Por: Ahmed Ismail
Introdução
De um modo geral, o cristão leigo conhece muito pouco sobre a história dos primeiros tempos do cristianismo e das origens dos textos e dogmas cristãos. O seu conhecimento se limita àquilo que o clero oficial da igreja e as cúpulas de liderança das muitas seitas atestam como verdadeiro. De tal modo, é nebulosa a história desses primeiros tempos, envolta nas muitas disputas teológicas que, remontá-la em detalhes é uma tarefa quase impossível. Contudo, as informações e os dados históricos aqui apresentados estão acessíveis a qualquer pesquisador. Encontram-se em diversos documentos e livros de pesquisadores imparciais e mesmo de teólogos cristãos. Não obstante tenham sido estabelecidas polêmicas sobre os diversos fatos históricos que deram origem aos dogmas, nenhum dos defensores das posições da Igreja Romana jamais negaram esses mesmos fatos. E é a partir deste ponto pacífico que iniciamos esta análise tentando lançar luz sobre os fundamentos dos dogmas aceitos pela cristandade e permitir ao leitor a reflexão sobre a validade dos mesmos.
Capítulo 1 – Da Origem dos Textos Canônicos
É crença aceita pela cristandade a origem divina (por inspiração ou revelação) de todos os livros que compõem o atual cânon bíblico (69 livros para os católicos, 66 para os protestantes). A compilação definitiva da bíblia tal como hoje a conhecemos foi realizada no século IV após o concílio de Cartago (397 d.c.), após diversas alterações no decorrer de 3 séculos. Livros que nas primeiras compilações não constavam, foram incluídos e livros como o Evangelho de Tomás foram por fim retirados, inclusive alguns livros antes aceitos pelo clero como de origem divina, foram depois perseguidos e incluídos no Index de obras proibidas. É conveniente que façamos algumas considerações:
1. Existindo centenas de textos e havendo pois, uma seleção dos textos feita por homens (clérigos), adotou-se certos critérios para realizá-la, logo não seria necessário apenas a origem divina dos textos, mas também a inspiração divina por parte dos selecionadores, de outro modo como poderiam definir o que era e o que não era de origem autenticamente divina?
2. Aceita a hipótese de inspiração divina dos compiladores, surge uma outra questão: Porque a seqüência de mudanças, a inclusão e a exclusão constante de textos por 3 séculos? Que espécie de “inspiração divina” poderia gerar tanta indecisão e equívoco? Acrescente-se a isso que os presbíteros desse período deixaram uma série de cartas e livros onde demonstram freqüente discordância entre si sobre quais seriam os livros inspirados e os que não o eram. Alguns bispos como Marcion foram excomungados e martirizados por aceitar livros não aceitos pela Igreja, e rejeitar obras já contidas no Cânon. Reportemos a história para buscar respostas para essas e outras questões:
O período em que a compilação bíblica se realizou sucedeu a oficialização da Igreja pelo Estado Romano. Longe de uma unidade, desde os primeiros tempos as comunidades cristãs se dividiram em diversas posições teológicas conflitantes. A igreja liderada por Paulo era mais uma, que com o decorrer do tempo conseguiu suplantar as demais, graças a aliança com o império.
Iniciou-se um período de cruel perseguição aos bispos e igrejas que se opunham às inovações que se firmavam com essa aliança. Para o império Romano o cristianismo na medida que se expandia surgia como um fator de unidade, e por isso mesmo a oficialização da Igreja de Roma poderia suprimir os conflitos e as revoltas populares que se verificavam especialmente no norte da África. Muito embora a Igreja Romana reivindicasse para si o título de Igreja de Cristo, legatária do apostolado de Pedro e de Paulo, várias outras igrejas também tinham sido originadas de apóstolos de Jesus e de seus discípulos contemporâneos. A igreja de Paulo não foi, portanto, a primeira, e jamais foi unanimidade entre os primeiros cristãos.
O primeiro século assistiu a duras disputas entre diversas igrejas que discordavam sobre diversas questões sobre Jesus, sua natureza, sua doutrina, os acontecimentos de sua vida, etc. A maior oposição a Paulo até o ano 70 d.c. foi a igreja formada por judeus cristianizados (que haviam aceito a Jesus) reunida em torno de sua família; Simão Cleofas, primo de Jesus, a liderou e esta igreja foi majoritária até a intervenção militar de Roma em Jerusalém no ano 70.
A razão maior das disputas se originou do fato de não haver nenhum texto do período imediato dos acontecimentos (ou que fosse reconhecido por todos como tal). Todos se baseavam apenas em relatos orais que na maioria das vezes demonstravam pontos discordantes (ainda que concordassem em linhas gerais).
Os quatro evangelhos canônicos só começaram a ser escritos por volta do ano 60 e só foram definitivamente reconhecidos e incluídos no cânon no ano de 170. Mesmo a crença difundida que tenham sido escritos pelo próprio punho ou na presença das pessoas a quem são atribuídos não é aceita nem pelos estudiosos cristãos. É mais plausível que seguidores dos apóstolos tenham recolhido relatos de episódios e dizeres e tenham mais tarde redigido os textos, seja como for, isto só foi realizado muito tempo depois dos acontecimentos.
As epístolas de Paulo (que surgiram antes dos 4 evangelhos) discorrem sobre algumas das divergências correntes na época, as quais se acentuaram nos séculos seguintes, até que a Igreja Romana se apossasse dos textos discordantes e os destruísse (calcula-se cerca de 300 livros proscritos). Ainda assim, alguns desses textos apócrifos chegaram até nossos dias, como o polêmico Evangelho de Barnabé que apresenta os fatos e a doutrina de Jesus de modo diverso do apresentado nos evangelhos aceitos no cânon oficial.
De fato, entre os primeiros presbíteros, Clemente e Policarpo citam em seus escritos dizeres de Jesus numa forma diferente daquelas encontradas nos 4 evangelhos. Em suas epístolas, Policarpo censura com veemência “os homens que distorcem os dizeres de Jesus em prol de sua própria cupidez” o que denota que as contradições nas tradições orais haviam se tornado comuns.
Hoje, após cuidadosas pesquisas históricas levadas a cabo por pesquisadores imparciais e alguns de confissão cristã concluiu-se que grande parte (cerca de 60%) dos dizeres atribuídos a Jesus nos evangelhos canônicos não podem ser considerados como “palavra textual” do Messias e alguns desses dizeres foram considerados como inserções flagrantes. Do mesmo modo, esses evangelhos não são considerados do ponto de vista histórico como documentos confiáveis. Com freqüência encontram-se referências a um livro anterior a estes evangelhos. Alguns estudiosos lançam a hipótese que tenha existido um evangelho denominado “Q” o qual teria servido de base para a composição dos 3 evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas).
Clemente de Alexandria, no final do século II, reconhecia como autênticos uma epístola de Barnabé e um Apocalipse de Pedro, infelizmente estes textos estão entre os proscritos e destruídos pela Igreja. À medida que a Igreja de Roma se fortalecia politicamente, os seus líderes foram moldando o seu parecer teológico e com isso selecionando o que atestava suas crenças e destruindo e perseguindo o que as contradizia.
Capítulo 2 – Os 4 Evangelhos, um Exame Objetivo e Revelador
Como já dissemos, estes 4 evangelhos surgiram a partir do ano 60 d.c.. Ao que parece, haviam escritos esparsos que foram tomados por base. Entretanto, já as primeiras cópias foram redigidas em grego; o que por si só se constitui num motivo de objeção: se houvesse qualquer documento redigido por algum apóstolo, somente poderia estar escrito em hebraico. Porém, nenhuma cópia destes textos escrita em hebraico existe no mundo e mesmo a igreja jamais reivindicou a posse de tal documento.
Os mais antigos manuscritos ou fragmentos existentes estão escritos em grego. Isto demonstra inclusive, que estes manuscritos são do período em que o império romano já havia se dividido, por volta de 100 ou 200 anos depois de Jesus (no tempo de Jesus, a língua oficial do império era o latim não o grego).
O códex Sinaiticus que se encontra no museu britânico, um dos primeiros e mais completos desses manuscritos gregos, data do século II. A mais antiga cópia dos 4 evangelhos em poder do Vaticano está em pergaminho escrito em grego datado do século IV e mesmo a fidelidade desta cópia é sempre posta em dúvida por teólogos da própria igreja.
O Evangelho de Mateus
Sobre este texto consta a seguinte observação incluída na introdução à 42º edição bíblica do Padre Matos Soares: “O texto original não chegou até nós pois perdeu-se talvez nas agitações e destruições da guerra de 70 d.c., porém desde os primeiros anos seguintes, fez-se a redação ou melhor a versão grega do texto sem contudo podermos saber qual o autor…”
Se um padre, um tradutor oficial, afirma que a igreja não sabe quem foi o autor, como afirmar que o texto seja de Mateus? Esta versão grega surgiu em Antioquia, o autor (desconhecido) provavelmente fez uso do documento Q e do Urmarcus (já perdidos). Decerto que se Mateus escreveu algo o fez em hebraico, e não há como provar a fidelidade desta versão em grego.
O Evangelho de Marcos
Marcos não foi discípulo de Jesus, ele era criança quando este estava a pregar aos judeus. Primo de Barnabé, é provável que Marcos tenha tomado por base os relatos deste e de Pedro para compor seu texto muito depois dos acontecimentos.
O documento denominado Urmarcus data de meados de 65 d.c. e é aceitável que o texto atribuído a Marcos tenha sido composto a partir deste. Todavia as cópias mais antigas contém 15 capítulos e não 16 como nas bíblias atuais. A inserção de um capítulo nunca foi muito bem explicada pelos teólogos de Roma.
O Evangelho de Lucas
Lucas jamais conheceu a Jesus, ele era médico e amigo de Paulo. O texto foi escrito em algum lugar da Grécia em torno de 80 d.c.. Em vista das relações pessoais de Lucas com Paulo o texto reflete um alinhamento com o ponto de vista de seu mentor, sua composição tomou por base pelo menos 3 documentos perdidos. Trata-se de uma apologia dirigida aos gentios, o que é evidente pela linguagem simples utilizada.
O Evangelho de João
O mais polêmico dos evangelhos canônicos, é em essência e forma diferente dos evangelhos sinóticos anteriores.
C.J. Caudoux escreve: “Os discursos neste evangelho são tão diferentes dos demais e tão parecidos aos comentários do próprio autor, que nenhum deles pode igualmente ser confiável como registro do que Jesus teria dito…”
Porém, a maior dúvida e razão para debate entre estudiosos imparciais e mesmo teólogos da Igreja é sobre a autoria do texto. É de forma unânime aceito que tenha sido escrito entre 110 e 115 d.c. em Éfeso e aí surge a objeção. Nenhum estudioso sério considera-o como obra de João, discípulo de Jesus, filho de Zebedeu, pois este, segundo as pesquisas históricas de diversas fontes foi martirizado por decapitação em 44 d.c. pelo Rei Agripa I, muito antes deste evangelho ser escrito por um outro João, um presbítero.
A Igreja reconhece a existência deste presbítero homônimo ao apóstolo, mas insiste que o citado evangelho tenha sido de autoria de João, filho de Zebedeu, embora mesmo alguns teólogos cristãos contestem tal autoria. O que poderia explicar a disparidade de linguagem e de conceitos presente neste evangelho em relação aos demais talvez seria o fato de ter sido escrito muito mais tarde.
A influência da filosofia grega é evidente nele, especialmente na abordagem da natureza de Jesus (divinizando-o) o que não é afirmado em nenhum dos outros evangelhos. De fato, alguns conceitos teológicos afirmados nesse evangelho, são inimagináveis para o mundo judaico em que Jesus viveu, flagrantes adaptações da filosofia grega (como o conceito da pré-existência de Jesus).
Estes 4 evangelhos foram compostos depois que os primeiros cristãos se dividiram em diferentes correntes de doutrina, afirmar categoricamente que seus autores tenham sido os mesmos a quem são atribuídos só é possível no caso de Lucas e com alguma probabilidade no de Marcos.
Surge outra questão: a quem e por que foram escritos?
A igreja de Roma que entitulou-os de “testamentos” pretendeu com isso identificar estes textos como uma mensagem católica (universal). Entretanto, seja quem tenham sido os autores, pareciam ter diferente propósito, principalmente porque é sabido que os primeiros cristãos acreditavam na proximidade eminente do fim dos tempos o que explica o fato que o texto atribuído a Mateus e o atribuído a Marcos possuírem uma linguagem mais próxima dos judeus enquanto os demais focam seu discurso nos gentios. De modo que, podemos aceitar que foram redigidos segundo as necessidades do momento e refletiam o caráter de coletânea de passagens e dizeres.
De maneira nenhuma podemos aceitar a hipótese de que os autores tenham escrito com o intuito de legar uma mensagem aos povos e gerações futuras quando, é plenamente sabido que os cristãos do primeiro século tinham a convicção que “o fim estava próximo” e o identificavam com a “iminente queda do império romano”.
Tampouco seus autores pretendiam “redigir a palavra textual de Deus”, mas sim relatar acontecimentos e ensinamentos recolhidos da tradição oral, relatos que corroboravam certas posições teológicas de uma ou outra facção, sob o ponto de vista humano dos autores.
O reverendo T.J. Tucker comenta sobre os manuscritos e textos deste período: “Não existia escrúpulo em alterar ou fazer acréscimos ou em omitir aquilo que não servisse aos propósitos de quem escrevia”. Se um teólogo cristão assim declara, não há nenhuma evidência racional para que se diga que os 4 Evangelhos são a palavra pura, inspirada e verídica sobre Jesus e os acontecimentos de sua vida.
Acrescente-se a isso, o fato de que como estes textos não eram reconhecidos como sagrados até o segundo século, os copistas não teriam o porquê de não alterá-los segundo os propósitos do momento. Existem consideráveis divergências entre os manuscritos mais antigos ainda existentes (CODEX SINAITICUS, CODEX VATICANUS E CODEX ALEXANDRINUS), remanescentes de uma infinidade de versões copiadas em grego, versões que devido à imprecisão levariam a Igreja a convocar concílios para resolver a questão.
As Epístolas, As Igrejas
Não obstante não haja nenhuma objeção quanto à autoria destas epístolas, o que se coloca como uma dúvida é até que ponto podemos considerá-las como escrituras inspiradas.
Ao analisarmos o teor delas percebemos uma profunda ruptura com a herança religiosa dos profetas, seu pertinaz afastamento, ou melhor, a apresentação da figura de Jesus e de sua missão não como o próprio Jesus se deu a conhecer, mas sim, segundo a interpretação pessoal de Paulo, o qual se auto-anuncia como portador da “Inspiração divina”. Contudo, muitos dos pontos da doutrina apresentada nela não encontram similaridade nos evangelhos e nem nas palavras de Jesus.
Um outro ponto a se chamar a atenção é que embora o autor exponha com veemência suas afirmações e reivindique inspiração divina no que escreve, em algumas passagens ele “sugere” ensinamentos. Ora, nas escrituras divinamente reveladas em que Deus fala aos profetas, diretamente ou por meio de seu Anjo, não há “sugestões”, mas sim “ordens”, porque Deus não acha, Deus tem certeza. Quando Paulo expõe, por exemplo, sua opinião sobre o casamento e o celibato deixando clara sua opção pessoal pelo segundo ele está honestamente dando o seu parecer, o parecer de um homem não uma ordem ou inspiração divina.
Na verdade, é preciso compreender que a razão dessas epístolas era aconselhar as igrejas, detalhar princípios de organização e expor os argumentos do autor a favor de sua doutrina. Essas epístolas só foram consideradas inspiradas pelos seguidores de Paulo e mais tarde pelas igrejas que seguiram esta diretriz doutrinária.
O Velho Testamento
A compilação da Igreja engloba o Pentateuco, os Salmos, alguns dos livros aceitos como divinos pelos judeus e alguns que não eram reconhecidos por eles. É pertinente dizer que os originais dos livros mais antigos da lei foram perdidos e reescritos por Ezra. De maneira similar ao que ocorreu aos evangelhos canônicos, os mais antigos documentos se perderam inteiramente. Os pesquisadores aceitam que os textos hoje existentes foram compostos com base em cópias antigas cuja fidelidade não pode ser comprovada.
A existência de pelo menos 4 versões e a constante prática dos rabinos de incluir ou omitir palavras no texto (prática denunciada por Jesus) não nos permite afirmar que não tenha havido nenhuma intromissão humana nos textos. Um exemplo dessa impossibilidade pode ser verificado em um desses textos adotados como fonte para as cópias: O chamado “pentateuco samaritano” apresenta 6000 variantes no texto, 2000 delas são variantes do sentido do texto.
Ao tratar-se das possíveis adulterações, pelo menos duas são flagrantes: com a intenção de afirmar a crença da exclusividade da herança abraâmica ao povo judeu a versão de Gênesis carrega a contradição que embora afirme que Ismael foi o primogênito de Abraão mais a frente afirma que Abraão tinha um único filho, Isaac. Pretendiam os copistas com isso negar aos descendentes de Ismael qualquer direito à promessa feita a Abraão. O texto omite o fato de que o sacrifício pedido a Abraão aconteceu antes do nascimento de Isaac, portanto a criança levada para o sacrifício foi Ismael (o próprio texto afirma que quando a primeira aliança foi estabelecida e a ordem da circuncisão foi dada, o único filho de Abrão era Ismael, o qual foi circuncidado).
Uma segunda adulteração foi a infâmia lançada sobre o profeta Lot, em que os autores acusam-no de ter deitado com suas próprias filhas (depois de ser salvo da destruição de Sodoma). Um sério pesquisador e teólogo católico explicou que esta caluniosa acusação aconteceu em razão de que dois dos povos inimigos de Israel descenderam dessas filhas de Lot, de maneira que os judeus para ridiculariza-los propagaram esta mentira sobre Lot (o qual foi um profeta e um justo e se assim não fosse não teria sido salvo de Sodoma).
De fato, pretende-se aos livros do chamado antigo testamento uma posição de “escritura divina” e no entanto, as próprias origens e a história de sucessivas perdas e assimilações operadas na trajetória do povo judeu, demonstram que há pouquíssima chance para que esses textos representem realmente algo que tenha sido legado aos profetas de Israel.
Estudiosos sérios e imparciais do mundo inteiro têm apontado para a intervenção flagrante dos copistas de diversas épocas presente nesses textos. É sintomática a posição da igreja de Roma, que pouco a pouco, diminui sua ênfase em relação ao compêndio do velho testamento, considerando-o mais de valor histórico, para a compreensão do cristianismo, do que palavra textual de Deus.
De fato, a posição de “escrituras inspiradas”, encontra muita dificuldade para se sustentar quando as muitas contradições presentes são conhecidas. Tais como a citação no Livro do Êxodo que, por quarenta anos os judeus praticaram sacrifícios no deserto, enquanto segundo o Livro de Amós e o de Jeremias, não se praticou sacrifício algum.
Mesmo como documentos históricos, os livros reunidos no velho testamento pouco podem ser considerados. Sua imprecisão referente a datas e acontecimentos não auxiliam os pesquisadores há determinar com exatidão a veracidade de muitos dos fatos ali relatados.
As Escrituras atuais são as Escrituras Antigas?
Mesmo antes de abordarmos o problema das traduções, surge a falaciosa crença que tenta confundir duas realidades históricas bastante diferentes. Os prosélitos cristãos, católicos ou protestantes, com freqüência apóiam seus argumentos num sofisma que apresenta as atuais traduções bíblicas como sendo as mesmas escrituras as quais Jesus e os apóstolos se referiam, ludibriando assim as pessoas desinformadas ou pouco atentas. Ora, como já vimos, a compilação final do atual cânone bíblico foi realizada no século IV, portanto qualquer tentativa de ligar as palavras de Jesus, dos apóstolos ou dos profetas antigos a estes textos atuais como “escrituras sagradas” é uma fraude.
Quando se diz que Paulo pregava examinando as escrituras (Atos: 13:10,11) ou que Jesus tenha dito: “Está escrito” (Mateus4:4,7) Lucas ( 24:27) deve-se entender que se referiam à “Torá Hebraica” e não a uma “Bíblia” que só surgiria séculos depois deles. Ou seja, Jesus não poderia atestar como escritura divina ou inspirada textos que nem sequer ainda existiam. Quando, pois, Jesus afirmava “este evangelho” não poderia estar se referindo senão a “Boa Nova”, jamais a estes textos que chegaram a nós.
Assim, de modo capcioso os prosélitos cristãos usam tais afirmações de Jesus e de Paulo para creditar a todos os livros da Bíblia moderna a posição de “escritura divina”.
Capítulo 3 – A Delicada Questão das Traduções e das Cópias
A complexidade dos idiomas utilizados nos textos constituiu um problema decisivo para a perpetuação da fidelidade dos mesmos. Consideremos que a tradução de um idioma de um tronco lingüístico para outro de um tronco lingüístico diverso é uma missão dificílima, mesmo para alguém que domine a ambos, na verdade uma tradução neste caso é sempre uma adaptação.
Os primeiros copistas da Igreja possuíam as versões gregas dos livros atribuídos aos apóstolos e diversos manuscritos em hebraico e aramaico dos livros dos judeus. Não se pode precisar em que grau havia concordância entre as cópias do século II (praticamente nada dessa época permaneceu).
Com a adoção no século V do latim como língua canônica da igreja, São Jerônimo recebeu a missão de transladar o cânon oficial. Surgiu então a Vulgata Latina, a qual a igreja pretendia manter como fonte para as futuras traduções. Contudo, tanto as cópias anteriores em grego, inclusive a Septuagint (composta por uma equipe de 72 sábios judeus trabalhando em períodos diferentes) e a própria Vulgata com o passar do tempo suscitaram cópias divergentes. Inúmeras versões se popularizaram nos séculos seguintes o que gerou profundas divergências no seio da Igreja, esta se viu obrigada a convocar sucessivos concílios para reavaliar a Vulgata para que o senso de unidade fosse mantido.
O presente texto padronizado como é aceito pela Igreja foi elaborado pelo Papa Clemente VIII (1592-1605). Considere-se ainda que as cópias aceitas pelas igrejas orientais como a compilação siríaca do século IV diferiam sobremaneira das demais e a influência do tempo, dos idiomas diversos e das interpretações teológicas produziram mais e mais discrepâncias.
Desde que não podem ser apresentados textos originais, nem sequer cópias destes no idioma original, toda e qualquer discordância nas cópias que as igrejas mais antigas detém se assemelha a uma situação a de uma propriedade da qual inúmeras pessoas apresentem escrituras de posse sem que nenhuma delas seja autêntica. O conjunto dos dados aqui apresentados obriga-nos a uma refutação racional à crença popularizada do “status de Escritura Divina” da bíblia de nosso tempo. Em conseqüência disso, muitos dos dogmas e interpretações teológicas dos sacerdotes cristãos e protestantes são igualmente duvidosos.
Do mesmo modo que um matemático ou um físico não chega a uma conclusão correta a partir de uma equação que contenha erros ou dados imprecisos, um teólogo cristão não pode concluir a partir do que é duvidoso ou impreciso. O capcioso argumento da fé utilizado pelos teólogos, nesta questão não é de modo nenhum aceitável. Se alguém tenha ardorosa fé que o sol gire ao redor da terra e mesmo que se prove a ele que isso seja um disparate e então persista tenazmente agarrado a esta crença, tal atitude não será mais fé, será mera teimosia ou soberba. Não nos parece admissível num diálogo sério ouvir de um prosélito cristão: “A palavra de Deus diz…” A pergunta seria: “Onde, quando e como se pode assegurar a veracidade desta afirmação?”
Capítulo 4 – Cristianismo Primitivo versus Cristianismo Ocidental
O cristianismo de nossos dias é o resultado de inúmeras assimilações culturais operadas desde o segundo século. O fator desencadeante deste processo de transformação teve lugar um pouco antes disso. A conversão de Paulo de certa forma marcou o nascimento deste “novo cristianismo” que se moldou ao pensamento grego, rompendo com a tradição semita, porque esta nova visão da mensagem cristã é antes de tudo a doutrina de Paulo e não a dos apóstolos que conheceram e conviveram com Jesus.
Paulo era judeu de origem, tornou-se cidadão romano e foi educado como tal o que significa que sua compreensão do mundo e da vida correspondia ao pensamento helenista. Convertido ao Cristianismo se destacou por sua brilhante inteligência e espírito de liderança, não há dúvida que se dedicou de corpo e alma na defesa de sua fé e em breve tempo sob sua liderança a igreja cresceu em número e em senso de organização.
Possivelmente sua ênfase em direcionar a pregação aos gentios levou-o a formular a doutrina com uma linguagem e conceituação própria da filosofia grega o que se chocava com a prática e crença existente antes dele. A medida que suas idéias se desenvolviam, a doutrina se afastava de tudo o que a ligava ao judaísmo, o que a tornava mais atraente e aceitável aos gentios. Havia em sua abordagem um pragmatismo estranho à mensagem dos profetas e do próprio Jesus. Crenças como a da divindade de Jesus e a da expiação dos pecados pelo sangue surgiram (ou passaram a ser destacadas) a partir de sua pregação, crenças que só existiam no paganismo grego.
Paulo atribuía a si próprio como suporte inquestionável de autoridade espiritual a “inspiração divina”, apresentava as circunstâncias de sua conversão (uma visão de Jesus) como suficiente atributo a sua condição de intérprete da palavra revelada. Toda a temática das epístolas gira em torno dessa autoridade espiritual, que buscava colocar todo opositor ou discordante na condição de desviado da verdade.
Podemos dizer que através desse discurso em que se colocava como porta-voz exclusivo da verdade, Paulo ousou fazer algo que jamais qualquer apóstolo de Jesus fez. Estes se mantiveram ligados ao que testemunharam e ouviram de Jesus, o que lhes parecia suficiente. Os cristãos de hoje atribuem a Paulo essa autoridade de inspiração divina ainda que nada saibam acerca das demais igrejas primitivas que não aceitavam sua doutrina.
O afastamento de Barnabé após a viagem de evangelização que fizeram juntos é citado na Bíblia, cita-se também de modo superficial uma discordância entre Paulo e alguns discípulos sobre o alimento impuro e a circuncisão. Apresentam-se os argumentos de Paulo, porém não os argumentos dos que discordavam.
Na verdade a discordância era muito maior: Paulo pregava ensinamentos que os discípulos que haviam vivido com Jesus jamais haviam ouvido de sua boca. Também nunca tinham ouvido Jesus abolir a proibição da carne impura ou pregar contra a circuncisão, ademais nunca o viram comer carne impura e era sabido que tinha sido circuncidado segundo a Lei.
Em adição a isso, o Evangelho de Barnabé inicia-se com um alerta dizendo que “Paulo e outros haviam se desviado e deturpavam a verdadeira mensagem de Jesus”. Nos séculos seguintes, a Igreja de Roma trataria de destruir textos e cartas que de algum modo discordassem com a pregação e a doutrina paulina. Nos dias de hoje diversos estudiosos imparciais tem afirmado que “o Cristianismo de Paulo não é o Cristianismo de Jesus”.
Jesus afirmou que “a salvação consistia em guardar os mandamentos da lei”. Ou seja, seu ensinamento corroborava a verdade revelada anterior a ele. A fé e a obediência aos preceitos divinos. Paulo por sua vez afirma que “a salvação é crer no sacrifício da cruz para que o sangue livre dos pecados”. Há nessa afirmação um sentido claro de ruptura com o ensinamento dos profetas. Paulo desenvolveu sua doutrina sobre este fundamento, e trouxe ao cristianismo uma nova visão repleta de conceitos filosóficos que mais tarde permitiram a outros teorizar a Trindade e revestir o cristianismo com um caráter ocidental e diversos formalismos e rituais de origem pagã. Não por acaso, Paulo é considerado por muitos pesquisadores e historiadores como “o fundador do Cristianismo moderno”, tal o caráter pessoal de sua doutrina.
A tradição paulina (não a de Jesus) legou também um novo entendimento da autoridade religiosa. A partir de Paulo, o pregador, o sacerdote ou o “pastor” se revestiu de uma autoridade sobre a comunidade (a igreja) até então desconhecida entre os primeiros cristãos. Aquilo que no princípio respondia a uma necessidade prática de organização comunitária, resultou com o passar do tempo numa instituição do “poder sobre os fiéis”. Este aspecto autoritário e frequentemente tirânico e intolerante tem marcado a história da Igreja, não apenas de Roma, mas também, do protestantismo em suas várias denominações.
O Dilema das Interpretações
Outro fator que intensifica a babel reinante na cristandade é a ausência de uma clareza teológica sobre o significado real dos conceitos e passagens bíblicas. Cada organização religiosa, cada teólogo ou líder religioso tece a sua interpretação utilizando a metodologia que lhe pareça mais conveniente, o que gera mais divisões e seitas.
Como os textos são antes de tudo, narrativas atreladas a um contexto histórico muito particular, não pareceu aos autores ser necessário adicionar notas explicativas para as gerações futuras (cabe lembrar a crença comum dos primeiros cristãos da proximidade do fim dos tempos). Na realidade, a própria forma em que os fatos e dizeres são apresentados nos 4 evangelhos permite interpretações das mais variadas. Isto se deve por que os autores não imaginavam escrever algo que se destinaria a épocas e povos diversos (não familiarizados com as tradições e a cultura judaica).
Por exemplo, na questão da Lei Mosaica: era inconcebível para qualquer judeu contemporâneo de Jesus que alguém compreendesse nas palavras do Messias o abandono da Lei, apenas os carentes de discernimento que se seguiram depreenderam da mensagem de Jesus alguma inovação das palavras eternas do Deus todo-poderoso.
Entre os primeiros presbíteros sempre houve diferentes interpretações dos textos aceitos, quando o Poder Papal se estabeleceu a excomunhão passou a ser empregada contra os que divergiam com a diretriz teológica oficial.
O protestantismo gerou uma nova situação, com a popularização dos textos as divergências se multiplicaram, movimentos como os anabatistas, o pentecostalismo e o adventismo surgiram desse processo de livre interpretação. Todas as facções surgidas reivindicavam a “autoridade espiritual através da profecia ou inspiração divina”.
Mas afinal, qual a probabilidade de que qualquer uma das muitas facções cristãs tem de representar a “verdade revelada” se tomam por base textos em que comprovadamente a palavra divina se confundiu com a palavra humana? E se a doutrina que pregam não é o Monoteísmo dos profetas (e do próprio Jesus)?
Imaginemos que a constituição de um país pudesse ser interpretada livremente por cada cidadão, o que aconteceria a esse país? Diante de tal libertinagem de interpretação a possibilidade de retornar a pureza original da mensagem em seu real contexto é praticamente nula. Seja se apoiando em supostos “dons divinos” ou em performances de forte apelo emocional, verdadeiros shows onde Jesus e a salvação ora são vendidos como um produto, ora a religiosidade é banalizada ao extremo.
Quanto à metodologia adotada especialmente nos meios evangélicos é o “uso do texto como pretexto”, ou seja, despreza-se o contexto e extrai-se o dizer ou versículo distorcendo-o segundo a vontade do intérprete. “O novo evangelismo americano” adotou esse método de pregação e mesmo setores católicos aderiram ao mesmo, que não passa de uma bizarra manipulação dos textos.
Capítulo 5 – Derrubando Mitos, Desmascarando Dogmas
Não é possível discernir e definir tudo o que no decorrer dos séculos foi introduzido na mensagem cristã, nem tudo o que foi banido, oculto ou distorcido. Nem o mais ingênuo crítico teria dúvidas que a julgar pelos rumos que a Igreja adotou ao estabelecer a aliança com o poder Romano, que o clero não teria escrúpulos para produzir sua própria versão do cristianismo, que atendesse a seus objetivos de poder espiritual e temporal.
Neste período (meados do séc. IV) a conturbação teológica nos meios cristãos era imensa e ameaçadora. A igreja enfrentava cisões e discórdias e isto representava perigo a ordem social, o que desagradava a Roma. Os bispos se dividiam entre duas posições opostas: os unitaristas (que acreditavam na Unicidade de Deus) e os trinitários (defensores da crença da Trindade).
O Dogma da Trindade, crença cristã ou de origem pagã?
Para responder a esta pergunta cabe reportarmos os primeiros tempos (primeiro e segundo século).
Entre os primeiros cristãos esta crença era absolutamente desconhecida (o que nos leva a crer que nas primeiras cópias dos textos e em vários outros livros não havia citações sobre isso).
Os primeiros presbíteros acreditavam no subordinacionismo: Somente Deus era o criador e senhor do universo e Jesus seria seu subordinado, dissociado de sua divindade.
Embora majoritária nos primeiros anos, esta crença viria a ser contestada por uma tendência que baseada na filosofia grega acreditava na natureza divina de Jesus e em sua condição de “pessoa na divindade”. Esta crença trinitária (que é um empréstimo do paganismo grego) se fortaleceu a partir do final do segundo século. Sua origem é inegavelmente não-cristã, e assumiu variantes entre algumas seitas da época (malkenitas, jacobitas, nestorianos, etc), que polemizavam com suas teorias sobre a natureza não-humana de Jesus ou uma suposta encarnação divina. Teorias que de modo flagrante se originavam das especulações filosóficas dos gregos e das crenças mitológicas do paganismo.
Contudo, em certas regiões do império a crença na Unicidade Divina permaneceu majoritária até o século V, diversos bispos condenavam a crença trinitária como uma heresia pagã e argumentavam que por milênios o Deus Vivo se deu a conhecer aos profetas como um Deus Uno, que não era homem e que não tinha filhos gerados, que ninguém compartilhava de sua natureza divina, pois do contrário seu poder não seria absoluto, mas sim relativo, e aduziam que “em nenhuma passagem dos Livros constava que Jesus tivesse citado a trindade” (o que demonstra que na época as passagens apontadas pelos trinitaristas como respaldo a sua crença não existiam nos evangelhos).
O historiador Arthur Weigall reitera que “Jesus nunca mencionou tal fenômeno e em parte alguma do Novo Testamento aparece a palavra “trindade”. As passagens comumente apresentadas como “provas” da trindade (Coríntios 1 12:4-6, 2 13:13 e 14, Mateus 28:12 apenas citam Deus, o Espírito Santo e Jesus juntos, mas não afirmam que constituam uma divindade trina. Outra referência se encontra em algumas traduções antigas em João (5:7). Peritos reconhecem porém que estas palavras não se encontravam nas cópias mais antigas, foram pois adicionadas muito mais tarde. Algumas traduções modernas omitem a parte espúria desse versículo.
A respeito da muito citada passagem de João 10:30, o próprio Calvino, um trinitarista, comenta que “os antigos usaram mal esta passagem para provar que Cristo é da mesma essência que o Pai, pois Cristo não argumenta a respeito da unidade em essência, mas sim a respeito da concordância dele com o Pai”. De fato, os defensores da doutrina da Trindade usam e abusam da livre interpretação para inferir do texto bíblico o que o texto não diz.
O bispo Arius (250-336) liderou a refutação à crença na trindade, a cúpula da Igreja o excomungou e o recebeu de volta várias vezes devido sua forte influência sobre o povo. As insurreições se sucederam entre os unitaristas e os trinitários até que o Imperador Constantino se viu forçado a convocar um concílio em Nicéia para resolver a controvérsia.
Os partidários da Trindade (todos próximos a corte) liderados por Atanásio negociaram concessões com o império e conseguiram se impor sobre os unitaristas. Seguiu-se um horrível massacre de cristãos que não aceitavam a crença na trindade. Tornou-se também um crime sujeito à pena capital a posse de algum livro não autorizado pela igreja (nesta ocasião destruiu-se cerca de 270 livros e evangelhos).
Em 346, o imperador persuadido pela princesa Constantina que professava a fé cristã como seguidora de Arius, ordenou sua volta. Arius foi aclamado ao visitar a catedral de Constantinopla e repentinamente apareceu morto. A igreja chamou a isto de “milagre” porém, o Imperador descobriu que Arius tinha sido assassinado, então, baniu Atanásio e outros dois bispos. O imperador formalmente aceitou o cristianismo e foi batizado por um bispo ariano.
Assim, o monoteísmo de Arius tornou-se a doutrina oficial da Igreja. Constatino morreu em 337, seu sucessor também aceitou o unitarismo. Em 341 o unitarismo foi plenamente aceito como a correta interpretação dos evangelhos, o que foi confirmado em Sirmium em 351. São Jerônimo escreveu em 359 que “o mundo cristão regozijava-se de encontrar-se Ariano”. Porém, as maquinações dos partidários da trindade em concílios posteriores suscitaram por fim a revisão do conceito monoteísta.
Em 385 Nestorius, bispo de Constantinopla e enérgico defensor do unitarismo foi martirizado. Apenas o Papa Honório daí por diante, ousou refutar a trindade. Em suas encíclicas ele reafirmou a crença na Unicidade de Deus com consistentes argumentos teológicos.
Em 680, 42 anos depois de sua morte ele foi anatematizado, evento único na história do papado. Finalmente a crença da trindade tornou-se dogma em todo ocidente. Seus defensores, diante da impossibilidade de explicá-lo, frequentemente recorrem ao sofisma de justificar a trindade por meio de um “mistério da fé”, o qual não pode ser compreendido racionalmente.
Verdadeira Natureza do Espírito Santo
Traduções confusas e as interpolações humanas produziram errôneas concepções que com o passar do tempo, foram usadas para corroborarem a doutrina da trindade.
A tradição judaica possuía uma clara compreensão que Deus se manifestava por intermédio de seus anjos e a expressão “anjo do Senhor” surge em diversas passagens dos textos do velho testamento, esses anjos eventualmente manifestavam a força divina de sinais, revelação e inspiração.
O nome do arcanjo Gabriel em hebraico Jabr – El (força de Deus) por si explica essa realidade espiritual, para os judeus não havia sentido em se crer que esta força se constituísse em algo distinto de Deus como uma personalidade ou divindade, ou seja, era o que parecia ser: a força manifesta de Deus, espírito no sentido de sopro (em hebraico, Ru’ahh – fôlego, verbo, espírito / em grego Pneuma, com um sentido similar), pois na tradição judaica a palavra espírito não tem necessariamente a conotação de alma individual, por isso esta Manifestação tinha o caráter de dons espirituais conferidos aos profetas e em casos especiais (como no dos apóstolos) a seus seguidores.
Esse “espírito santo” respondia a uma necessidade específica ligada à mensagem divina, uma assistência de Deus para a salvaguarda da mensagem e dos seus profetas e apóstolos. Jamais foi uma assistência sem uma razão que a justificasse. Com o advento das especulações filosóficas que deram origem a crença na trindade, lançou-se a hipótese que esta “força manifesta de Deus” seria a terceira pessoa da tríade. Nada na tradição semítica é encontrado sobre isso, apenas no paganismo grego.
Um segundo equívoco na tradição teológica cristã referente ao “Espírito Santo” diz respeito ao “advento do espírito” anunciado por Jesus, segundo o Livro de João. Os teólogos cristãos, baseados num erro de tradução acreditam que a palavra grega Parakletos se refere ao Espírito Santo. Este “erro” é bastante estranho, nada poderia justificá-lo, segundo a lógica do idioma grego. A palavra se encontra no gênero masculino, e é utilizada com pronome masculino. Quando usada em grego a palavra pneuma (espírito) é um pronome neutro (não masculino). Logo, Parakletos se refere a uma “pessoa”, a um “homem” e não a um espírito. Assim, se Jesus se referia ao “espírito Santo” no texto constaria a palavra “pneuma” e não Parakletos. Evidentemente, os tradutores trinitaristas sempre buscaram ocultar esse fato. Como sabemos, Jesus jamais falou grego. Seu idioma era o aramaico.
A palavra grega parakletos (que pode ser traduzida como “o que será louvado” ou “o que traz o louvor”) constante no texto grego de João, deve ser a tradução literal da palavra aramaica “Ahmath”. Assim, a anunciação feita por Jesus se referia a um Profeta a ser enviado cujo nome (em aramaico) seria Ahmath.
A crença de que a anunciação de Jesus se referia ao advento de um novo Mensageiro de Deus, permaneceu por séculos em algumas comunidades cristãs primitivas do oriente. Quando o Profeta Mohammad (cujo nome é a tradução árabe da palavra Ahmath) surgiu, alguns monges e sábios conhecedores dos textos antigos reconheceram o cumprimento da profecia de Jesus e se converteram ao Islam, o que confirma a existência de comunidades cristãs que sabiam do sentido correto da anunciação.
A Correta distinção do Espírito Santo
Quando se diz que este Espírito apenas se manifestava com uma missão justificável é para que se faça correta distinção do fato de pentecostes das muitas supostas manifestações, reivindicadas por várias facções e seitas da cristandade.
A manifestação de pentecostes correspondeu uma necessidade imediata para que a mensagem fosse levada aos povos. Portanto, aqueles seguidores próximos de Jesus que haviam se comprometido a propagar a verdade, foram assistidos pelo espírito de modo a cumprirem sua missão. Porém, como sabemos a mentira sempre está a se confrontar com a verdade e em pouco tempo os dons divinos autênticos foram misturados com as inventivas de Satã.
Mesmo Paulo nas epístolas, deixa claro sua preocupação com a proliferação de “dons” que alimentavam a confusão espiritual e a divisão já existente. A glossolassia (dom de línguas) tornou-se um problema, pois já haviam tantos abusando desta crença que o próprio Paulo escreveu: “Se há o dom de línguas, que haja intérprete”.
Não há de fato nada que sustente a crença que os dons autênticos tenham permanecido após a morte dos apóstolos (que foram próximos de Jesus). Do contrário, a divisão não se instalaria e a doutrina original não seria substituída pelas inovações.
A partir do século III a igreja de Roma tomou a resolução de abolir inteiramente esta crença, pois não havia como “distinguir os espíritos” na prática, logo estas crenças foram condenadas como heréticas pois geravam mais dissensões teológicas.
Com a reforma, o pentecostalismo ressurgiu na Europa. A ânsia de retomar as origens tornou-o redivivo quase como uma negação da letra morta em que a igreja tinha reduzido seus ensinamentos.
Este delírio místico desde então tem concorrido para suscitar mais e mais seitas e novamente o “Espírito Santo” que tantos reivindicam só tem servido para aumentar as dissensões, jamais para unificar a cristandade.
Na verdade, certos princípios discernentes devem ser empregados se desejamos analisar com correção as muitas manifestações atribuídas ao Espírito Santo.
Consideremos que tais manifestações espirituais podem ser de 3 naturezas: De natureza humana, de Natureza demoníaca ou de natureza Divina.
O primeiro caso se refere ao fato de que a criatura humana é dotada de dons psíquicos que em determinadas circunstâncias se manifestam e produzem fenômenos que desafiam a razão. Tais fenômenos ocorrem em todas as épocas, culturas, povos e religiões. A própria fé pode representar esta força psíquica em potencial que pode explicar muitos dos fenômenos produzidos (como as curas que ocorrem em todas as religiões e seitas cristãs ou não). O estado de transe (que pode ser induzido ou auto-induzido) no qual uma pessoa eventualmente pode produzir fenômenos que podem ser compreendidos como extraordinários, é comum a todas as culturas e tradições religiosas.
O segundo caso (de natureza demoníaca) é quando estes dons psíquicos inerentes ao homem são postos conscientemente ou não a serviço de Satã. Ciências ocultas como a quiromancia, a necromancia, as várias modalidades de magia e as manifestações falsamente atribuídas ao Espírito Santo, são manifestações demoníacas para desviar o homem da Senda Divina. Não há sinal ou prodígio que Lúcifer e seus asseclas não consigam reproduzir, portanto, os que se baseiam em sinais e prodígios (e não consideram a coerência com a Verdade revelada aos Profetas) se tornam as principais vítimas dessa trama satânica.
O terceiro caso (natureza divina) é a manifestação da assistência divina no que se refere a Senda da Verdade, esta assistência se operava por sinais quando os Profetas e seus apóstolos se encontravam diante de perigos ou de desafios no cumprimento de sua missão.
Após a revelação concluída das escrituras sagradas (com o advento do Alcorão) e desde que a Verdade tenha se tornado conhecida e detalhada para toda humanidade e estar acessível a todo aquele que a busque, a assistência divina do Espírito se restringe “a orientação para a fé” e “a luz do discernimento espiritual” que é a graça divina que é concedida àqueles a quem o Altíssimo cobrir com sua misericórdia. E este discernimento espiritual capacita aos que se apeguem a fé monoteísta (adoração exclusiva a Deus) e a obediência a suas leis separar a verdade do erro e não serem ludibriados por Satã.
Na questão abordada o discernimento espiritual nos aponta certas diretrizes de grande importância para os que buscam a verdade e se firmam a ela:
1. A assistência divina do Espírito foi dada aos profetas do Altíssimo e (eventualmente) aos seus apóstolos que se mantinham firmes ao que foi revelado. Jamais esta assistência foi ou será dada aos que se afastam da palavra revelada e criam inovações, seitas, doutrinas estranhas ao Monoteísmo Original de Abraão, Moisés, Jesus, Mohammad e dos demais profetas, logo, os seguidores de crenças falsas como a Trindade, ou a salvação pelo sangue, e que seguem sacerdotes ou pastores ou que devotam adoração a qualquer criatura junto ao Deus Único não contam com assistência alguma senão de Satã que os ilude e os desvia mais ainda da Senda Divina.
2. Todas as manifestações do Espírito relatadas nas escrituras se referiam a salvaguarda da Mensagem Divina e dos que se apegavam a ela, assim o Espírito da Santidade não se relaciona com assuntos mundanos ou questões pessoais, toda e qualquer manifestação espiritual voltada para isso não pode ser de natureza divina.
3. A análise histórica e dos textos sagrados demonstra que a assistência do Espírito se caracterizava pela coesão e pela coerência da Mensagem divina. Ou seja, embora em épocas diferentes, a verdade revelada para Abraão foi a mesma verdade revelada para Moisés, para Jesus e Mohammad, de maneira que nenhum deles ou qualquer dos outros profetas de Deus jamais fundaram igrejas ou seitas. Havia uma única verdade e uma única religião (Islam – submissão a Deus) e o Espírito zelava pela unidade dessa mensagem.
Em contrapartida, ao analisarmos as diversas manifestações atribuídas ao “espírito santo” reivindicadas pelas igrejas e seitas chegaremos às seguintes conclusões: Estas manifestações em nada tem contribuído para unir ou manter qualquer senso de unidade, ao contrário promovem uma progressiva divisão e crescente profusão de doutrinas e interpretações contraditórias entre si. Tais manifestações são flagrantemente falsas, uma vez que reafirmam crenças que a própria história registra como criações humanas (se alguma fosse verdadeira conclamaria a senda original monoteísta revelada aos profetas, negaria a doutrina da trindade, por exemplo).
A Salvação: Fé e Conversão ou o Resgate pelo Sangue?
De todas as doutrinas estranhas à mensagem de Jesus, forjadas após sua missão, a crença do resgate pelo sangue é a mais declaradamente de origem pagã e sua inserção no cristianismo foi providencial: para sustentar e justificar uma das versões (hipóteses) surgidas entre os cristãos sobre a suposta morte de Jesus na cruz. Um dos fatos que os líderes religiosos ocultam dos seus seguidores é: a versão da morte de Jesus na cruz e sua posterior ressurreição não era unânime entre os cristãos primitivos. Ninguém dentre eles negava que a crucificação teria acontecido, a dúvida, porém, era: seria Jesus o homem que foi supliciado e suspenso na cruz?
A divergência estabeleceu-se de imediato, devido a dispersão em vários grupos por todo o país (e especialmente para a Síria), o temor da perseguição e a comoção que tomou todos os apóstolos e seguidores mais próximos (um grupo que chegou à cerca de setenta e dois), logo uma série de hipóteses surgiram.
A versão da crucificação de Jesus e sua ressurreição era sustentada por um grupo de testemunhas oculares. Porém uma dessas testemunhas oculares, Barnabé, registrou em seu evangelho que o próprio Jesus apareceu dias depois a alguns seguidores e declarou que não tinha sido crucificado (que outro homem havia sido supliciado em seu lugar). Barnabé ainda escreveu em seu evangelho que Jesus permaneceu 3 dias com eles e convocou os discípulos e seguidores que ainda haviam permanecido na cidade e declarou a estes que NÃO HAVIA MORRIDO e os alertou para que não se deixassem ludibriar por aqueles que pregariam sua morte na cruz e a sua ressurreição; pois muitos dos que tinham fugido para outras regiões já propagavam estas e outras hipóteses sobre os fatos. No terceiro dia Jesus foi arrebatado aos céus no monte das oliveiras à vista de um grande número de pessoas. Em outros escritos apócrifos encontram-se diferentes versões quanto à pessoa que tenha sido levada ao madeiro no lugar do Messias (A.S.).
Os seguidores dispersos continuaram a conjecturar sobre sua suposta morte na cruz nos anos seguintes. O pequeno grupo composto por Maria, Marta, Madalena e Barnabé, entre outros, passaram a tratar esta questão com sigilo, pois as autoridades romanas proibiram por um bom tempo qualquer debate público sobre Jesus. De fato, em muitos agrupamentos cristãos dos primeiros tempos a crença era de que Jesus não havia morrido na cruz, enquanto em outros grupos, acreditava-se na sua morte e ressurreição.
Ao se converter, Paulo também encontrou essa questão perturbadora a dividir os cristãos, muitos deles tentavam entender e racionalizar sobre os desígnios divinos: Se Jesus, o Messias tinha sido preso e morto como um criminoso apesar de inocente onde e como a justiça divina se conformava a isso? Qual a razão e o propósito de sua morte?
Paulo não se diferenciava dos demais nesta questão e mais uma vez recorreu ao pensamento grego para encontrar uma resposta a esse questionamento. Sendo um dos que acreditavam na morte na cruz e na ressurreição isso o obrigava a encontrar uma razão para o acontecimento.
O sacrifício de sangue inocente para aplacar a ira divina era crença e prática amplamente conhecida em todas as tradições pagãs; porém a razão que justificaria neste caso seria o objetivo maior da crença cristã: a salvação. Assim, Paulo organizou sua pregação aliando a visão gentílica à conclamação cristã da salvação “resolvendo” o perturbador questionamento que permanecia na mente dos cristãos que acreditavam na crucificação de Jesus.
Segundo Paulo e os que o seguiram, em razão do pecado haveria a necessidade do resgate, portanto, o sangue inocente do messias “pagaria” os pecados dos homens. Tomavam como argumento em apoio o sacrifício animal praticado pelos profetas e sacerdotes (embora a expiação não fosse a razão para esse preceito).
Para o mundo gentílico, esta doutrina era absolutamente lógica e correspondia às suas concepções de divindade onde Deus ou os deuses pensam e agem como os homens, segundo os padrões destes.
Nas mitologias pagãs existe esta mesma teorização, senão vejamos:
Um Deus de forma humana, que tem filho (gerado dele), envia-o ao mundo na forma humana (pois este é um Semideus ou um outro deus), e então exige em sacrifício o sangue e a vida de seu próprio filho para aplacar sua ira contra os homens.
Como vimos, a “salvação a preço de sangue” se enquadra perfeitamente ao pensamento gentílico, mas, e quanto a tradição profética (mensagem divina) que foi a única e verdadeira doutrina de Jesus? Se opõe sem dúvida a tudo o que os profetas e o próprio Jesus predicou.
1. O Deus vivo, Deus de Abraão, de Moisés, de Jesus e de todos os profetas enviados, o que confirma os ensinamentos e mensagens destes é absolutamente justo. Portanto não promoveria a injustiça exigindo o sangue de um inocente, uma de suas mui amadas criaturas, para redimir a culpa e o pecado de outros. Se o fizesse iria contra sua própria justiça, se colocaria na mesma condição dos falsos deuses e dos homens, o que é inconcebível.
2. O sacrifício animal praticado pelos profetas jamais foi o “preço do resgate”. O perdão divino não tem preço, é graça de Deus sobre o arrependido e o penitente. O sacrifício simbolizava a submissão, a devoção e o reconhecimento da glória de Deus, por exemplo: quando Abraão levou seu filho para o sacrifício não o fez para expiar pecados, mas para demonstrar sua submissão incondicional, seu amor a Deus sobre todas as coisas, e Deus aceitando o que havia em seu coração poupou seu filho (pois o Deus verdadeiro não aceita o sangue humano por sacrifício) e ordenou o sacrifício de um animal. Apenas quando os judeus se tornaram insubmissos e seus sacerdotes passaram a propagar que os pecados poderiam ser expiados por sacrifícios (sem um sincero arrependimento e o abandono do pecado) desviando a muitos da senda correta, é que Deus não mais aceitou seus sacrifícios.
3. Jesus pregou por três anos o arrependimento, a conversão e a penitência, reafirmou a Lei eterna e o apego aos mandamentos, princípios que formam o conjunto da FÉ. Se a salvação se originasse de algum sacrifício de sangue inocente todos esses princípios e toda sua pregação e missão seria vã e ele não precisaria ter chegado à idade madura, bastaria que Herodes conseguisse seu intento e o desígnio do resgate pelo sangue estaria consumado.
A Crença na Filiação Divina e na Natureza Divina de Jesus
Uma viciosa interpretação das passagens bíblicas desprovida de um conhecimento apurado da linguagem e do pensamento corrente da época gerou no segundo século o equívoco e a especulação de uma suposta filiação divina. Deus, não sendo criatura, mas sim, Criador, não sendo homem ou mulher, não teria um filho no sentido atribuído de reprodução ou geração.
A palavra do aramaico utilizada por Jesus, ABBA, tem em seu sentido literal a tradução de “Senhor” e não pai, mesmo se tivesse sido expressa Abbi poderia ser meu Senhor ou meu pai. A versão para o grego (e na ausência de textos em aramaico ou hebraico) possibilitou a assimilação do conceito Pai- filho tal como é comumente compreendido. A sensata interpretação é de que se essas palavras foram utilizadas estariam expressando um sentido figurado de amor entre Deus e seus servos diletos, pois nos textos aceitos encontramos a expressão filho de Deus utilizada para Jesus, Davi, Salomão e Adão; e o próprio Jesus dizendo “sois filhos de Deus”. (Em vista disso percebe-se a contradição na expressão bíblica de “filho unigênito (único) de Deus, ou seja, os textos se contradizem). Na crença da filiação divina de Jesus percebe-se claramente a nefasta influência do pensamento gentílico que atribuía filhos aos deuses.
A crença da natureza divina de Jesus como uma pessoa da trindade também surgiu dessa especulação filosófica de origem helênica que, pouco a pouco, se introduziu no pensamento cristão. O texto atribuído a João, que destoa sobremaneira dos demais evangelhos canônicos, é o texto que demonstra a forte influência dos conceitos filosóficos pagãos que buscavam interpretar a natureza e a vida de Jesus sob uma ótica absolutamente estranha àquela do mundo e da cultura semita. A divinização de Jesus seria na verdade impensável dentro do universo judaico em que os apóstolos e primeiros seguidores viveram, para esses primeiros cristãos a convicção de que Jesus teria sido um profeta, um homem como os outros, não obstante os milagres que Deus tenha operado por intermédio dele, era inquestionável.
Porém, a partir do segundo século, com a conversão em massa de gentios, a crença de que Jesus tivesse uma natureza divina, ou que fosse ele próprio “Deus” se tornava plausível, pelo menos entre o povo comum. Enquanto que, entre os primeiros presbíteros havia reticência quanto à aceitação de tais crenças. Como ocorreu com a crença da trindade, por pelo menos três séculos posições contraditórias se digladiaram até que o poder da igreja de Roma impôs a unificação por meio da força e da supressão dos seus opositores.
O texto tardio atribuído a João tem sido utilizado como base de argumentação por aqueles que professam a crença na “natureza divina” de Jesus. Como sabemos, o texto em questão surgiu por volta de 110 d.c., redigido provavelmente em grego, portanto, toda sua abordagem já se encontra dirigida pela tendência dominante de sua época: o pensamento gentílico. Logo, não é estranho que se proponha a propagar crenças que não se encontram nos evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos.
A passagem de João 1:1 é comumente apresentada como “prova da natureza divina e da pré-existência de Jesus”. Contudo, o texto grego não parece afirmar nem uma coisa nem outra. A tradução mais comum dessa passagem: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”. (Trad. João F. Almeida) simplesmente propõe duas expressões contraditórias. Antes de tratarmos do que há de incorreto nesta tradução, segundo as regras do idioma grego, é interessante observarmos algumas das várias “traduções” bíblicas divergentes para esta passagem:
1. New Testament in an improved version (1808) “ …e a palavra era um Deus”.
2. J.M.P. Smith and J. Goodspeed (1935) “…e a palavra era divina”.
3. Johannes Schneider (1978) “e de sorte semelhante a Deus era o Logus (Palavra)”.
Algumas outras versões bíblicas apresentam variações de tradução para esta passagem, sem que considerem certas regras elementares da gramática grega. O substantivo Theos (Deus) ocorre duas vezes. Na primeira se refere a Deus Todo-Poderoso com quem a palavra (logus) estava. Este primeiro Theos é precedido do artigo definido Ton (o), o qual denota uma identidade (a referência a Um Ser, ou seja, O Deus Criador). No segundo theos, porém, não existe artigo, isto é, a referência ao verbo divino (Criador) não se faz aqui, a nenhuma entidade (pessoa). O que se diz é que a palavra criadora era divina e não “o próprio Deus”.
Jesus aboliu alguma lei?
A interpretação dos teólogos cristãos sobre esta questão reflete a tendência comum da igreja de Paulo em reinterpretar os princípios e adaptá-los ao que entendiam como necessidade do momento. Esta facção de seguidores reunidas em torno de Paulo, decidiu pelo afastamento das tradições judaicas, entretanto, nenhuma correta distinção entre a Lei Divina e as tradições tinha sido feita por eles. Provavelmente a intolerância dos judeus para com os primeiros cristãos pesou na decisão tanto quanto a estratégia paulina de tornar a doutrina mais aceitável aos gentios.
Um grupo de teólogos recorrem a argumentos astutos para justificar essa atitude. Afirmam por exemplo, que ao dizer: “Eu cumpri a lei”, Jesus não estava dizendo que havia observado a lei (portanto não era um transgressor), mas estava dizendo: “Eu revoguei a lei ao cumpri-la, vocês estão livres dela”. Na verdade Jesus jamais se insurgiu contra a Lei, muito ao contrário, reafirmou-a como prova manifesta da fé, do temor e da obediência. Sua declaração que toda lei se resumia em “Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a tí mesmo” consagrava a essência da lei a qual estava sendo negligenciada pelos judeus (pois eles não cumpriam a lei mas, fingiam fazê-lo). A declaração não era autorização para abandonar os outros princípios da lei (ele não estava dizendo para ninguém adulterar, roubar, desobedecer aos pais etc.). A defesa que fez da adúltera ressaltava o cumprimento da lei com sabedoria e não com hipocrisia e farisaísmo como havia se tornado comum entre os judeus.
Jesus jamais pregou ou praticou qualquer desobediência a lei mosaica, jamais deu autoridade a nenhum discípulo para que saísse pelo mundo a dizer: “vocês estão livres para consumir a carne impura, livres da circuncisão” ou coisas do tipo. O que Jesus fez foi uma perfeita distinção entre a Lei Divina e os muitos costumes inventados e inseridos nas escrituras antigas pelos sacerdotes e escribas, insurgiu-se contra todas essas invenções e denunciou-as ao povo convocando-o ao Monoteísmo Original, ao abandono da hipocrisia que anula a fé e conduz ao inferno. Não obstante, entre os exemplos práticos de Jesus e as inovações de Paulo, os cristãos modernos em sua maioria seguem o segundo, embora afirmem a fé nas palavras do primeiro.
A Lei que tenha sido proferida pelo Deus vivo não pode ser abolida por pregadores ou seguidores dos profetas, seja Pedro, Paulo ou qualquer outro. Não havendo nenhum texto original e autêntico em que conste que Jesus tenha declarado a abolição da lei anterior a ele (como pretendem os inovadores e teólogos) a ninguém mais é dada autoridade de duvidar da validade permanente da Lei.
Um Comentário Final
As várias questões aqui levantadas se relacionam a uma questão central que na realidade deve ser considerada de modo prioritário por qualquer pesquisador ou pessoa que se sinta comprometida com a busca da verdade: Em que se baseia a “autoridade” de todos os reformadores e intérpretes da mensagem de Jesus?
O argumento largamente usado primeiro por Paulo e seus seguidores mais próximos, foi a da assistência divina do Espírito Santo. Sobre este argumento respaldado pelos fatos extraordinários relatados em atos (por eles próprios) Paulo manteve seu embate teológico com as outras facções cristãs da época. Como os relatos desses outros grupos de cristãos primitivos foram destruídos pela Igreja talvez jamais saberemos se tais sinais e prodígios eram ou não exclusivos ou mesmo se alguém (que não os seguidores) havia testemunhado os mesmos. De um modo ou de outro o papado foi instituído sobre esta argumentação: os Papas seriam os vigários de Jesus na terra, herdeiros de Pedro e de Paulo e como estes (segundo a crença) infalíveis e santos.
A história da Igreja e suas muitas alterações teológicas é prova suficiente que a infalibilidade nunca existiu. As outras facções cristãs de nosso tempo também reivindicam a herança de Pedro e Paulo, porém não fogem da regra das inovações, divisões e sub-divisões que colocam em cheque qualquer credibilidade neste sentido. São estes homens herdeiros de Jesus ou de qualquer um de seus apóstolos como dizem? Afinal que verdade é esta que pregam que em tempos em tempos pode ser alterada segundo o entendimento de suas lideranças? Que conclusões teológicas são estas que se baseiam em comprovadas inserções humanas nos textos nos quais insistem em denominar de “palavra de Deus”?
Os sofistas cristãos se defendem com slogans e argumentos vazios como “Jesus é o mesmo ontem e hoje”. Sim, isto é verdade, porém a bíblia tal como a conhecemos não foi sempre a mesma. Se pudéssemos por lado a lado um judeu ou um muçulmano dos primeiros tempos do judaísmo ou do Islamismo com um judeu ou um muçulmano de nossos dias, veríamos que os dois creriam no mesmo e praticariam o mesmo judaísmo ou Islamismo. Se o fizéssemos com um cristão primitivo e um cristão da atualidade pensaríamos que os dois professariam duas religiões diferentes. Será que um cristão primitivo entenderia um show de Rock Gospel, ou a encenação dos pastores televisivos ou a performance dos padres da moda como pregação real? Um cristão primitivo aceitaria as muitas crenças e dogmas que jamais conheceu e que hoje são consagradas como pilares da fé cristã? De que modo reagiria diante da Glossolassia (Dom de línguas) tal como é distorcida em nossos dias pelas inúmeras seitas onde nem quem fala e nem quem ouve entende coisa alguma? Aceitaria a doutrina da prosperidade forjada pelos chamados pastores para legitimar o individualismo capitalista? Entenderia os rituais das missas, os confessionários e o culto aos santos como a mensagem de Jesus?
Pelo que apresentamos neste trabalho as respostas para essas perguntas estão bastante claras para o leitor.