O Evento de Assaqifah – Uma Análise da Eleição do Califado

Em nome de Allah o Clemente o Misericordioso

Por: Ahmed Ismail

Os acontecimentos que tiveram lugar após a morte do Mensageiro de Allah (saas) têm sido exaustivamente analisados e devem ser levados em conta em toda tentativa de compreender a história da comunidade muçulmana nesses quatorze séculos. Não nos parece correta a opinião de alguns que, em virtude das discordâncias e das polêmicas julgam que o mais sensato seria silenciar sobre as questões incômodas. Por mais conveniente que tal opinião pareça para muitos, o fato é que, ao não se tentar compreender a história e as razões envolvidas nos acontecimentos incorremos num erro que, inevitavelmente serve aos interesses dos que “construíram” uma versão histórica que não corresponde a realidade.

O que comumente não tem sido compreendido por muitos, é que nenhuma comunidade ou sociedade pode encontrar seu rumo ou aprender a partir de sua própria experiência se não se dispor seriamente a conhecer sua própria história, reconhecer seus próprios erros e então estabelecer as bases para seu aprimoramento.

Grande parte dos muçulmanos de nosso tempo encontra muita dificuldade para entender que os graves problemas enfrentados pela comunidade islâmica mundial não nasceram do nada, nem são produto de uma série de infelizes acasos. Não percebem que ao recusarem analisar com seriedade sua própria história estão na verdade, fechando os olhos para não ver as coisas como são. Passado, presente e futuro não são compartimentos separados de uma existência. Não são como existências distintas. São pontos de uma mesma linha de causas e efeitos.

Alguns argumentam que, abordar as questões discordantes sobre os primeiros tempos do Islã não produz nada de bom e que, apenas, aprofunda a desunião entre os muçulmanos. A estes eu digo, que, muito ao contrário: somente com o estudo objetivo da história, tornando conhecido o argumento e a evidência histórica e então refletindo sobre tudo isso é que os muçulmanos sérios se livrarão daquilo que os desune. A Ummah que foi comissionada a procurar o conhecimento não deve se conformar a ignorância apenas porque esta lhe pareça “conveniente”. O objeto deste trabalho é a reunião de As Saqifah, na qual parte da comunidade muçulmana elegeu Abu Bakr como primeiro Califa, logo após o falecimento de nosso amado Profeta (saas). Para considerável parte dos muçulmanos os detalhes desse acontecimento permanecem envoltos numa aura de “explicações acabadas” que reduzem a questão a uma eleição formal, que deliberou a liderança da comunidade segundo a vontade da maioria.

Lembremos que a história em si, sem uma reflexão crítica, permite sempre uma “explicação definitiva”, assim, é a reflexão que proporciona a verdadeira compreensão dos fatos e é exatamente isso que esse trabalho propõe.

A oposição conceitual entre a Xia’h e Ahlul Sunna

A discordância sobre a questão do califado entre as escolas se assenta sobre diferentes concepções sobre a natureza desta atribuição.

A escola xiita, baseada na compreensão de determinadas passagens do Sagrado Alcorão e numa grande quantidade de narrativas fiéis, crê no Imamato como uma continuação da Profecia. Ao se encerrar o ciclo profético, a autoridade e a liderança sobre os muçulmanos foi delegada aos Imames e tal atribuição foi designada por Allah, o Altíssimo e comunicada pelo próprio Profeta (saas), o qual esclareceu a questão em diversas oportunidades, nomeando Ali Ibn Abu Talib como o primeiro Imam dos muçulmanos depois dele, e em seguida os demais Imames de sua Casa (as) numa linhagem direta. As atribuições do Imam englobam tanto os assuntos temporais (liderança política) como as questões referentes ao esclarecimento das leis divinas, da exegese do Alcorão e todas as possíveis situações em que não exista uma estipulação clara no Alcorão ou na tradição; em última análise, a liderança espiritual. Para tanto, o Imamato requer a condição da infalibilidade ou impecabilidade e do perfeito conhecimento acerca das questões da religião, esta condição de Mas’um é portanto, uma condição imprescindível ao Imam.

Os sunitas, a seu turno, concebem o imamato como uma posição de liderança temporal, desprovida de qualquer atribuição espiritual reconhecidamente especial. Portanto, a eleição de um Imam ou Khalifa, segundo Ahlul sunna, é uma questão passível da decisão (escolha) das pessoas, da comunidade ou de seus representantes. De acordo com essa opinião, não há um critério preciso ou global. Considera-se os métodos utilizados pelos primeiros califas como pauta para a eleição. De modo que mesmo o consenso não é condição sine qua non para a escolha de um Califa. Ahlu Sunna sustenta sua posição na negação de qualquer texto estipulante sobre os atributos do Imam ou de algo que demonstre claramente sua escolha como uma prerrogativa do Profeta (saas); também toma como base as ações dos companheiros do Profeta (saas) como critério, ou seja, o próprio fato da eleição em si, tal como foi realizada no caso de Abu Bakr e em seguida na escolha de Omar e no método adotado por este na designação de Othman, como “prova” da autenticidade de suas opiniões.

O evento de As Saqifah

Logo após o falecimento do Mensageiro de Allah (saas) um grupo de muçulmanos reuniu-se em As Saqifah, um local onde a tribo Khazraj costumava resolver suas diferenças, para deliberar sobre quem seria o califa da comunidade muçulmana. Ali, os Ansar (a comunidade de Medina) e os Muhajirin (os que haviam migrado com o Profeta (saas) de Makka) num clima de muita discussão iniciaram essa escolha. O fato foi narrado em diferentes partes e com base em muitos relatos, por princípio, julgamos que seja melhor tomamos por base o relato de um dos grandes sábios sunnitas, Ibn Abil Hadid, de modo a que não nos acusem de parcialidade sobre esse assunto.

Segundo Ibn Abil Hadid, a reunião se iniciou com o discurso de Sa’d Ibn Ubadah, o chefe dos Ansar. Este, que se encontrava doente, pediu a seu filho que transmitisse suas palavras aos demais. Sa’d Ibn Ubadah empenhou-se em destacar as qualidades dos Ansar, lembrando o apoio que prestaram ao Profeta (saas) e ao Islã, o que segundo ele, lhes garantia o justo direito da sucessão. Todos os Ansar concordaram prontamente e se mostraram inclinados a prestar seu voto de fidelidade a Sa’d Ibn Ubadah. Evidentemente, sabiam que os Muhajirin não aceitariam tal disposição e por isso, alguns sugeriram que se estabelecessem dois emires, um Ansar e um Muhajirin. Sa’d Ibn Ubadah, ao escutar essa proposta, disse: “Hadha Awualul Wahan” (Esta é a primeira fraqueza e derrota !).

A essa altura, Omar, informado sobre a reunião, dirigiu-se a casa do Mensageiro de Allah (saas) e encontrou Abu Bakr ali, enquanto Ali (as) estava ocupado em preparar o corpo do Profeta (saas). Omar e Abu Bakr prontamente saíram e se dirigiram rapidamente à reunião. Lá chegando, Abu Bakr tomou a palavra. Depois de um discurso em que exaltou as qualidades dos Ansar e ressaltou a condição de parentesco de Quraix com o Profeta (saas), Abu Bakr propôs a eles que escolhessem ou Abi Ubaidah ou Omar como Califa (os dois, Muhajirin) os quais segundo suas palavras “estavam ambos capacitados para o Califado e a liderança”.

Abu Ubaidah e Omar declinaram imediatamente a proposta e salientaram que ele (Abu Bakr) era mais apto para o califado. Argumentaram com base no acontecimento da caverna (no qual Abu Bakr estava com o Profeta (saas)) e numa ocasião em que este teria dirigido a oração no lugar do Profeta (saas). Ao ouvirem isso, os Ansar sugeriram que se estabelecesse um acordo que previa um rodízio do califado entre um Muhajirin e um Ansar.

Abu Bakr prosseguiu seu discurso do mesmo modo que o tinha iniciado e depois de elogiar os Ansar, novamente frisou que o direito do Califado era dos Muhajirin e que o cargo de Vizir seria dos Ansar, de maneira que nada fosse decidido sem uma consulta a eles.

Um homem dos Ansar, Hubbab Ibn Mundhir Ibn Jum’uh levantou-se e dirigindo-se aos demais reiterou as qualidades dos Ansar novamente conclamou-os a adotar seu próprio Emir, enquanto os Muhajirin escolhessem o seu. Omar o interrompeu de novo e frisou que o direito natural da sucessão cabia aos Muhajirin, desde que eram os parentes e o clã do Profeta (saas), e que quem quer que se opusesse a isso estaria se voltando contra a verdade.

Hubbab Ibn Mundhir se pôs de pé e dirigindo-se aos Ansar conclamou-os a fazer valer os seus direitos, direitos que, segundo ele, se baseavam no esforço no Jihad demonstrado por eles. Hubbab encerrou sua palavra ameaçando os que tivessem opinião contrária.

O clima de animosidade alcançava um ponto perigoso. Nesse momento, Bashir Ibn Sa’d Al Khazraji, percebendo que os ansar estavam prestes a dar seu voto de fidelidade a Sa’d Ibn Ubadah, e, apesar dele próprio ser um Ansar e do mesmo clã de Sa’d, motivado pelo espírito de rivalidade, conclamou os Ansar a dar o voto de fidelidade a algum dos quraixitas, tomando a mesma opinião expressa por Abu Bakr e Omar.

Então, Abu Bakr se levantou e repetiu: “Estes são Omar e Abu Ubaidah, dai o bai’ah a qualquer um dos dois!” Os dois imediatamente declinaram da oferta e disseram a ele que era a pessoa mais capacitada e em seguida disseram: “Estende tua mão para que te demos o bai’ah!” Assim que Abu Bakr estendeu a mão e eles já se preparavam para prestar o seu voto de fidelidade, Bashir Ibn Sa’d se aproximou e deu seu próprio voto de fidelidade a Abu Bakr antes deles. Quando Hubbab Ibn Mundhir viu isso, se dirigiu a ele gritando: “Ó Bashir! Que a maldição caia sobre ti! Juro por Deus que o que te induziu a isso não foi senão a inveja e a rivalidade que sentes por aquele de teu mesmo clã (Sa’d Ibn Ubadah)”. Em seguida, quando a tribo de Aus viu seu chefe Usaid Ibn Hudair, devido as mesmas razões, dar o seu bai’ah a Abu Bakr, eles também o fizeram.

Em seguida, foram à casa de Sa’d Ibn Ubadah que estava enfermo, e ele não deu o seu Bai’ah a Abu Bakr e tampouco o fez depois. Omar estava decidido a obrigá-lo, porém seus companheiros o aconselharam a não fazê-lo, pois isso certamente resultaria num conflito tribal. Sa’d jamais deu seu bai’ah a Abu Bakr; não participava das orações em comunidade e nem considerava seus juízos. Provavelmente se tivesse companheiros que o apoiassem ele os teria combatido. De fato, a maioria dos que estavam presentes em As saqifah deram seu bai’ah a Abu Bakr naquele dia. Omar e Abu Ubaidah foram ter com o clã Umayyah e os intimidaram dizendo: “Levantem-se e jurem fidelidade, pois a gente dos Ansar e todos já o fizeram!”

É fato conhecido que, Omar, acompanhado de outros líderes, dirigiu-se a casa de Fátima (as) na tentativa de convencer Ali (as) e a Bani Hashim a dar seu bai’ah a Abu Bakr. Ali (as) disse: “Eu sou mais digno do califado do que vós. Não darei o bai’ah e seria melhor que o desseis a mim. Tomastes o califado dos Ansar e argumentastes com base no parentesco que tendes com o Enviado de Allah dizendo-lhes: “Devido ao fato que somos mais próximos ao Profeta e somos seus parentes, somos mais dignos ao califado do que vós”. E eles também, fundamentados sobre o mesmo, vos concederam a Liderança e o Imamato. Eu também, argumento agora, respaldando-me na mesma preeminência e características com que arguistes os Ansar. Então, se é que temeis a Allah, agi com justiça e aceitai para mim o mesmo que aceitaram os Ansar para vós, de outro modo, estareis caindo na tirania e na opressão conscientemente”.

Omar tinha a intenção de mesmo forçá-lo a prestar fidelidade. Contudo, diante de sua posição irredutível, Abu Bakr disse a Ali (as): “Se não queres prestar fidelidade, não te obrigarei”.

Abu Ubaidah dirigindo-se a Ali (as) tentou convencê-lo de sua opinião de que Abu Bakr seria mais capacitado para a liderança. Ali (as) disse: “Ó Muhajirin! Tende em conta a Deus e não translades o direito da liderança de Mohammad de sua casa às vossas e não afasteis a sua família de seu direito e posição sobre o povo; juro por Deus, ó grupo de Muhajirin, que nós, Ahlul Bait (Gente da Casa), somos mais adequados para a Liderança que vós! Acaso não há entre nós um leitor do Livro de Deus, um sábio da religião de Deus, conhecedor da tradição do Enviado de Deus, e alguém que possa fazer chegar esta carga a seu destino? Juro por Deus que essa pessoa é de nós! Não sigais as paixões de vosso ego, que vos afastareis da verdade!”

Bashir Ibn Sa’d disse: “Se os Ansar tivessem escutado tuas palavras antes de jurar fidelidade a Abu Bakr, ninguém teria se oposto a ti, porém agora o que se pode fazer, quando eles já deram seu bai’ah?”

Ao analisarmos esta narrativa, em cada uma de suas passagens surge uma série de considerações importantes:

1. Os argumentos de reivindicação

Os grupos e indivíduos presentes em As Saqifah pleitearam o direito de sucessão com base em argumentos bastante discutíveis. Se considerarmos a posição do Imam como uma posição de continuação da autoridade espiritual, tal como os xiitas a declaram, nenhum dos presentes em As Saqifah se encontravam em condições para reivindicá-la, mesmo se o direito a sucessão não tivesse sido previamente explicitado pelo próprio Profeta (saas) em inúmeras ocasiões, segundo o que vasta quantidade de tradições registradas nos livros sunitas e xiitas atesta, ou seja: a primazia de Ali Ibn Abu Talib (as) à sucessão.

De fato, a prévia condição de possuir pleno conhecimento da religião e da Shariah, era uma condição que ninguém do grupo ali reunido possuía. Isso sem mencionar as demais condições referentes a posição do Imam, tal como a requerida posição de Mas’um (infalibilidade).

Os argumentos apresentados tanto pelos Ansar como pelos Muhajirin se relacionavam a qualidades e distinções subjetivas, que por si só levariam uma pessoa sensata a perguntar: “Ora, apoiar o Profeta (saas), lutar pelo Islam com bravura, não são acaso obrigações dos crentes?”. Ou a perguntar: “O laço familiar ou tribal é por si uma garantia de direitos?”. O que estava por trás dessas argumentações era um flagrante espírito partidário que buscava uma espécie de “direito natural”. Uma lógica que só encontrava razão de ser no período pré-islâmico. A mesma mentalidade tribal da Era da ignorância demonstrava estar ainda viva em seus corações, e os impossibilitava de compreender o verdadeiro caráter da posição de Liderança que estava em jogo. Dentro de tal mentalidade partidária, não poderia aquela reunião resultar em coisa alguma senão o embate das rivalidades e uma acomodação de interesses.

2. A validade da representação

O grupo que deliberou em As saqifah , ao contrário do que se diz , estava longe de representar o conjunto dos muçulmanos. Estavam ausentes grande parte dos Muhajirin, a tribo de Bani Hashim, Bani Umayyah, Bani Zuhrah, os companheiros de Badr , os emigrantes da Etiópia, Ammar, Salman , Miqdâd, Talhah, Abdullah Ibn Mas’ud, Ubayy Ibn Ka’b e naturalmente toda a família do Profeta (saas).

Como se pode então afirmar que a decisão foi consensual e participativa?

Abu Bakr, na realidade, foi escolhido por apenas cinco votos : o de Bashir Ibn s’ad, o de Usaid Ibn Khudair ( da tribo de Aus), o de Omar, o de Abu Ubaidah e o da tribo Khazraj.

Ademais, como os próprios sunitas escreveram, pessoas com antecedentes e valor no Islã , como Talhah, Zubair, Miqdãd, Salman , Ammar , Abu Dharr, Khalid Ibn Sa’id , Abbas Ibn Abdil Muttalib, Sa’d Ibn Abi Waqqas, Barâ Ibn âzib e outros , não deram o Bai’ah ( e só o fizeram depois , por razões diversas).

3. A argumentação do direito de Abu Bakr

Ainda nos limitando ao ocorrido em As Saqifah, nos deparamos com um raciocínio bastante superficial que resultou na eleição de Abu Bakr. Segundo a argumentação de Abu Ubaidah e Omar, aceita pelos que deram seu bai’ah, três características eram suficientes para que Abu Bakr fosse eleito, segundo suas palavras: “…Não nos adiantaremos a ti, e tu és o melhor dos Muhajirin, tu foste o Çaini Içnain (o segundo entre dois) e dirigiste a oração em lugar do Profeta…” Uma quarta característica é também mencionada em apoio a escolha de Abu Bakr, a que ele seria o primeiro dos homens a abraçar o Islam.

O primeiro argumento é puramente subjetivo. Basta uma pesquisa séria nos livros de história sunitas para encontrarmos centenas de narrativas confiáveis atribuídas ao Profeta (saas) sobre as qualidades de Ali (as) num número consideravelmente maior do que a qualquer outro companheiro. Muitos outros companheiros também tiveram suas qualidades destacadas pelo Profeta (saas) em diversas ocasiões, de modo que mesmo que não se reconheça a excelência de Ali Amr ul Muminin (as), fica muito difícil concluir uma condição de destaque para Abu Bakr. Quando Abu Ubaidah e Omar expressaram “Tu és o mais adequado para o Califado” estavam expressando sua opinião e nada mais do que isso. Opinião que naquela circunstância não poderia ser tomada como “palavra decisiva”. As pessoas opinam segundo suas inclinações e intenções e o partidarismo estava claramente influenciando a opinião emitida.

Sustentar uma opinião definitiva de que Abu Bakr seria o melhor dos companheiros e, portanto, o mais capacitado para o Califado se tornou no decorrer dos tempos de tão difícil comprovação que, um grupo de sábios sunitas adotou a teoria de que o direito ao califado caberia a Abu Bakr com base na salvaguarda dos interesses muçulmanos. Segundo estes, seria permissível que o menos virtuoso assumisse a autoridade sobre o mais virtuoso por uma conveniência das circunstâncias. Outro grupo, porém, se aferra a uma crença estabelecida (que não encontra qualquer base à luz da tradição corretamente comunicada) de que Abu Bakr seria a melhor pessoa depois do Profeta (saas), Omar depois dele, então Othman e por fim, Ali (as). Trata-se de uma mera convenção simplista que serve muito bem como uma justificativa para um assunto incorreto e que, ao nosso ver, não merece consideração.

O segundo argumento se baseia no acontecimento da caverna, quando Abu Bakr esteve ao lado do Profeta (saas) quando os descrentes de Quraix estavam no encalço deles, com a intenção de matá-los. Ali (as) também arriscou sua vida, tomando o lugar do Profeta (saas) em seu leito, enquanto este e Abu Bakr saíram durante a noite, sem que os seus perseguidores pudessem vê-los. Sem que haja qualquer necessidade de avaliar uma ou outra situação, o que também seria uma avaliação subjetiva, dizemos que um ato de bravura por si só não capacitaria a nenhuma pessoa ao direito da Liderança. Novamente, foi a opinião de Omar e Abu Ubaidah sendo aceita sem uma correta reflexão.

O terceiro argumento se refere ao fato de que Abu Bakr tenha dirigido a prece no lugar do Profeta (saas). Mesmo se não houvesse qualquer dúvida sobre se o próprio Profeta (saas) ou uma de suas esposas tenha dado a autorização disso a Abu Bakr, devemos lembrar que o Profeta (saas) continuamente designava a outros para suas funções (inclusive a direção da prece) quando se encontrava em viagem. A história registra perfeitamente o nome dessas pessoas, assim, não nos parece lógica a linha de raciocínio que tenha definido Abu Bakr como sucessor, com base nesse requisito. É interessante que, se supormos que Abu Bakr tenha recebido a designação da parte do Profeta (saas) para que dirigisse a prece, tal fato não poderia, segundo a opinião sunita, ser tomado em si como uma evidência nem da capacidade tampouco do direito de sucessão. Como é sabido, segundo a opinião sunita, para que alguém seja imam na oração coletiva, não há outra condição senão o conhecimento básico da recitação correta e das normas do Sallah. Opinião que sequer considera absolutamente necessário que seja um imam justo.

Quanto a argumentação da “precedência na fé” que permeou o discurso de Abu Bakr, Omar e Abu Ubaidah e que por fim, tornou-se uma razão que para muitos respaldava a opinião do direito de Abu Bakr, substancial quantidade de narrativas mutawatir (cadeias de transmissão diversificadas) asseguram que Ali Ibn Abu Talib (as) foi o primeiro dentre os homens a crer na mensagem de Mohammad (saas) como o próprio Profeta (saas) disse a Fátima Az Zahrah(as): “Te casei com alguém que precedeu a todos os companheiros no Islam, na obediência e no conhecimento”.

Somente com uma deliberada tentativa de ignorar a imensa quantidade de evidências em narrativas, é possível duvidar da existência de uma recomendação oral do Mensageiro de Allah (saas) quanto a Ali Amr ul Muminin (as) para a liderança dos muçulmanos após sua partida deste mundo. Tais narrativas registradas tanto nos compêndios sunitas como nos xiitas têm sido citadas como fiéis mesmo por muitos sábios e historiadores sunitas. Um exemplo disso encontramos na exegese do versículo: “Ó crentes, obedecei a Deus, ao enviado e as autoridades fundamentais entre vós…” de Al Mujáhid, este sábio diz: “Deus confiou o assunto da wylayah e a condução da Ummah depois do Profeta (saas) a Ali Ibn Abu Talib, e quando o Profeta (saas) o deixou em seu lugar em Medina, Deus ordenou ao povo que o obedecesse e não se opuseram”.

Como vemos, a determinação da autoridade e da liderança de Ali (as) não foi explicitada apenas em Ghadir khum (se bem que nesta ocasião tenha sido testemunhada por uma grande multidão) e de certa maneira era conhecida por uma considerável parte dos muçulmanos.

Por outro lado, a questão do direito da sucessão tem sido por quatorze séculos objeto de discussão, e jamais algum investigador pôde justificar o califado de Abu Bakr por meio de alguma estipulação do Profeta (saas). As únicas razões para que os sábios sunitas defendam tal direito se baseiam unicamente na bai’ah dada pelos Muhajirin e pelos Ansar em As Saqifah. O próprio Abu Bakr, por meio de suas palavras nesta reunião, evidenciou a inexistência de qualquer estipulação oral ou escrita. Se assim não fosse não teria dito: “Me compraz qualquer um destes dois homens (para o califado e a liderança).” Caso o Profeta (saas) tivesse estipulado seu direito, jamais teria ele se apoiado em justificativas sem fundamento e teria sim, dito: “Ó povo, em tal ano e em tal dia, o Profeta me designou califa dos muçulmanos…” De modo algum teria proposto o califado para Omar ou Abu Ubaidah. Ademais, At Tabari em seu Ta’rikh (t.3 p. 234) transmitiu de Abu Bakr que em seu leito de morte tenha dito que “quisera Deus que tivesse perguntado ao Profeta (saas) a quem pertenceria o califado.”

Considerações finais

Não resta dúvida que a questão do califado foi decidida erroneamente e que esse erro produziu divergências e prejuízos irreversíveis aos muçulmanos. A constatação de que foi um erro não é uma mera opinião dos xiitas, esta constatação foi declarada pelos próprios responsáveis tal como foi registrado por sábios sunitas. Omar, no tempo de seu califado disse: “Por certo que a Bai’ah a Abu Bakr foi um erro, que Deus nos guarde de seu mal. Se alguém voltar a (realizar) algo similar eu o matarei!”

O próprio Abu Bakr, tal como narrou Ibn Abil Hadid, se apresentou diante de Ali (as) e Bani Hashim e entre outras coisas disse: “Certamente a Bai’ah a Abu Bakr (ou seja, a ele mesmo) foi um erro, que Deus nos preserve de seu mal…”

Diante de semelhantes constatações, não nos parece possível defender a decisão tomada em As Saqifah por qualquer outro argumento. Não apenas a decisão, mas também a própria reunião foi imprópria. O comportamento mais correto e justo teria sido priorizar o funeral do Profeta (saas); o que nos leva a crer que o propósito de defender interesses partidários induziu-os a precipitação.

Quanto ao direito de Ali (as) ao Califado, há uma abundância de indícios e evidências nos livros sunitas e xiitas que não deixam qualquer dúvida da ciência disso por uma grande maioria dos companheiros. O sábio sunita Az Zubair Ibn Bukar atesta isso em seu livro “Al Muwaffaqiat” dizendo: “A generalidade dos Muhajirin e grande parte dos Ansar não tinham dúvidas que Ali era o possuidor da autoridade depois do Enviado de Allah”.

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