Necessárias Considerações Sobre o Conflito

Por: Ahmed Ismail

Introdução

O presente artigo resume as principais considerações do autor sobre os atentados de 11 de setembro e a subseqüente agressão americana ao Afeganistão.

As Raízes do Conflito

Os atentados a Nova York e Washington foram interpretados pela mídia ocidental como o fator desencadeante de uma “guerra”. A dimensão sem precedentes e principalmente o fato de que pela primeira vez os EUA tenham sofrido em seu território uma agressão externa, contribuíram para que a opinião pública mundial fosse levada a crer que estava diante de um acontecimento histórico e dramático que denunciava uma “guerra declarada”. De modo algum esses atentados significaram um “fator desencadeante de conflito”.

Na realidade, o conflito por assim dizer, tem sua origem no final da primeira guerra mundial quando as potências ocidentais na sua trama geopolítica com a derrocada do império turco exerceram seu poder militar e político para submeter o mundo árabe a seus interesses. A posterior criação do Estado de Israel, decisão imposta a força a todos os povos árabes e islâmicos, decisão esta que marcou o início do drama do povo palestino produziu a forte oposição árabe-islâmica as potências ocidentais e muito especialmente aos Estados Unidos da América. Desde que essa nação representa o maior aliado em todos os sentidos ao Estado Sionista e que jamais recuou em seu apoio irrestrito a toda e qualquer ação de Israel, é natural que tenha se tornado o alvo por excelência do radicalismo islâmico.

Portanto, isolar os atentados de 11 de setembro de seu contexto histórico e apresentá-los como ações de bárbaros é uma atitude cínica. Equivale dizer que “os interesses das potências ocidentais são mais importantes do que os direitos dos demais povos e que a estes, não resta outra alternativa senão se submeter e suportar as desastrosas conseqüências do que lhes é imposto”. O ódio e a frustração alimentada por décadas produziu os fatores que concorreram para os acontecimentos em Nova York e Washington.

As decisões e a política americana são responsáveis de muitas maneiras, primeiro, pelas terríveis condições perpetuadas sobre as nações pobres do mundo e segundo pela criação de uma cultura de ódio ao ocidente e a tudo o que o represente em diversos países islâmicos. As vidas inocentes ceifadas no World Trade Center não são as únicas vítimas. Não obstante a mídia ocidental ignore, as 35.000 crianças que morrem diariamente de inanição no mundo, as 250.000 que morreram no Iraque desde que o Embargo foi decretado punindo o povo iraquiano e poupando Saddam Hussein e seu regime, as centenas de milhares de palestinos expulsos de suas casas e de seu país, mortos e desaparecidos e todas as vítimas pelo mundo de todas as decisões políticas das potências ocidentais (tais como o apoio americano a ditaduras sanguinárias na América Latina) são vítimas de um processo criminoso do qual os atentados são conseqüências não a origem.

O Combate ao terror e a Agressão Americana

O direito natural de uma nação ou de um povo reagir a um atentado não é questionável. É importante frisar que não importando as razões os atentados de 11 de setembro vitimaram civis inocentes (de várias nacionalidades) que não estavam invadindo territórios e que não tinham qualquer responsabilidade pelas ações do governo americano; eu como muçulmano me oponho a toda forma de injustiça (inclusive a esta) e não posso concordar com quem quer que seja que argumente que “desde que as potências ocidentais massacram civis os seus próprios civis seriam alvos lícitos” este argumento não tem lugar no Islam.

Entretanto o direito de reação foi usado pelo Governo Americano para impor suas próprias decisões a toda comunidade internacional e ele o fez numa mostra evidente do seu poderio econômico e militar, parece que esse “direito de passar por cima das leis internacionais” é uma prerrogativa exclusiva das nações ricas.

Quando o Sudão foi injustamente bombardeado pelos EUA sob a “suspeita de possuir instalações com armas químicas,” suspeita que foi provada ser falsa pela própria ONU, nenhum tipo de retratação ou indenização foi sequer cogitada àquela nação e às vítimas daquela ação criminosa de um Estado contra outro. Assim, o chamado de Bush a uma retaliação desprezou toda e qualquer alternativa legal da comunidade internacional para conduzir investigações, identificar os responsáveis e puni-los.

Os EUA seqüestraram o direito internacional, confiando em sua influência e tomados de absoluta arrogância dividiram o mundo entre os que estavam com eles e os que não estavam, ameaçando estes últimos de se tornarem alvos de sua retaliação. A decisão pela guerra foi instantânea e naquela altura nem se sabia contra quem. Baseados em suposições e indícios por vários dias o nome de Bin Ladin foi apresentado a opinião pública mundial como o “responsável principal dos atentados” após um período um tanto incômodo de ausência e provas o Pentágono reuniu suas “provas” as quais curiosamente jamais foram apresentadas aos principais interessados: O governo Afegão e mesmo a opinião pública e aos próprios aliados dos EUA.

Sob o ponto de vista moral esta agressão que produziu a morte de um número ainda impreciso de cidadãos afegãos (tão inocentes quanto as vítimas dos atentados) reduz o Estado Americano e as forças que a ele se aliaram a mesma condição dos terroristas, ou seja, são tão criminosos quanto eles.

A omissão da ONU diante da questão também a coloca nesta condição execrável que demonstra a necessidade urgente de uma reavaliação do direito internacional, do contrário devemos concluir que a ordem política do globo não pode garantir segurança a nenhuma nação que não faça parte do grupo seleto das potências econômicas e militares do ocidente. Após uma demonstração de absoluta fraqueza a ONU aderiu a uma submissão covarde de concordância a toda decisão da Casa Branca.

Os muçulmanos do mundo devem ter absoluta certeza que o chamado de Bush ao combate ao terror faz parte de um plano que tem objetivos muito mais amplos, em defesa dos interesses norte-americanos e israelenses. O chamado de combate ao terror não atingirá nenhuma organização terrorista não-islâmica como as muitas existentes no próprio território americano.

Bin Ladin, herói ou vilão?

O saudita Osama Bin Ladin não é nem herói e tampouco o vilão na proporção que o ocidente o elegeu. Se por um lado ele não representa o Islam (não pode chamar para si o direito de liderança dos muçulmanos do mundo), foi sem dúvida a reação criminosa e arrogante dos EUA que fizeram com que muitos muçulmanos o identificassem como um paladino do século XXI.

Seus pronunciamentos são validados na medida em que o Ocidente se mostra incapaz de uma auto-crítica e de um re-direcionamento de sua atitude em relação ao resto do mundo.

Um intelectual do peso de Samuel Huntington, uma das poucas mentes lúcidas sobre a questão, aponta a necessidade dos EUA se distanciarem de Israel e que mostrem iniciativas concretas de combate ao terror dentro de seu próprio país, sob pena de se não o fizerem se tornará inevitável que a médio prazo haja um fortalecimento do fundamentalismo islâmico como conseqüência.

A verdadeira ameaça para a paz no ocidente não é o ideário fundamentalista, mas a perpetuação dos erros que de algum modo justifiquem o radicalismo islâmico. Outra questão ainda em aberto quanto a Bin Ladin é até que ponto é possível resolver o problema eliminando-o. Sendo ou não culpado dos atentados de 11 de setembro, Bin Ladin jamais negou ter um objetivo claro de Guerra aos Estados Unidos (tal como os atentados anteriores às embaixadas demonstraram). É natural que para o povo americano ele represente o Mal tanto quanto os Estados Unidos representam o Mal para uma boa parte dos muçulmanos do mundo. Não vem ao caso julgar razões. O que é bastante evidente para mim é que os EUA não estão sendo vítimas de uma ameaça injusta e irracional.

Se não aceito como correta a imagem de “herói” a Bin Ladin também não aceito a imagem que o coloca como um demônio. A meu ver a figura de Bush não carrega nenhuma superioridade moral sobre o seu inimigo número um. A mesma indiferença que Bin Ladin demonstra pelas vidas dos ocidentais foi demonstrada por Bush pelas vidas dos civis afegãos, o que os iguala em crueldade. A única diferença entre os dois é que Bin Ladin é sincero em sua agressão e o seu ódio enquanto Bush atira pacotes de comida junto com suas bombas e estende sua pata imunda para saudar os muçulmanos na esperança de conseguir seu apoio para destruir a outros muçulmanos.

O Regime Taliban

O regime Taliban é indefensável sob todos os aspectos. Toda a minha objeção e repulsa a ação americana diz respeito às vidas do povo afegão que estão sendo cobradas como preço da retaliação aos atentados. É a arrogância e o desprezo aos demais povos que os EUA estão a demonstrar que me é inaceitável. Se não fosse um povo pobre do terceiro mundo jamais o bombardeio seria a medida adotada para combater a rede terrorista.

É inimaginável que se por acaso, estivessem em guerra aberta contra o IRA ou o ETA bombardeassem as cidades da Espanha ou da Irlanda. Quanto ao regime Taliban, caracterizado pela opressão e a brutalidade exercida contra o povo afegão trata-se de uma ameaça não só ao ocidente, mas também ao próprio mundo islâmico. O seu plano é estender o seu domínio aos demais países islâmicos. Paradoxalmente, ao invés de enfraquecê-los, o ocidente está a concorrer com seu fortalecimento a médio prazo. A agressão americana funcionará como uma propaganda muito mais eficiente a favor das idéias e dos objetivos do Taliban do que a propaganda que põem em prática em suas escolas.

Se eu repudio todos os aspectos da interpretação e da prática do regime Taliban, repudio igualmente as intenções e as intromissões do ocidente naquele país. O fato dos excessos e da opressão não invalida a obrigação dos muçulmanos de organizarem sua sociedade segundo os princípios do Alcorão, e não devem incorrer no erro de adotar os costumes pagãos e as leis irreligiosas do ocidente.

Não deve o povo afegão permitir que os americanos e europeus lhes digam como viver e pensar, devem expulsar de lá os missionários cristãos ou puni-los exemplarmente. Entre a selvageria travestida de religião do Taliban e a impureza travestida de avanço e liberdade, está o Islam e oro para que o povo afegão escolha o melhor.

O Impasse da Guerra Étnica

A guerra entre etnias que já estava em curso por décadas no Afeganistão terminou por ser um importante fator estratégico para a agressão americana e eu deploro o fato de que uma nação muçulmana se encontre em tão lamentável estágio de ignorância face ao verdadeiro espírito do Islam. Nem a visão dos grupos tribais e muito menos a visão estapafúrdia dos Mullahs fundamentalistas não são dignas do Islam e de sua grandeza.

De qualquer modo, é o direito do próprio povo afegão encontrar saídas para esse impasse. Infelizmente, como a comunidade das nações islâmicas permanece atrelada a interesses outros que não o bem estar dos povos muçulmanos mais uma vez veremos as potências ocidentais exercendo um papel que não lhes cabe.

É evidente que a liga do norte que congrega as minorias étnicas tem a intenção de reorganizar o país sobre bases islâmicas e mais humanas muito embora careça completamente de sustentação política e de recursos econômicos para que o faça sem o apoio da comunidade internacional.
O único aspecto positivo disso tudo é que sem sombra de dúvida é digno de fé o espírito e a coragem do povo afegão. A despeito do conflito entre as etnias há um inegável caráter islâmico imprimido no povo e isso há de permanecer diante de tudo que possa suceder aquele país daqui para a frente.

O que podemos esperar?

Depende muito mais do ocidente do que do mundo islâmico que esse conflito não se agigante e se torne uma guerra global. Os primeiros passos não foram nada animadores. Não sabemos ainda se a reação americana resumida no uso da força desencadeará uma onda ainda maior de violência. Até agora os EUA parecem confiantes de que “venceram”, confiantes de que conseguiram “estrangular” os canais da rede internacional de grupos como a Al Qaidah. Esta é uma perspectiva muito pretensiosa. Armas não podem garantir a paz e nem construir democracias. E obviamente, este não é o campo real deste conflito.

Uma honesta revisão de suas posições políticas em relação a Israel e um esforço real em propor modelos econômicos que não sejam excludentes e injustos para com as nações pobres, são as alternativas que se apresentam aos EUA e as demais potências ocidentais para que este conflito não se transforme numa escalada crescente de violência.

Alguns analistas e líderes ocidentais protestaram contra a autenticidade da reivindicação de Bin Ladin com respeito a Palestina. Argumentaram (com razão) que o mundo árabe há muito abandonou os palestinos a sua própria sorte. Esse fato não tira o direito de Bin Ladin e de qualquer muçulmano na face da terra de invocar a causa palestina. O que tem que ter um fim é o apoio e a parcialidade americana em relação a Israel, não apenas os 2 bilhões de dólares anuais oferecidos ao estado sionista mas principalmente o jogo de dois pesos e duas medidas no qual se pautam todas as conclamações para acordos de paz. Todos os dias vemos os discursos floreados com pura simulação e demagogia dos porta-vozes da Casa Branca em que se “solicita” a Sharon para que cesse sua política hostil de tomada de territórios palestinos e de ampliação de assentamentos, enquanto este simplesmente ignora e continua a fazer o que quer, quando e como quer. Ou os EUA e a ONU param de tratar Israel como um estado acima da lei ou terão que conviver com o ódio e o radicalismo islâmico.

Pessoalmente não acredito que nada de positivo com respeito a paz poderá ser alcançado enquanto Sharon detiver o poder e o exercer protegido pela passividade e a cumplicidade da Casa Branca. Devemos lembrar que Ele (Sharon) é o responsável imediato pela atual onda de violência na Palestina. Seu passeio na Esplanada das Mesquitas foi um plano calculado para destruir toda possibilidade de paz na região.

Vargas Llosa em um recente artigo afirma: “Até nos EUA, o aliado mais fiel dos israelenses, multiplicam-se as vozes reclamando das autoridades uma política menos tendenciosa, mais neutra, no Oriente Médio… Porque o apoio sistemático e sem críticas de Washington a um governo extremista e intolerante como o chefiado por Sharon atiça o anti-americanismo, e não só nos países islâmicos”.

A permanecer o atual quadro em que a política do terrorismo de estado de Israel que inclui assassinatos seletivos, invasões periódicas de aldeias, a destruição de casas e propriedades de vizinhos inocentes em represália pelos atentados e o desprezo a qualquer comedimento, a paz não apenas na região como o conflito atual demonstra não será possível.

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