha illallah wahdahu la xarika lahu).
Uma vez que tenha atravessado esses estágios, deverá cruzar sete vales:
1- Talab (aspiração): refere-se aos sentimentos de dor e ansiedade. O coração do discípulo anseia pelo mundo invisível e busca o Amado (o Criador) por toda parte.
2- Ishq (amor): o viajante espiritual em sua senda arde no fogo da separação, buscando a união com seu Amado. Ele faz tudo o que pode em sua busca.
3- I’rfan (Gnose): depois de cumprir fielmente a shari’ah e atravessar a senda da tariqah, o sol do Conhecimento Divino se acende em seu coração. O discípulo percebe as realidades divinas numa dimensão muito maior. Ele percebe que não existe outro poder além do poder de Deus no universo; alcança o estágio da compreensão de Deus no autoconhecimento e vê os sinais de Deus em toda parte.
4- Istighna'(contentamento): nesse estágio o viajante espiritual desvia sua atenção de todos, exceto para a Divina Essência.
5- Tawhid (Unicidade Divina): o viajante espiritual percebe a unidade da Divina Essência e o fogo dessa Unicidade queimando em seu coração.
6- Hayrah (confusão): nesse estágio o discípulo se vê mergulhado num estado de perplexidade diante da Majestade de Deus.
7- Faqr wa Fana’ (pobreza e extinção): nesse estágio a multiplicidade se transforma em unidade; como ondas que desaparecem no oceano do Ser. Não existem palavras que possam expressar o que seja esse estado.
Práticas Sufis
1- ‘Ibadah: As formas externas de adoração prescritas na shari’ah (as preces, o jejum, o zakat, etc), que são praticadas por todos os muçulmanos.
2- Riyadah (prática espiritual): o treinamento pessoal no qual se ensina o dhikr (recordação de Deus) verbal ou do coração, i.e. a recitação dos Nomes Divinos. Também inclui as reclusões (quarentenas), o cumprimento das jornadas prescritas ou o recolhimento por um período determinado com o intuito de realizar as ações voluntárias (recomendadas) de adoração.
3- Ritos e normas especiais, tais como as normas de obediência do Khanaqah (local de reunião dos praticantes) e as instruções do murshid (guia espiritual); todos os procedimentos que involvem os rituais de dança e música devocional.
Eventualmente surgem algumas diferenças entre os sufis e os demais grupos que observam a shari’ah, a respeito das normas e dos ritos religiosos, o que gera controvérsias. Várias obras foram escritas sobre esses pontos de divergência.
Haqiqah
A shari’ah é o reconhecimento da senda de Deus e a tariqah é o trilhar dessa senda por meio da purificação e da superação das etapas supramencionadas.
Haqiqah ou compreensão da verdade absoluta é a chegada ao último destino: a proximidade com Deus e a visão de Sua Autoridade. Para Al Lahij, Haqiqah é a manifestação da Essência Divina sem véus, que é alcançada após a extinção das névoas das distinções e das falsas pluralidades pela Emanação da Essência Divina.
Diz-se que o primeiro estágio da Haqiqah é shuhud (testemunho da Realidade Divina), e que seu último estágio é a própria finitude do “eu” em Deus (fana fi’Allah); o que é seguido da eternidade com Deus (baqa bi Allah). Da mesma maneira que as palavras de Deus são ilimitadas os estágios da realização da Haqiqah também o são.
Khwajah ‘Abd Allah Al Ansari disse: “Considere a Shariah como sendo o corpo; a Tariqah, o coração e a Haqiqah, a alma”. Ibn Sina afirmou: “O ‘arif ascende e observa o universo das santidades e faz uso de seu poder de imaginação (Khayal) para relatar o que é incompreensível e inacreditável para os homem comuns”. Ele acrescenta que as coisas perceptíveis pela “visão da certeza” não podem ser atingidas através do conhecimento demonstrativo. O murid e o ‘arif podem alcançar a comunhão com Deus por intermédiio de “kashf” e “shuhud” e serem abençoados com a visão beatífica.
Essa proximidade ou união com Deus não é possível por meio do uso do raciocínio. Khwajah Nasir Al Din Al Tusi em sua obra “Sharh Al Isharat”, ao abordar as diferenças entre o asceta, o devoto e o gnóstico, diz: “Um zahid (asceta), que não for um ‘arif, se assemelha a um artesão ou a um negociante que trava relações comerciais com sua comunidade. Um devoto, que não for um ‘arif se assemelha a um operário assalariado. Não obstante a diferenças entre as ações de um artesão e de um operário, ambos almejam uma recompensa, o que os torna similares. A ascese de um ‘arif tem o objetivo de estar permanentemente atento a Deus, distante de tudo o mais. Sua abstinência é um tipo de purificação da consciência, o que o impede de se ater a qualquer outra coisa. Em seu estado de atenção ou concentração ele não se importa com nada mais e encara (as coisas mundanas) com desprezo. O ‘arif busca o Absoluto e mais nada. Ele adora a Deus por considerar que Deus é digno de toda adoração. A adoração de um ‘arif não ocorre por medo nem por esperança (na recompensa de Deus). Ele não ama a Deus por causa do Paraíso, mas porque Deus é sua meta”.
O Imam Ali (as) disse: “Eu não adoro a Ti por medo do Inferno nem por almejar o Paraíso. Eu me prostro diante de Ti porque És o Único digno de ser adorado”.
Algumas Doutrinas do I’rfan
1- Tawhid (Unicidade Divina)
De acordo com os ‘urafa a multiplicidade não existe. Toda realidade é essencialmente única. As almas humanas, a despeito de sua multiplicidade, são na verdade “uma”. A multiplicidade é produto das categorias do tempo e do espaço, e se aplicam somente ao mundo material. No mundo do espírito não há nada exceto a unidade. Uma vez que a alma pertence ao “Mundo da Ordem” está além da multiplicidade. Diz o Alcorão Sagrado:
“Perguntam sobre o Espírito. Responde: O Espírito é (próvém da) Ordem de meu Senhor, e só vos foi concedida uma pequena parte do conhecimento”. (C.17 – V.85)
E ainda:
“Ele é aquele que vos criou de uma única alma”. (C.7 – V.189)
A unidade das almas é metaforicamente expressa como uma única luz que se reflete em espelhos de diferentes cores: “O mundo era uma galeria de vidros coloridos na qual caíram os raios da existência. Cada vidro, vermelho, azul ou amarelo refletiu a luz com sua própria cor”.
O mundo da existência é como uma onda ou uma bolha que é visível mas não é real, o mar é a única realidade.
A realidade do mundo da existência se assemelha aos raios do sol que se espalham por toda parte, porém a realidade está unicamente no sol. Mawlawi diz:
“Todos nós éramos simples e únicos como uma única pérola; não tínhamos corpo nem éramos distinguíveis. Éramos como pérolas do sol, sem complicações, claros e cristalinos como a água. Quando a luz pura desceu sobre nós e nos deu forma, foi multiplicada como as sombras de um baluarte; destrua o baluarte com uma catapulta, de modo que a diferença entre um e outro desapareça”.
Na terminologia dos ‘urafa (gnósticos) a realidade é “uma” e está manifesta em toda parte. Tudo é um sinal de Deus e a Lua Divina está refletida em todos os seres. O Alcorão Sagrado nos diz que o corpo humano foi criado do barro e o Espírito Divino foi soprado nele.
Tudo que é real é verdadeiro e tudo que é verdadeiro é eterno. Portanto a alma é uma centelha divina, eterna e nunca criada.
De acordo com os ‘urafa o mundo perceptível não possui uma existência externa, e se assemelha ao lado de dentro de um espelho. O universo é físico (matéria) e Deus é sua alma. A alma é una e única. A relação de Deus, o espírito e a alma individual é explicada de três maneiras:
1- A criação
2- A encarnação
3- A emanação
A teoria da criação é a de origem semita. A teoria da encarnação é explicada com referência à crença cristã de que Jesus seria o filho de Deus. A teoria da emanação tem origem na filosofia neoplatônica.
Todos os ‘urafa fizeram uso dessas três teorias para apresentar seus pontos de vista.
“Uma pérola oval, transbordou e transformou-se num oceano; produziu espuma e a espuma transformou-se na terra. Sua fumaça formou o céu. Embora a sua concha se afaste da praia e desapareça (nas águas) um mergulhador experiente pode procurá-la nas profundezas do oceano”.
Os sufis interpretam a emanação como um intenso desejo (do Divino) de revelar-se no processo de iluminação (tajalli). Assim, Jami o poeta, interpretou a tradição “eu era um tesouro escondido” como beleza eterna que deseja ser apreciada.
No que se refere a teoria da Emanação e a da Encarnação, afirma-se que o homem embora tenha sido criado foi feito à imagem de Deus.
As duas ideias se aproximam (num conceito) similar ao da água e do oceano. Mawlawi diz:
“Eu já existia quando não havia nome algum, tampouco havia sinal algum de qualquer coisa nomeada; o denominado e o nome se originaram em Nós. Uma vez que naquele dia não havia nem “Eu” nem “Nós”.”
A vontade do homem é a vontade de Deus, e tudo o que é existente ou não-existente é Deus. Deus está em toda parte; e a alegoria do Simurgh no “Mantiq At Tayr” como outras alegorias místicas na literatura sufi indicam o elemento do panteísmo na peculiar doutrina monoteísta do sufismo.
Deus é a luz dos céus e da terra. Ele é único e eterno; possui o conhecimento de todas as coisas e é onipresente. Ele permanecerá para sempre. O universo inteiro é testemunha de Sua existência, e Ele manifesta-se aos Seus servos mais próximos.
2- Retorno ao Amor Divino
Diz Mawlawi:
“Todo aquele que está separado de sua origem busca retornar a ela”.
E o Alcorão afirma:
“Na verdade, somos de Deus e a Ele retornaremos”. (C.2 – V.156)
O estado da alma separada de Deus é ponto pacífico na doutrina do ‘Irfan. Diz-se que, em algum momento, a alma esteve próxima, na presença de Deus, e então foi separada Dele. A alma agora lamenta a dor da separação e sente um grande desejo de retornar para sua origem.
Os gnósticos (‘urafa) creem que essa atração se deve a força do amor, que é um elemento diferente da razão, e tem como única meta a união com Deus.
Na opinião dos gnósticos a razão é um farol, um guia, enquanto o único caminho que conduz à realidade última é o amor. O amor, segundo eles, divide-se em dois gêneros:
1- O exotérico (visível), a atração pelo belo.
2- O esotérico e verdadeiro amor. Uma vez que todas as belezas são reflexos da beleza e da perfeição de Deus, uma pessoa pode alcançar esse amor verdadeiro por meio do amor aparente (visível).
A oposição entre amor e razão é um tema recorrente nas obras sufis.
Essas duas forças estão em conflito dentro do ser humano; um conflito similar àquele entre a Lei (Sahri’ah) e o amor que é discutido nos textos dos sufis.
O amor é um método de purificação interior através da disciplina espiritual. Após essa purificação o coração está pronto para receber a Luz de Deus. O Profeta (saas) disse: “Moldem a si mesmos de acordo com as normas divinas”, quando o coração se transforma num espelho que reflete a manifestação de Deus, a realidade é impressa nele e uma visão clara é obtida. Então, tudo o que devoto vê é Deus; nesse estágio a unidade e a perfeição reais são alcançadas.
3- Tawakkul
Uma das crenças básicas dos sufis é o tawakkul (confiança em Deus), que significa a aceitação da vontade de Deus em todos os assuntos. A ênfase na confiança, na submissão (a Deus) e a busca do agrado de Deus demonstra que essas características são fundamentos da gnose islâmica.
Os muçulmanos gnósticos consideram “Islam” como a aceitação da vontade divina e da predestinação. Creem que o destino de todo homem já está decretado. (Por conseguinte, alguns sufis adotam a reclusão e o retiro espiritual).
Entretanto, há aqueles que creem que o trabalho e o esforço são meios pelos quais Deus nos tornou aptos a alcançar nossos objetivos, como demonstra o ayat alcorânico:
“Não receberá o homem senão o resultado de seu esforço” (C.53 – V.39)
Alguém disse a Sari Al SAqati que uma pessoa que estava nas montanhas havia lhe enviado a saudação. Sari respondeu: “Já que ele vive nas montanhas, não tem nada para fazer. Um homem deve ir ao comércio, manter-se ocupado e lá não esquecer de Deus nem por um momento!”
Mawlawi defende o exercício livre da vontade humana e, a despeito de reconhecer o princípio de tawakkul (confiança em Deus) considera o trabalho um esforço essencial para a vida.
Ele disse: “Sim, se a resignação é teu guia, isso se deve também pela tradição do Profeta: “Tem confiança; e também amarra o teu camelo”. Dê ouvidos para o segredo de que “aquele que trabalha é amigo de Deus”. Resignação não significa ser negligente quanto aos meios de sustento.
Deus misturou o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, de modo a que o homem se tornasse capaz de produzir em si mesmo uma pedra de toque (da fé), recorrendo à tolerância e à resignação. Esse homem há de aceitar todo tipo de males e adversidades, mas sempre descobrirá beleza em todas as coisas.