Autor: Ibrahim Bayyumi Madkur
“Por muito tempo a filosofia islâmica permaneceu sob uma nuvem de incerteza. Por todo o século XIX a filosofia islâmica foi objeto de controvérsia. Aqueles que negavam mesmo sua existência fingiam ignorância e sustentavam que os ensinamentos do Islam se opunham à toda livre discussão ou investigação, por conseguinte o Islam não promovera a filosofia e a ciência no decorrer de sua história. Diziam que os únicos frutos que o Islam produzira eram o despotismo intelectual e o dogmatismo. O cristianismo por sua vez, havia sido o berço da liberdade de pensamento e de discussão. Acreditavam que apoiar a arte e a literatura, encorajar as ciências resultaria em criar as condições propícias para o surgimento e o desenvolvimento de uma nova filosofia.
1. O Preconceito Racial
Os críticos da filosofia islâmica não se limitaram à argumentação mencionada; foram muito adiante em suas noções falsas chegando mesmo ao racismo, ao abordarem as questões da filosofia e da política.
É surpreendente que os franceses, que se opunham ao pensamento racista, estavam entre os semeadores dessa atitude, cujos efeitos permanecem até nossos dias. Renan foi o primeiro a declarar a opinião de que os semitas seriam inferiores aos arianos. Essa teoria influenciou alguns de seus discípulos que a propagaram por toda parte. (Tal influência) se deveu ao fato de que Renan foi um mestre incomparável das línguas semíticas e um profundo conhecedor da cultura islâmica.
Leon Gauthier, nas primeiras décadas do século XX, foi somente um continuador das ideias de Renan acerca do “espírito semita” e o “espírito ariano”. Segundo ele, a mente semita estaria capacitada para compreender somente detalhes e particularidades desconexas entre si, sendo, portanto, incapaz de perceber qualquer ordem coerente ou relação entre detalhes.
Em suma, o “espírito semita” seria aquele da “divisão”, da “separação”; enquanto que o “espírito ariano” seria aquele da “integração” e da “síntese”.
Por conseguinte, os árabes, sendo capazes somente de perceber particularidades e fatos isolados, não poderiam formular quaisquer teorias, proposições, leis ou hipóteses. Seria, pois, inútil buscar entre eles alguma investigação científica ou filosófica. O que se confirma hoje (ao menos em tese) com o fechamento intelectual e a ausência da discussão especulativa que leva os estudantes muçulmanos a mesmo ridicularizar o pensamento científico e a filosofia.
Os defensores de tais ideias consideram a filosofia islâmica uma simples imitação da filosofia aristotélica; seus textos, para eles seriam repetições das ideias gregas, em árabe.
Os pontos de vista de Renan foram difundidos durante todo o século XIX. Felizmente, já passaram os dias em que os costumes, a ética, a moral e as características intelectuais de um povo eram tidos como produtos das condições geográficas ou dos traços raciais herdados. Outras tentativas ou formulações teóricas chamadas de “psicologia nacional” ou “psicologia étnica” provarem-se igualmente sem sentido.
Ademais, quem afirmou que a filosofia islâmica seria uma criação do pensamento árabe? Está bem estabelecido (historicamente) que muitas nacionalidades, como os persas, os indianos, os turcos, os egípcios, os sírios, os bárbaros e os andaluzes contribuíram para o desenvolvimento e o enriquecimento da filosofia islâmica.
A civilização islâmica em seu apogeu não impediu o avanço da ciência, ao contrário, encorajou esse avanço. Longe de rejeitar o pensamento filosófico, recebeu-o de braços abertos. Abrigou opiniões e teses de toda espécie.
Como pode o Islam, que convida a humanidade a observar os céus e a terra, à contemplação e à meditação sobre os mistérios naturais, opor-se à discussão e ao questionamento, restringindo a liberdade de reflexão?
Mesmo Renan, que expressou ideias preconceituosas que acima expomos, escreveu também que os muçulmanos trataram os povos conquistados com uma indulgência jamais registrada no decorrer da História. Por exemplo, alguns dos judeus e cristãos abraçaram o Islam enquanto outros preservaram a crença de seus antepassados, ocupando mesmo assim postos oficiais nas cortes dos Califas e governadores. Além disso, apesar das divergências religiosas entre muçulmanos, judeus e cristãos, o casamento entre as comunidades continuou ocorrendo.
Naturalmente, não foi a única vez que o historiador e filólogo francês caiu em contradição. Em outra passagem de seus escritos ele nega a existência de algo que se possa chamar de “filosofia islâmica” ao dizer: “A única coisa que os árabes fizeram foi aprender uma enciclopédia grega dos séculos 7 e 8”. Em seguida, ele se contradiz ao afirmar a existência de uma “filosofia islâmica original” cujos ensinamentos mereceriam estudo e atenção. Renan escreve, “Os árabes (muçulmanos), como os latinos, por meio da interpretação das obras de Aristóteles, aprenderam a formular uma filosofia repleta de elementos e características próprias, em radical oposição ao que era ensinado nos meios acadêmicos”. Renan acrescenta: “O movimento original do pensamento filosófico islâmico pode ser encontrado nas várias escolas teológicas”.
Essas afirmações contraditórias e a evidente negligência de Renan em seus trabalhos não passaram despercebidas por Dugat, um de seus contemporâneos. Dugat acreditava que a qualidade do pensamento filosófico tal como podia ser verificado em Ibn Sina não poderia ser o resultado senão de linhas de raciocínio originais e sofisticadas; e que as escolas de filosofia islâmica tais como os Mutazilitas e os Asharitas eram criações originais do pensamento islâmico.
No século XX, o que foi expresso na forma de especulação e teoria por homens como Dugat, foi aceito como irrefutável e comprovado. Pouco a pouco pesquisadores conheceram e entenderam melhor os tópicos da filosofia islâmica. Ao conhecerem mais sobre o Islam, seu julgamento tornou-se mais justo e equilibrado.
Na verdade, a intenção maliciosa dos intelectuais europeus durante o séc. XIX ficou evidente em seu trato dos variados temas islâmicos; porque enquanto por um lado, admitissem que as obras dos filósofos muçulmanos não haviam sido adequadamente estudadas e que o seu conhecimento acerca de seu conteúdo ainda fosse incompleto, por outro, emitiam as mais generalizadas afirmações sobre essa filosofia; diziam que a filosofia islâmica não era mais do que uma imitação do pensamento de Aristóteles.
É bom lembrar que esses intelectuais não tinham acesso direto à filosofia islâmica, uma vez que não dispunham de textos originais e traduções latinas careciam da devida exatidão no que se refere aos conceitos e nuances da linguagem filosófica.
Na atualidade, porém, podemos falar com absoluta certeza acerca das contribuições da civilização islâmica nessa área; e podemos também afirmar que existem diversos tópicos do pensamento islâmico ainda não pesquisados completamente.
Não é uma questão relevante se devemos denominá-la de filosofia islâmica ou filosofia árabe; trata-se de uma filosofia desenvolvida num ambiente islâmico, e que foi redigida em árabe. O fato de seus conceitos haverem sido escritos em árabe não significa que essa filosofia seja uma criação dos árabes.
Uma vez que rejeitamos as ideias de superioridade racial jamais afirmamos ideias desse gênero. O Islam reuniu em suas fileiras numerosas nacionalidades que contribuíram para o desenvolvimento de uma cultura islâmica. O fato de ser chamada “filosofia islâmica” não quer dizer que se trata de uma realização exclusivamente dos muçulmanos, o que não se coaduna com as evidências históricas disponíveis, as quais demonstram que os primeiros mestres dos muçulmanos foram os nestorianos, os jacobitas, os judeus e os sabeus, e que os sábios muçulmanos colaboraram com seus contemporâneos nestorianos e judeus no estudo filosófico e científico.
Em todo caso, eu estou inclinado a chamar essa filosofia de “islâmica” por duas razões: O Islam não é somente uma religião, é também uma civilização, e os tópicos da filosofia islâmica embora variados encontram-se enraizados na civilização islâmica. Em segundo lugar, os temas, os fundamentos e objetivos dessa filosofia são todos islâmicos; e foi o Islam que formou a coesão desse pensamento integrando ensinamentos e pontos de vista de diferentes culturas e escolas filosóficas.
2. Filosofia Islâmica
A filosofia islâmica é peculiar pelos gêneros de assuntos que aborda, os problemas aos quais se dedica e os métodos que tem para solucioná-los. Essa filosofia tratou da questão da unicidade e da multiplicidade e da relação entre Deus e o universo, temas que causaram intensas discussões e controvérsias entre os teólogos por muito tempo.
Outro objetivo da filosofia islâmica foi o de reconciliar “revelação” e “razão”, conhecimento e fé, religião e filosofia, e demonstrar que a razão e a revelação não se contradizem, e que a religião poderia ser aceita pelos céticos quando esclarecida pela luz do conhecimento filosófico.
Os Tópicos
Muito embora a filosofia islâmica seja orientada pelo pensamento religioso, não ignora as questões filosóficas mais importantes. Por exemplo, concentrou-se minuciosamente no problema do ser e discute criticamente questões como o tempo, o espaço, a matéria e a vida. Seu método de abordagem da epistemologia era original e abrangente. Distinguiu o “eu” (a alma) da razão, as qualidades inatas e as adquiridas, a exatidão e o erro, a hipótese e a certeza (do conhecimento). Seus filósofos investigaram sobre a virtude e a felicidade; e dividiram as virtudes em categorias específicas, concluindo que o mais elevado grau é o da contemplação ininterrupta e da serena realização da verdade.
Os filósofos muçulmanos dividiram o pensamento filosófico em duas categorias: especulativa e prática; e suas discussões cobriram vários assuntos, tais como a metafísica, a política, a ética, a filosofia natural e a matemática. De fato, os pensadores muçulmanos acreditavam que a filosofia devia abordar um espectro muito mais amplo do conhecimento do que se aceita na atualidade. Nesse aspecto, o trabalho desses filósofos islâmicos se comparava ao trabalho dos filósofos gregos, sobretudo ao de Aristóteles, a quem admiravam e seguiam.
A filosofia islâmica era mesclada com a medicina, a biologia, a química, a botânica, a astronomia e a música. De modo geral, todos os campos do conhecimento eram considerados ramos da filosofia.
Não seria um exagero dizer que a filosofia islâmica abrange todos os aspectos múltiplos da civilização islâmica. Devemos ter em mente que o conhecimento na época em que essa filosofia surgiu e se desenvolveu era compilado de maneira integral, como uma enciclopédia.
Ademais, é preciso saber que um entendimento global do pensamento filosófico islâmico não é acessível por um mero estudo dos textos; faz-se necessário também uma pesquisa que inclua o estudo da teologia e da gnose. Possivelmente, será preciso ainda relacionar a filosofia com a história jurídica e os princípios da jurisprudência islâmica. Não raro encontram-se conceitos e teorias filosóficas em textos islâmicos que tratam de medicina, geometria, química ou astronomia.
Alguns cientistas muçulmanos demonstraram mais coragem de expressar suas ideias filosóficas do que aqueles dedicados ao campo da filosofia. Também encontramos em algumas discussões teológicas e místicas daquele período, pontos de vista que se comparavam em precisão e profundidade com o que é encontrado nas obras dos aristotélicos. Esses pensadores muçulmanos desafiaram a filosofia de Aristóteles e a combateram por muitos anos. Esse embate levou ao surgimento de um pensamento filosófico islâmico original.
Mais tarde, uma metodologia na forma de análise racional foi introduzida nas discussões sobre os fundamentos da lei e os princípios islâmicos de jurisprudência que possuem um traço filosófico peculiar, o qual pode ser inferido em seus procedimentos, regras e métodos similares àqueles em uso na atualidade.
Filosofia Islâmica e Escolástica Cristã
O que já dissemos pode dar uma ideia do pensamento filosófico no Islam. Seria um erro nos limitarmos, como os intelectuais europeus do século XIX que se dedicaram somente a alguns textos latinos e às traduções hebraicas. De fato, se desejarmos uma compreensão profunda e abrangente do pensamento filosófico islâmico, só poderemos alcançá-la através de suas fontes originais.
Ainda que nem todos os textos originais tenham sido publicados e pesquisados, com base no que já é conhecido podemos nos convencer de que o material reunido pelos pensadores islâmicos da Idade Média foi superior ao que foi produzido pelos eruditos cristãos daquela época.
Se alguém citar o escolasticismo, será melhor que cite primeiro a filosofia islâmica, uma vez que o primeiro deve muito ao pensamento filosófico islâmico no esclarecimento de diversos temas e questões.
A filosofia islâmica foi para o Oriente o que a filosofia grega foi para o ocidente. A combinação dessas duas tradições com as investigações científicas realizadas pelos judeus formou a história do pensamento especulativo nos fins da Idade Média.
Para que entendamos o verdadeiro lugar da filosofia islâmica, precisaremos estudar sua relação com as filosofias antiga, medieval e moderna.
Filosofia Islâmica e Filosofia Grega
É inegável a influência do pensamento grego na filosofia islâmica bem como a forte tendência aristotélica presente nos antigos pensadores islâmicos. Não há como não reconhecer que muitos dos filósofos islâmicos do passado admiravam imensamente a Platão e alguns deles foram seus seguidores.
Se uma palavra não for repetida, ela morre. Quem não foi um aprendiz na escola daqueles que o precederam? Nós, os homens da atualidade ainda estamos às voltas com as obras realizadas pelos gregos e latinos em inúmeras áreas do conhecimento.
Entretanto, se fôssemos tão longe quanto aqueles que repetem o modo de pensar de Renan, dizendo que a Filosofia Islâmica não foi senão uma cópia da Filosofia Neoplatônica, estaríamos cometendo um grande erro. Na verdade, a Filosofia Islâmica recebeu muitas influências num processo que resultou no surgimento de novas ideias e teorias. O pensamento filosófico islâmico foi também influenciado pela filosofia e pela cultura dos persas e indianos.
O intercâmbio de ideias ou a adoção de conceitos nem sempre implica em aculturação. Indivíduos podem examinar um determinado assunto e produzir diferentes abordagens; um filósofo pode utilizar ideias de outro e isso não impede que produza, a partir de seu estudo, novas ideias ou um novo sistema filosófico.
Espinoza por exemplo, ainda que claramente tenha sido um seguidor de Descartes, criou um sistema filosófico independente. Ibn Sina, que foi adepto das ideias aristotélicas, apresentou pontos de vista jamais professados por seu mestre. Cada um dos filósofos islâmicos viveu num ambiente distinto, seria, pois, um erro ignorarmos que essas circunstâncias não tivessem influenciado suas ideias. Assim, o mundo islâmico pôde ter uma filosofia apropriada às suas condições sociais e seus princípios religiosos.
Filosofia Islâmica e Filosofia Moderna
Não poderemos discutir com profundidade a relação entre filosofia islâmica e filosofia moderna num simples artigo. Contudo, hoje temos plena ciência acerca da relação entre o pensamento medieval e a filosofia moderna, bem como da influência da filosofia islâmica sobre o pensamento medieval europeu, então como poderíamos ignorar a influência da filosofia islâmica sobre a filosofia moderna?
Neste estudo trataremos de alguns exemplos dessa influência. Provaremos que essa influência é tão forte ao ponto de se identificar uma familiaridade entre as duas escolas.
Resumidamente, a filosofia moderna se origina da consideração de duas questões essenciais:
1- a importância do aspecto experimental (empírico), que trata da matéria relacionando-se à realidade exterior
2- a especulação, que concerne às ciências racionais.
Assim, a experiência de Bacon por um lado, e a dúvida de Descarte por outro, têm sido temas de discussão e controvérsia na era moderna. Além disso, devemos dizer que muito tempo antes dos pensadores escolásticos e dos filósofos renascentistas, Bacon dedicou-se a esses dois tópicos.
Roger Bacon, a quem Renan chamou de “o verdadeiro príncipe do pensamento na Idade Média”, não se limitou a realizar experimentos no campo da química, ampliando o alcance de seus estudos até as ciências naturais. Então, se isso demonstra que Bacon teve contato com os trabalhos dos cientistas islâmicos, podemos concluir que a abordagem experimental, ou melhor a origem da experimentação durante a Renascença, foram produtos do pensamento islâmico, uma vez que os cientistas islâmicos eram então os únicos que utilizavam observatórios e laboratórios na descoberta de verdades científicas.
Quanto à dúvida cartesiana, há evidência de algo semelhante que a tenha precedido na Idade Média, e cremos que qualquer estudo sobre suas origens permanecerá incompleto sem que se tente descobrir isso na filosofia islâmica. Quem pode afirmar que a dúvida de Descartes não tenha sido total ou parcialmente influenciada pela dúvida de Al Ghazzali? Mesmo se descartarmos uma possível influência, ainda restará a similitude dos termos. O “cogito” de Descartes por exemplo, não foi inteiramente inspirado em Santo Agostinho e guarda muita semelhança à ideia do “Homem suspenso no espaço” de Ibn Sina.
Em suma, uma vez que os escolásticos cristãos e os filósofos judeus (da Idade Média) – foram muito ligados ao mundo islâmico da época – formam o elo entre a filosofia islâmica e a moderna especulação filosófica, a possível transferência ou permutação de ideias não deve ser desconsiderada.
De fato, seria exagerar na generalização, se tendo primeiro pesquisado o assunto, negássemos quaisquer ligações entre Ocidente e Oriente no que diz respeito a filosofia ou a especulação racional.
Está provado na atualidade que um intercâmbio de ideias existiu desde os tempos antigos, o qual foi renovado na Idade Média. O que, então fez essa conexão se romper nos dias atuais? Ideias ou opiniões não podem ser aprisionadas ou limitadas geograficamente.
Pontos de Vista da Filosofia Islâmica
Não pudemos encontrar qualquer exemplo de um estudo completo da filosofia islâmica, no oriente ou no ocidente, datado de antes do século XIX. A razão disso está na ênfase economicista ou política dos estudiosos daquele período, sempre que voltavam sua atenção para assuntos relacionados ao Oriente, desprezando os aspectos culturais. Se encontramos algum estudo desse gênero, seja do final do século XVIII ou do início do século XIX, em sua maior parte baseou-se em fontes latinas. Quanto aos orientais, estavam tão envolvidos em dificuldades econômicas e políticas naquela época, que não tiveram interesse algum em preservar sua cultura ancestral ou revitalizar a herança islâmica.
O Orientalismo
Na segunda metade do século XIX surgiu o interesse de pesquisadores europeus por temas islâmicos; alguns desses intelectuais formaram a vanguarda de um movimento que rapidamente se desenvolveu e atingiu seu ápice no primeiro quarto do século XX. Alguns deles viajaram para as terras do oriente e lá estudaram para melhor compreender a vida espiritual e intelectual daqueles povos.
Europa e América competiram na publicação de cultura islâmica. Escolas e colégios onde se estudava a cultura e as línguas orientais foram fundados em Paris, Roma, Londres e Berlim. Sociedades Históricas e Culturais formaram-se com o único propósito de pesquisar os vários aspectos da cultura islâmica. Periodicamente, seminários eram realizados pelos orientalistas, nos quais magníficas exposições e discussões tinham lugar. Ao mesmo tempo, jornais e obras acadêmicas especializadas no tema eram editados. Tais palestras e debates desfaziam a nuvem de desinformação esclarecendo a realidade.
Esse movimento orientalista teve bons resultados. Textos até então desconhecidos foram disponibilizados ao público. Manuscritos raros foram publicados. As inovações técnicas de edição e as notas explicativas entravam em uso; grande número de importantes obras das bibliotecas do mundo islâmico foram traduzidas para as línguas europeias.
A publicação dessas traduções estimulou o interesse sobre vários temas da civilização islâmica, tais como a política, a ciência, a filosofia, a exegese alcorânica, a história e a literatura; temas estes que receberam resumidas abordagens em artigos publicados nos jornais acadêmicos.
Tornou-se hábito para alguns intelectuais e pesquisadores dedicar muitos anos ao estudo de temas específicos, com o intuito de esclarecer detalhes. Essas longas pesquisas levaram a criação de grupos de especialistas sobre os variados aspectos da civilização islâmica. Assim, surgiram especialistas no idioma árabe, em literatura islâmica, no misticismo semita e também na ciência e na filosofia islâmica. Um dos frutos dessa especialização foi a Enciclopédia do Islam, publicada em francês, inglês e alemão.
A Enciclopédia do Islam é prova do vasto conhecimento sobre o tema reunido pelos orientalistas. Trata-se de uma valiosa fonte de informação, indispensável para qualquer pesquisador da cultura islâmica.
O mundo oriental também foi influenciado pelo trabalho dos orientalistas ocidentais. Os intelectuais do mundo islâmico adotaram muitos dos seus pontos de vista e traduziram várias de suas obras, tornando-se coparticipes na missão de reviver a glória da cultura oriental. Em muitos temas de estudo, esses intelectuais completaram o trabalho dos europeus, fornecendo informações importantes.
Os Orientalistas e a Filosofia
A filosofia não ficou de fora da tendência que citamos acima. Textos dos filósofos islâmicos, que haviam permanecido em sua forma original (em manuscritos), foram publicados. Essas versões originais foram comparadas com as traduções em hebreu e latim. O estudo das notas e comentários auxiliou imensamente no esclarecimento de dúvidas acerca do sentido preciso de alguns termos.
Sem os esforços dos orientalistas essas obras teriam permanecido em algum canto de uma biblioteca; e se eles não conhecessem várias línguas antigas e não tivessem empregado uma metodologia adequada, os trabalhos publicados não teriam sido reconhecidos.
O trabalho dos orientalistas europeus não foi apenas a publicação de livros; eles se empenharam em descobrir o vasto horizonte da vida intelectual do mundo islâmico. Por exemplo, eles escreveram sobre a história da filosofia, da teologia islâmica e do sufismo; descreveram as variadas seitas e escolas teológicas. Escreveram biografias, dicionários de termos científicos, e seus nomes tornaram-se ligados aos temas em que se especializaram. Como por exemplo, Nicholson (destacado intelectual, autor de obras sobre o Sufismo). Seria preciso bem mais do que um artigo para mencionar todos os orientalistas que se tornaram célebres e cujos nomes se identificam pela especialização da obra que produziram.
A despeito disso, a história da filosofia islâmica e as teses de seus principais pensadores permanecem pouco conhecidas, o que é uma lacuna na história intelectual da humanidade. Não sabemos ainda como surgiram esses filósofos e como suas obras se desenvolveram; como essa filosofia floresceu e entrou em decadência. Não contamos com dados suficientes que nos permitam avaliar até que ponto um determinado filósofo foi influenciado por algum antecessor e o quanto contribuiu com ideias originais.
A triste verdade é que os mais eminentes filósofos islâmicos permanecem estranhos em sua própria terra. A maioria dos orientais conhecem mais sobre Rosseau ou Spencer do que sobre Al Kindi ou Al Farabi. Se não fosse pela vontade de Deus que determinou a existência de um grupo de orientalistas, provavelmente nada saberíamos sobre eles.
Entretanto, o trabalho dos orientalistas foi bastante limitado para tratar adequadamente de um tema como a Filosofia. Ademais, suas obras contêm erros técnicos e outras deficiências. Talvez alguns desses autores não conheciam suficientemente bem o idioma árabe e a história da cultura islâmica. Existiram brilhantes exceções. Dois exemplos foram a tradução de “A Metafísica de Ibn Rushd”, de Van Der Bergh, e a “História da Filosofia Islâmica”, de De Boer.
Naturalmente, em virtude do tempo em que as obras dos orientalistas foram produzidas, uma revisão se faz necessária à luz dos novos conhecimentos históricos sobre o pensamento islâmico.
Não obstante a história dos esforços para reunir a herança da tradição islâmica date somente do princípio do século XIX, um grande progresso foi feito desde então e grande quantidade de material tornou-se disponível aos pesquisadores. Ainda assim, uma nova análise das fontes históricas é uma necessidade inegável.
O Caminho à Frente
Devemos continuar o curso que tomamos e descobrir esse elo oculto na corrente da história intelectual humana. Nossa tarefa é ir além dos orientalistas do passado. Não nos basta mencionar o nome ou a obra de algum grande pensador, devemos nos esforçar no sentido de reviver sua obra. Todas as nações dedicam-se na atualidade a publicar a obra de seus cientistas e pensadores.
O campo de nossa pesquisa é vasto e possui inúmeras oportunidades de estudo. O primeiro passo é reunir e publicar as obras dos filósofos islâmicos, as inéditas ou que foram publicadas de maneira insatisfatória. Eu digo isso porque, de fato, sem conhecer esses textos em sua língua original, não é possível conhecer a essência de seus ensinamentos.
Quando descobrimos que tratados escritos por Al Kindi se encontram nas bibliotecas de Istambul, ou que manuscritos das obras de Al Farabi estão dispersos nas bibliotecas de Londres e Paris, ou que o Shifa’, famosa obra de Ibn Sina, teve somente o primeiro volume publicado, percebemos a importância do trabalho ao qual nos propomos. É preciso mencionar que Ibn Rushdi é mais conhecido no mundo latino do que no mundo islâmico, e que orientalistas americanos têm publicado seus escritos.
A publicação destes textos leva muito tempo; será necessário que muitas pessoas e academias cooperem para a realização dessa tarefa. A universidade do Cairo adotou o projeto de reunir microfilmes de manuscritos e chegou a editar alguns deles. Infelizmente, talvez em razão da guerra, esse trabalho não continuou. Espero que a Universidade retome o projeto, que o Colégio de Alexandria se junte à iniciativa e que todas as universidades do Oriente Médio venham a participar.
Cabe um comentário aqui sobre as bibliotecas de Istambul: Nelas encontra-se a herança de quase sete séculos da cultura islâmica. Alguns dos textos de seu patrimônio são exemplares únicos. Um orientalista alemão recentemente encontrou preciosos volumes nessas bibliotecas, dentre os quais o “Maqalat al Ismayin” de Ash’ari, uma fonte importante no campo doutrinário islâmico. Desde a publicação dessa obra e do “Nihayat Al Aqdam” de Shahristani algumas opiniões que tínhamos sobre a teologia e os teólogos mudaram.
Eu não tenho dúvida de que nossos irmãos turcos têm consciência dessa valiosa herança, e se puderem publicá-las não deveriam hesitar em fazê-lo.
Além da publicação dessas obras também devemos nos dedicar à pesquisa e à discussão da obra dos filósofos islâmicos; é nossa obrigação conhecê-los tanto quanto conhecemos os filósofos não-islâmicos.
Eu espero que chegue o dia no qual escreveremos sobre Al Farabi da mesma maneira que hoje fazemos sobre Musa Ibn Maymun, e que tenhamos conhecido a obra de Ibn Sina como conhecemos hoje a de Tomás Aquino, e que discutamos sobre Al Ghazali como discutimos sobre Descartes. Neste dia poderemos dizer que a Filosofia Islâmica teve o merecido reconhecimento.