Por Ahmed Ismail
O fenômeno do sectarismo sempre se fez presente na história das grandes tradições religiosas. Por diversas razões e transformações históricas, sociais e políticas o surgimento de seitas e cismas religiosos sempre refletiram conflitos ideológicos e tendências desenvolvidas nas sociedades, tendências estas que se manifestavam como sintomas das mudanças pelas quais as sociedades e as culturas passavam. O sectarismo e o pensamento sectário não se restringem ao âmbito da religião, existem com a mesma intensidade no pensamento político, e esse sectarismo, quer seja religioso ou político, possui características bastante evidentes que o definem como tal.
O objetivo deste trabalho é realizar uma análise do sectarismo religioso especificamente no mundo moderno; em vista da complexidade do assunto. Pretendemos pois, possibilitar ao leitor um correto discernimento sobre o que seja seita e pensamento sectário e em que medida isso possa ser compreendido, desfazendo-se as muitas interpretações confusas que tomam as seitas como se fossem as tradições religiosas que professam.
Religião ou seita?
É comum para a maioria das pessoas o sentimento de incompreensão e certo assombro diante da babel moderna que a questão da religiosidade parece ter se tornado na atualidade. O número crescente de organizações religiosas e seitas que se auto intitulam “religião” parecem mais confundir e criar maior incredulidade aos mais sensatos. De fato, muito pouco do que se apregoa como “tradição religiosa” se sustenta sobre um fundamento histórico convincente. Grupos sectários surgidos a apenas alguns séculos e mesmo há algumas décadas reivindicam pretensiosamente “autoridade espiritual” e se colocam como “portadores” dos fundamentos religiosos milenares desta ou daquela tradição religiosa. Os princípios para definir Religião (ou tradição religiosa) e seita se baseiam em alguns pontos principais:
É amplamente aceito que as tradições religiosas fundamentadas se estabeleceram no mundo através de milênios no mundo antigo e se originaram de duas principais fontes:
a) O ramo da revelação – as tradições monoteístas como o Zoroastrismo, o judaísmo, o cristianismo e o Islam. Nesse ramo, o fundamento da tradição provém de um ou de muitos profetas e mensageiros e possuem escrituras divinamente reveladas.
b) O ramo místico-filosófico – que se fundamenta num conjunto de crenças desenvolvidas através da experiência mística ou filosófica de seus fundadores, como no caso do hinduísmo, budismo, confucionismo entre outras.
A religiosidade milenar, entretanto, possui uma terceira fonte ligada às práticas mágicas, de origem na relação dos povos primitivos com as forças naturais, tais como o animismo (cultos como o candomblé ou o xamanismo), os rituais politeístas dos muitos povos do mundo.
Em todas as épocas, seitas surgiram a partir dessas tradições, em muitos casos mesclando-as ou adaptando-as a culturas e crenças locais. No caso específico das seitas cristãs modernas (surgidas após a idade média), a primeira carência histórica é a ausência de uma continuidade ou tradição documentada ou linhagem estabelecida e conhecida de discípulos, que as ligue de algum modo à fonte que dizem representar (fenômeno semelhante também ocorre no Extremo Oriente com as seitas de inspiração budista). Isto é, não há qualquer prova aceitável de que os dogmas, princípios teológicos ou práticas dessas seitas sejam os mesmos dos contemporâneos do profeta ou fundador da tradição religiosa milenar que reivindicam. Muito ao contrário, no caso das seitas surgidas nos últimos quinhentos anos no ocidente, existe uma abundância de evidências históricas que nos possibilitam rechaçar qualquer conexão entre elas e a fontes tradicionais da religião.
Definindo a tradição religiosa milenar no ramo da revelação (monoteísta) podemos dizer que:
1. Se estabelece a partir de uma revelação divina de uma escritura a um profeta ou mensageiro.
2. Esse profeta ou mensageiro possuía as qualidades espirituais, morais e intelectuais reconhecidamente superiores, suas biografias sendo absolutamente coerentes com a mensagem que anunciavam.
3. Esses profetas e mensageiros estiveram ligados por uma linhagem espiritual (corrente profética) em que confirmavam o que havia precedido e o que havia sido revelado anteriormente e, anunciavam o próximo, de maneira que as suas mensagens e doutrinas não se contradiziam entre si.
Assim, temos o ramo monoteísta abraâmico: a tradição judaica, a tradição cristã e a tradição islâmica.
O que pode ser chamado de divisor de águas entre a tradição religiosa milenar, fundamentada num profeta e numa revelação, e as muitas seitas hoje existentes, é o conjunto de fatores históricos e sócio-políticos que atuaram sobre essas tradições no decorrer dos séculos.
Nos limitando apenas às três tradições monoteístas abraâmicas percebemos que esse fenômeno das seitas ocorre no cristianismo de modo bem diverso do que no Judaísmo e no Islam.
O sectarismo no Judaísmo e no Islam
Muito embora o fenômeno sectário tenha se verificado nas tradições judaica e islâmica, este permaneceu quase imperceptível e com quase nenhum efeito no conjunto central das crenças e fundamentos da religião. Na verdade, o sectarismo nessas duas tradições surgiu mais das divergências teológicas dos sábios, sem que isso significa-se uma ruptura, um cisma que resultasse numa divisão e descaracterização da religião. No caso do judaísmo, é plenamente conhecida a existência de diversos grupos sectários já na época de Jesus (as), que mantinham certo grau de tolerância mútua. Mesmo os grupos mais ortodoxos e sectários não encontram nenhuma base teológica para que pretendam uma ruptura do conjunto da tradição judaica.
O sectarismo no Islam, tem uma conotação muito diferente do que a que existe no ocidente cristão. Sunitas e xiitas, ainda que tenham divergências e diferentes concepções, comungam do mesmo conjunto essencial de fundamentos da fé, o mesmo Livro Sagrado e são ambos historicamente ligados (por uma linhagem histórica conhecida e documentada) que remonta aos primeiros tempos, aos contemporâneos e ao próprio Profeta (saas).
A existência de ao menos cinco escolas tradicionais de jurisprudência reflete o modo como as divergências se assentaram, sem que com isso se admitisse cismas ou a descaracterização dos fundamentos e princípios da religião. Nesse caso, grupos sectários que surgiram depois, permaneceram restritos e não encontraram qualquer base lógica aceitável para reivindicar a mesma ligação às fontes tradicionais. Tais grupos no Islam, tendem a surgir e desaparecer, sendo perfeitamente reconhecidos como “inovadores” e portanto “heréticos” sendo desacreditados tanto por sunitas ou xiitas esclarecidos.
O sectarismo na cristandade
O sectarismo na tradição cristã se manifestou e se manifesta de modo inteiramente diferente. Se nos primeiros tempos esse fenômeno se assemelhou ao que aconteceu nas tradições judaica e islâmica, ou seja, se restringiu às divergências teológicas e as diferentes fontes da tradição, posteriormente, marcada por um importante fator histórico e político, a comunidade cristã se viu afundada num terrível cisma.
A igreja proveniente de Paulo, que nos primeiros tempos era apenas mais um dos grupos dispersos de cristãos, pouco a pouco se tornou predominante. Profundamente influenciada pelo pensamento grego e num processo constante de aproximação com o poder romano, chegou ao terceiro século como uma força política que foi capaz de esmagar os grupos que se opunham às suas doutrinas. O cristianismo primitivo, inteiramente “oriental”, apoiado na tradição judaica, foi sendo descaracterizado sob o estigma de “judaizante”.
De um conflito de séculos emergiu um “cristianismo renovado” greco-latino, centrado mais nas autoridades eclesiásticas do que na palavra revelada. Esta, foi reinterpretada à luz do pensamento helênico, todos os escritos antigos foram sendo destruídos e seus seguidores entregues a perseguição. Assim, a linhagem histórica que remontava aos apóstolos e aos primeiros seguidores foi apagada ou assumida apenas pela Igreja oficial, que se apresentava como única e verdadeira herdeira de Cristo, através de Pedro e Paulo, herança da qual, segundo a igreja, a linhagem papal é a autêntica expressão.
Entretanto, essa linhagem histórica pretendeu-se revestida de uma autoridade que significava o “direito” de “re-interpretar” os dogmas fundamentais e criar novos dogmas e fundamentos. Do mesmo modo, no decorrer dos séculos os vários textos canônicos (aceitos como inspirados pela igreja) que hoje compõem a Bíblia, sofreram as mais diversas interpolações, omissões e erros até que fossem compilados na Vulgata Latina.
Quando muitos séculos mais tarde ocorreu o cisma protestante, não havia mais qualquer possibilidade de refazer uma linhagem histórica confiável que pudesse assegurar um retorno às verdadeiras raízes do cristianismo. Uma total ausência de documentos ou tradição oral fidedignas que pudessem reconectar os cristãos aos verdadeiros ensinamentos dos apóstolos e do próprio Jesus (as). Ainda assim, os grupos protestantes da época tentaram ao menos desfazer muitas das falsas crenças e práticas inovadoras que o clero católico havia por séculos imposto à fé. Logo, divergências entre esses grupos também surgiram e concomitante, a perseguição da igreja.
Uma outra lacuna surgia: a autoridade espiritual. Desde que não se aceitava mais a figura do Papa como detentora da autoridade definitiva, surgia então a necessidade de um argumento que calasse os opositores. Assim, o fenômeno da “reivindicação da revelação” foi revivido entre os cristãos. Em diversos pontos da Europa, movimentos religiosos supostamente “inspirados” começaram a propagar suas doutrinas de retorno ao cristianismo verdadeiro, caracterizados pelo sectarismo ferrenho. Muitos desses grupos foram perseguidos e destruídos pelas autoridades nos países aliados à Igreja romana e outros. Quando do início da colonização da América, emigraram e sobreviveram, deitando sementes na América do Norte.
O fenômeno das seitas cristãs, tal como o conhecemos na atualidade, surgiu desse momento histórico. Quase todas as denominações de seitas evangélicas conhecidas provém de divisões ou subdivisões das principais correntes cismáticas protestantes do século XVII e XVIII. Após a chegada dessas comunidades protestantes na América do Norte, gozando de uma liberdade de culto desconhecida na Europa, sucessivos movimentos revivalistas que reivindicavam a “pureza doutrinária” surgiram. A “profecia” e o messianismo ganhavam novas e mais estranhas formas.
O século XIX, foi especialmente pródigo no surgimento de novas seitas na América. Isso se explica pelas profundas mudanças no mundo ocorridas no decorrer desse século. As descobertas científicas, a revolução industrial, a crise da religião e o fortalecimento do pensamento materialista, sobretudo na Europa. De fato, a proliferação de seitas e o próprio sectarismo (ou fundamentalismo) são fenômenos profundamente ligados às mudanças e crises nas sociedades.
Esse “novo mundo” que se descortinava, desde as grandes descobertas e o renascentismo, e que se caracterizava por uma série de consistentes desafios ao pensamento cristão. Um novo mundo em que os estados laicos se fortaleciam se desvencilhando da autoridade da igreja e que a ciência ousava pôr em cheque os dogmas da tradição judaico-cristã, novo mundo que surgia com a revolução industrial e a consequente revolução urbana que alterava o modo de vida estabelecido por séculos.
Esse “Novo mundo” que surgiu no decorrer do século XIX teve grande influência nas manifestações sectárias no seio do mundo cristão.
Na Europa, as pesquisas científicas e o interesse das elites pelo misticismo e ocultismo produziram seitas e ordens secretas bizarras que se pretendiam representantes de uma espécie de sincretismo entre o cristianismo e as crenças orientais. Outro produto dessa época, que reflete mais a tentativa de reconciliação entre religião e ciência é o chamado kardecismo. Este, apresentava uma doutrina bastante aceitável para a burguesia da época, uma doutrina que se afirmava “científica” e propunha-se ao mesmo tempo a responder as questões espirituais e refutar a ortodoxia católica e protestante.
Porém, essas seitas e ordens que se organizaram nesse período na Europa não se caracterizavam por nenhum tipo de “fundamentalismo”, uma boa parte delas (ainda existentes) parece mais propor um tipo de “ecumenismo”. Podemos dizer que essa manifestação sectária foi um produto natural de um mundo que não estava mais fechado em si mesmo, isto é, com o contato entre as diversas culturas e religiões, entre o ocidente e o oriente, que se verificou a partir do séc. XVI e que se intensificou nos séculos subsequentes com o imperialismo europeu; com a decadência da Igreja Romana e a onda de materialismo científico esses grupos, seitas e novas doutrinas ocupariam desde então um lugar na religiosidade do ocidente.
Na América, a reação sectária foi muito diversa. Os muitos grupos tipicamente “fundamentalistas” oriundos da Europa, que ocupavam o território americano sob “um propósito messiânico” o qual, desconhecia qualquer direito indígena sobre aquela terra; de fato, para a maioria dos colonizadores protestantes “Deus estava lhes dando a terra e o que se faria com os índios não lhes interessava” o que se seguiu é bem conhecido e só terminou quando no final do século XIX as nações indígenas estavam quase que totalmente extintas. Do ponto de vista sectário, os acontecimentos na Europa acirraram sobremaneira o messianismo e o fundamentalismo.
Muitas das seitas cristãs surgidas nesta época, como os Adventistas do Sétimo Dia, os Testemunhas de Jeová, as muitas sub-seitas do Pentecostalismo Reavivado e a Igreja de Mórmon se caracterizam por esse “clima de fim dos tempos” onde o profetismo, seja por um fundador ou como um dom coletivo assumia “a autoridade espiritual”.
Não nos parece necessário nos aprofundar nos detalhes e nuances das crenças de cada um desses grupos, apenas vale destacar que embora firmemente ancorados “numa interpretação literal dos textos bíblicos” essas seitas se coadunam a uma visão de mundo fundamentada no exercício do poder temporal, que se traduz no sistema capitalista moderno, e cada um desses grupos a sua maneira, vê na nação americana o paradigma da nação da bem aventurança, escolhida por Deus para se tornar “a nova Jerusalém”.
Assim, essas seitas, que em sua ainda curta história já se dividiram em diversos outros ramos e grupos cismáticos, surgiram como um produto direto das muitas mudanças sociais e econômicas no mundo ocidental da segunda metade do século XIX; mais propriamente da ascensão americana como força mundial e da própria lógica capitalista.
A Reivindicação da Profecia
Antes de analisarmos a suposta autoridade que as seitas reivindicam, lembremos de modo sucinto o conjunto de definições de religião e seita:
Religião (no ramo monoteísta) é:
– Uma tradição originada de uma revelação a um profeta reconhecido e testificado pela história antiga, devidamente inserido numa linhagem profética (anunciado por um anterior) a quem tenha sido revelado uma escritura divina.
– Possui um conjunto definido de leis e fundamentos.
– Possui, como tradição milenar, uma conhecida linhagem histórica conservada e conhecida de geração em geração que assegura sua correta coerência com os primeiros seguidores e com o próprio Profeta.
Seita é:
– Um grupo originado de um cisma dentro de uma comunidade ou tradição religiosa, quer seja por uma divergência teológica ou pela reivindicação de autoridade espiritual por parte de um líder, que em geral se assume como profeta ou inspirado divinamente.
– Possui um conjunto nem sempre definido de leis e fundamentos, ou apenas reproduz esse conjunto a partir da inferência de textos tidos como sagrados.
– Não possui uma linhagem histórica conservada ou conhecida, quer seja documental ou oral, que assegure sua ligação com os primeiros seguidores ou com o profeta da tradição religiosa que dizem pertencer.
A questão da reivindicação da Profecia tem sido o ponto principal da argumentação das diversas seitas em todas as épocas. De modo geral, os fundadores de seitas (que se intitulam igrejas ou denominações) ou novas doutrinas, sustentam a sua “autoridade espiritual” para isso ou numa suposta revelação ou numa inspiração divina pessoal, ou mesmo coletiva (como no caso do pentecostalismo). Ainda segundo o que creem, tal revelação ou inspiração os capacita a interpretar os textos sagrados da maneira correta, o que justifica a separação e a fundação de uma nova “religião”.
Embora essa questão num primeiro momento pareça pertencer ao campo da fé ou da subjetividade, felizmente não é assim. Deus Altíssimo, cuja sabedoria é perfeita e conhece o coração do homem melhor do que ele próprio, não deixaria em aberto ou sem um possível discernimento uma questão de tão grande importância. Mesmo nos livros sagrados anteriores Allah, Exaltado Seja, legou aos seus profetas e mensageiros orientações precisas para discernir o verdadeiro do falso profeta, e a própria sucessão das revelações divinas e das leis temporárias que culminaram com a revelação e a lei definitiva do Alcorão Sagrado, demonstram essa orientação racional que não pode ser refutada.
O primeiro ponto de discernimento é a Linhagem Profética, como sabemos, a fé monoteísta que primeiro foi legada a Adão (as), no que chamamos a era adâmica, teve um segundo ciclo antediluviano em que foi legada a Noé (as), e seu terceiro ciclo, a era abraâmica, em que a fé monoteísta foi legada a Abraão(as). Deste, a corrente profética foi estabelecida em dois ramos de sua linhagem abençoada: a linhagem de Isaac (as), Jacó (as), os muitos profetas de Israel até a vinda do Messias Jesus (as); e a linhagem de Ismael (as) que se estendeu até a vinda do Profeta Mohammad (saas), selo da profecia.
De Adão (as) até Mohammad (saas), a tradição fiel afirma que Allah, o altíssimo enviou ao mundo 124.000 profetas e mensageiros. Embora não nos tenha chegado o nome de cada um deles, é perfeitamente aceitável que as suas linhagens estiveram de algum modo interligadas em todos os ciclos históricos do mundo antigo, tal como Mohammad (saas) a Abraão (as) ou Jesus (as) a Abraão (as). Ademais diz Allah, o Altíssimo no Alcorão:
“Deus preferiu Adão, Noé, a família de Abraão e a de Imran, aos seus contemporâneos, família descendentes umas das outras…” (C.3 – V.33 e 34)
Atestando assim o elo espiritual e genealógico de todos os patriarcas, todos os mensageiros e profetas enviados por Allah.
O segundo ponto de discernimento se fundamenta nas características distintivas dos profetas e mensageiros, características que são aceitas como inquestionáveis a partir da própria análise racional da missão a eles confiada por Allah. Ora, em sua suprema sabedoria, Allah não escolheria dentre os humanos, senão os melhores deles; e não confiaria suas mensagens divinas senão a homens de elevada condição espiritual, isentos da desonestidade, da mentira, da malícia, das torpezas de caráter e de todas as outras deformidades morais. Tampouco o faria se tais homens pudessem incorrer em rebeldia, corrupção ou traição a Palavra e a lei divina, do contrário a fidelidade da comunicação estaria seriamente comprometida.
Portanto, as difamações a alguns dos profetas que são citadas nos textos bíblicos modernos não merecem nenhum crédito por parte de quem tema a Allah, tratam-se de flagrantes adulterações inseridas nos textos por hipócritas e inimigos da verdade.
Assim, as características e a honra de todos os mensageiros e profetas enviados por Allah é, por si só, um ponto de distinção entre eles e os muitos reivindicadores da profecia que surgiram séculos depois. Nenhuma biografia desses supostos “servos de Deus” em nada se aproxima do modelo dos verdadeiros profetas.
O terceiro ponto de discernimento nessa questão é a ausência de contradições entre as mensagens divinas reveladas aos verdadeiros profetas e mensageiros. Pode-se dizer sem qualquer sombra de dúvida, que a mensagem essencial de Moisés (as) foi a mensagem essencial de Abraão (as), assim como a mesma de Jesus (as) ou de Mohammad (saas) e assim foi com todos os profetas e mensageiros da corrente profética. Todos eles predicaram a mesma e única religião monoteísta, em sucessivas etapas que se completaram no Islam com a revelação do Alcorão. O que equivale dizer que nenhum deles veio para contradizer ou negar os que o precederam, não fundaram seitas nem incitaram cismas ou divisões; tais divisões surgiram da parte dos seguidores e líderes religiosos (que não possuíam e não possuem qualquer autoridade para isso).
Por outro lado, ao analisarmos o fenômeno sectário, particularmente aquele que surge a partir de qualquer tipo de reivindicação de profecia ou inspiração, constatamos que a regra que o define é a “contradição por princípio”.
A característica principal desse sectarismo é a ruptura e a contradição tanto com os fundamentos do monoteísmo trazido pelos profetas autênticos como entre as demais seitas. Inovações esdrúxulas, interpretações confusas, rituais sem qualquer fundamento histórico, tudo isso é identificável em todas essas supostas “revelações”. Por conseguinte, uma seita ao surgir já possui latente em si, a semente da divisão e da contradição que produz em pouco tempo outras e outras seitas. Essa característica de “contradição” nos leva a um outro raciocínio:
No caso dos que reivindicam autoridade espiritual com base em profecia, revelação ou inspiração da parte de Deus, surgem algumas questões: Se tais revelações ou profetas são inspirados pelo mesmo Espírito, por que apregoam doutrinas e práticas divergentes entre si? Por que suas definições teológicas e interpretações dos textos são tão diferentes? Por que, afinal, são grupos distintos e muitas vezes adversários?
O quarto ponto de discernimento se refere a uma distintiva capacidade concedida por Allah aos seus verdadeiros profetas e mensageiros: o Muj’izah.
A tradição islâmica aponta que Allah, Exaltado Seja, segundo a época em que sua mensagem era anunciada a um povo antigo e segundo as circunstâncias que se apresentavam, fortalecia seu profeta ou mensageiro com um ou mais sinais. Estes sinais estavam acima dos dons metafísicos ou das manifestações mágicas, isto é, não podiam (e não podem) ser reproduzidos pelos demais humanos e portanto, eram sinais distintivos dos verdadeiros enviados de Allah.
Como sabemos, jamais nenhum dos que nos tempos modernos reivindicam a profecia foi capaz de apresentar tais fenômenos ou qualquer coisa desse tipo. Mesmo as supostas “curas milagrosas” atribuídas a essa ou àquela seita, são perfeitamente verificáveis em todas as religiões e mesmo nos cultos animistas e idólatras. Tudo isso está ligado ao pouco conhecido mecanismo psíquico manifesto na fé numa cura ou na maioria dos casos, flagrante charlatanismo. De qualquer modo, não pode ser atribuído a qualquer dom especial ou divino.
O quinto e último ponto de discernimento é o que foi estabelecido por Allah, o Altíssimo no Alcorão ao dizer: “Em verdade Mohammad não é o pai de nenhum de vossos homens, mas sim o Mensageiro de Deus e o derradeiro dos profetas…” (C.33 – V.40)
De modo inequívoco Allah, Exaltado Seja, apresenta a humanidade o último dos seus profetas enviados. Portanto, o que a ele foi revelado (o Alcorão) foi a última e definitiva mensagem divina que completa e ab-roga as anteriores. Dessa maneira, a reivindicação da profecia e da autoridade espiritual para inovar ou reinterpretar o que foi revelado no passado é uma reivindicação indevida e fraudulenta. Quem quer que se apoie nessa reivindicação ou estará mentindo ou estará sendo iludido por Xaitan. Logo, suas doutrinas e interpretações não são senão extravios. Ademais, Allah, Exaltado Seja, diz no Alcorão Sagrado: “Voltai-vos contritos a Ele, temei-O, observai a oração e não vos conteis entre os que (Lhe) atribuem parceiros. Que dividiram a sua religião e formaram seitas, em que cada partido exulta no dogma que lhe é intrínseco”. (C.30 – V.31 e 32)
E diz ainda:
“Não és responsável por aqueles que dividem a sua religião e formam seitas, porque sua questão depende só de Deus, o Qual logo os inteirará de tudo quanto houverem feito”. (C.6 – V.159)
Como, então, Allah, o altíssimo, proibiria a formação de seitas, ordenando aos fiéis a não se tornarem sectários para que, depois disso, desse autoridade a quem quer que fosse a promover a divisão.
E como Allah, permitiria a contradição em sua palavra divina, declarando a condição de “último Profeta” a Mohammad (saas) para em seguida “enviar” a outros? Que Allah nos guarde dessas suposições! Uma vez que sua palavra é isenta de contradição e seu plano é reto.
Concluímos que, nenhuma das muitas seitas surgidas e nenhum dos reivindicadores de profecia ou de “inspiração” possuem qualquer autoridade dada por Deus para criar inovações ou propagar doutrinas que se opõem a doutrina revelada aos Profetas e mensageiros verdadeiros. Suas doutrinas e interpretações são apenas interpretações pessoais mais ou menos fundamentadas (e por isso mesmo divergentes entre si) se fossem “inspiradas” por Deus, não seriam muitas e nem contraditórias entre si. Além disso, no caso das muitas seitas cristãs, grande parte de suas doutrinas se baseiam em textos e passagens comprovadamente espúrias; adulterações como a crença na Trindade, que como é sabido, não era sequer conhecida dos primeiros cristãos.
Mesmo os mais comedidos, que não se apresentam como possuidores do dom profético, mas que se dizem “inspirados por Deus” caem nesse poço de contradição: Deus não inspiraria algo que se opusesse ou que desmentisse o que tenha revelado ao verdadeiros profetas no passado. E, desde que Ele (exaltado Seja) tenha proibido aos fiéis se contar entre os que iniciam seitas, como inspiraria alguém para formar uma seita ou fundar uma nova igreja?
Parte Dois
A mentalidade sectária e o fundamentalismo
Nesta segunda parte trataremos de um outro aspecto ligado ao fenômeno sectário, mas que não se restringe às seitas: a mentalidade sectária e o fundamentalismo.
Na realidade, essa mentalidade se faz presente num amplo leque de manifestações religiosas, místicas e políticas. Isto é, não se refere exclusivamente ao âmbito da religiosidade; é mais uma atitude ou uma visão equivocada e limitada da realidade que se estabelece numa concepção conflitante, que reduz a realidade a um jogo de oposições absolutas no qual a verdade e a razão são compreendidas como valores que excluem toda as demais posições e opiniões. Essa mentalidade sectária surge das interpretações pessoais de um fundador ou de um grupo que se apoia ou se apoiam numa reivindicação exclusivista da verdade e da razão.
Sua origem reside na incapacidade ou na total recusa ao diálogo e fatalmente resulta em hostilidade para com todos aqueles que não comungam das mesmas crenças e ideias. Essa mentalidade torna-se uma tendência atraente sempre que uma sociedade ou comunidade se depara com uma situação de crise social, moral ou política e para muitos assume o papel de “tábua de salvação”. Historicamente, a mentalidade sectária se manifesta em todas as religiões e no pensamento político, sempre produzindo uma maior tensão, agravando as diferenças e alimentando toda forma de divisão. Tanto o fundamentalismo religioso como o totalitarismo político se originam dessa mesma mentalidade.
É preciso ter clareza de que a religião em sua correta acepção, não comporta tal mentalidade, muito ao contrário, todas as autênticas tradições religiosas em sua fonte mais pura, se opõem a essa mentalidade, simplesmente porque religião é a antítese da ignorância e da intolerância. Todos os verdadeiros profetas, homens sábios e virtuosos predicaram o diálogo, a pregação pelo exemplo, o respeito à liberdade de pensamento, apoiando o raciocínio a reflexão e a bondade como meios de conquistar os corações.
Por outro lado, baseando-se num autoconceito em que se colocam como portadores da verdade absoluta, os que possuem a mentalidade sectária negam todos esses princípios e visam impor suas crenças ou combater à todo custo os que se opõem a elas. Em qualquer manifestação sectária, quer seja religiosa ou política, existe um certo grupo de características inerentes a essa mentalidade que nos permite identifica-la. As principais características da mentalidade sectária são:
1. A Negação do Raciocínio Individual
A mente sectária, por princípio, abdica do esforço pessoal de raciocinar, de buscar o conhecimento através do estudo e da reflexão. Conforma-se a adotar fórmulas prontas e raramente se aprofunda na busca dos fundamentos em que essas fórmulas ou crenças se sustentam. Atende assim, à conclamação de um líder e assimila sem nenhuma análise profunda as interpretações que esse líder dê a uma verdade ou dogma. Isso o conduz a imitação cega ou a uma aceitação pronta de algo que não conhece e que não quer ter o trabalho de conhecer e portanto, renuncia ao intelecto, à sua obrigação pessoal de desenvolver um senso crítico.
A mente sectária deseja uma receita pronta proveniente de um líder ou de uma elite de sábios que lhe entregue uma fórmula acabada de “salvação”, a qual adotará cegamente. Ao negar o raciocínio individual torna-se parte de uma mente coletiva, dirigida por um líder ou uma elite pensadora, e como tal, se coloca a serviço e devota sua consciência a estes. De fato, os grupos de mentalidade sectária tendem a apresentar a busca crítica do conhecimento como “dúvida, ausência de fé” e quando encorajam algum tipo de estudo, o fazem apenas para preparar os seguidores dentro dos seus dogmas, rejeitando qualquer estudo de posições contrárias ao que ensinam. Duas consequências básicas resultam disso:
a) superficialidade na interpretação das questões e dos dogmas
A mente sectária se apega as fórmulas prontas de crença e se sente inclinada a não questionar essas fórmulas, pois teme ser considerada pelos demais como rebelde ou colocar sua própria crença em jogo, desde que compreende a fé e a retidão como algo que não pode ser questionado pela razão. Assim, firma-se a superficialidade e a repetição das palavras e ideias (slogans) que lhe são apresentadas como verdades acima de qualquer análise crítica.
b) negação dos princípios causais e naturais em nome de explicações míticas do âmbito sobrenatural.
No caso da mentalidade sectária religiosa, é regra geral que as ideias e dogmas impingidos aos seguidores sejam justificados e investidos de uma natureza sobrenatural. Assim, frequentemente abusa-se de explicações miraculosas e ocorrências sobrenaturais para que a fé se justifique e os argumentos contrários continuem a ser descartados. Nesse caso, a fé se torna manipulável pelos líderes que podem explicar os triunfos ou os fracassos, o bem estar e a dificuldade na vida dos seguidores a partir da aderência e fidelidade ao grupo ou a falta disso. Esse é o comportamento típico da mente sectária que se manifesta no fundamentalismo religioso que, pretende dar a toda e qualquer interpretação ou crença que possua, um caráter de “inspiração” e portanto, jamais reflete sobre isso, e não aceita qualquer opinião contrária.
2. A Auto realização
A mente sectária é, como vimos no ponto anterior, profundamente acrítica. Essa característica possibilita o surgimento de uma auto idealização, moldada segundo diretrizes dadas por um líder ou uma elite (líderes, sacerdotes, mentores, etc.) e esta auto idealização é similar a uma “nova identidade” não meramente individual, mas sim, coletiva, isto é, se trata de uma identidade de grupo, facção, igreja ou partido político. Identidade idealizada, logo, revestida de uma distinção segundo os valores culturais ou crenças do grupo sectário.
No caso de uma seita religiosa a auto idealização se manifesta em identificar-se como “o grupo de eleitos”, “os mais esclarecidos”, os “que não se corromperam” ou ainda “os verdadeiros seguidores”, crenças que justifiquem a condição cismática. Ressaltemos pois, a condição de “idealização coletiva” desde que segundo a mentalidade sectária “não há salvação fora do grupo” e todo o seu padrão comportamental é definido por uma constante “luta contra o indivíduo, contra a razão e a iniciativa individual”.
Esta mentalidade invadiu a tradição cristã a partir de Paulo, ela era desconhecida dos primeiros seguidores de Jesus (as), que se agregavam no seio da tradição judaica e não pretendiam se separar do judaísmo. Com Paulo, a entidade “igreja” ganhou um outro sentido, centralizador e contrário ao diálogo e a reflexão. Esse modelo de organização se perverteu até tornar-se o tipo da mentalidade sectária, e é o modelo predominante das seitas fundamentalistas protestantes, no qual o indivíduo é colocado numa posição de constante necessidade de corresponder às expectativas do grupo (a igreja) mesmo quando isso lhe pareça contrário ao que seja correto.
Além da suposta “autoridade espiritual” do líder ou do pastor, há a “autoridade espiritual” do grupo, da igreja ou organização religiosa que é também “a nova identidade idealizada” a qual todo o bem e toda sabedoria é conferida e por conseguinte, toda oposição ou discordância passa a ser o mal e o erro.
3. O Apego à polêmica e a rejeição ao diálogo
Esta terceira característica é resultante das anteriores. A mentalidade sectária é essencialmente proselitista, e nisso se confunde com a religião autêntica exceto num ponto distintivo: a religião em seu verdadeiro caráter não pretende impor suas crenças, pela simples razão que a fé só é validada através de uma aceitação pessoal espontânea, enquanto que a mentalidade sectária entende que sua missão é convencer aos outros, aliciar mentes e corações a suas crenças. Quão mais fundamentalista e intolerante seja, mais se empenhará nesse proselitismo. A religião autêntica foi propagada no mundo por meio dos profetas e enviados de Allah, por meio do diálogo, do convite a reflexão e o respeito a individualidade e ao livre-arbítrio; a mentalidade sectária rejeita tudo isso em nome da polêmica e da tentativa de impor suas crenças.
O polemista não ouve os que não comungam de suas ideias e crenças, e quando parece fazê-lo, está apenas adotando o estratagema de renegar tudo o que seja dito, sem qualquer espaço para uma análise isenta de parcialidade das bases de uma crença ou outra. Na realidade, a mentalidade sectária repudia o diálogo porque carece de verdadeira convicção quanto as suas próprias crenças. Inconscientemente sabe que suas crenças não se sustentam senão em dogmas estabelecidos não pela fé iluminada pela razão, mas, por interpretações pessoais e limitadas. O medo de se confrontar com argumentos inquestionáveis que não poderá rejeitar a induz a polêmica e recusa a reflexão.
Essas três características definem a mentalidade sectária que anima os grupos religiosos fundamentalistas que em geral, se apresentam como “os herdeiros da tradição religiosa”. Podemos dizer que todo o conflito religioso se estabelece e é levado a cabo por grupos dominados por essa mentalidade e nunca isso ocorre sem o incurso deles, porque todas as tradições religiosas autênticas e a verdadeira religiosidade não comporta o conflito com base nos princípios da fé. As divergências existentes não devem desencadear conflitos ou rivalidades. O respeito a individualidade e o livre-arbítrio e a própria ética religiosa impõem sobre os verdadeiros tementes a obrigação do diálogo respeitoso. Diz Allah o Altíssimo no Alcorão:
“Convoca (os humanos) à senda do teu Senhor com sabedoria e uma bela exortação; dialoga com eles de maneira benevolente, porque teu Senhor é o mais conhecedor de quem se desvia da Sua senda, assim como é o mais conhecedor dos encaminhados”. (C.16 – V.125)
“E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles”. (C.29 – V.46)
E diz ainda:
“Dize: Ó Deus, Originador dos céus e da terra, Conhecedor do incognoscível e do cognoscível, Tu dirimirás, entre os Teus servos, as suas divergências!” (C.39 – V.46)
“Não há imposição quanto à religião, porque já se destacou a verdade do erro.” (C.2 – V.256)
A essência destes versículos sagrados pautou a prática do Mensageiro de Allah (saas) e dos purificados Imames de sua abençoada casa (as) que no decorrer de suas vidas apresentaram o Islam à pessoas das mais variadas e divergentes formas de crença sem jamais alimentar animosidades ou desrespeitá-las. Dialogaram com elas, ouvindo seus argumentos e contra argumentando com base na razão e nas evidências espirituais do que Allah revelou aos seus profetas e mensageiros (as).
Palavras Finais
Espero que o objetivo desse trabalho tenha sido alcançado: estabelecer com clareza a distinção entre a religião e as divisões sectárias e auxiliar as pessoas na compreensão desse assunto.
Aos irmãos muçulmanos, auxiliá-los no perfeito discernimento do modo de se posicionar perante a Mensagem Revelada e no entendimento da ética do Islam no trato das divergências teológicas, para que adotem um comportamento racional e tolerante e não pervertam sua fé ao grau do fanatismo e da mentalidade sectária. Que busquem seu conhecimento de fontes autênticas livres da contradição. Nenhum sábio é autorizado a guiar os demais para o que contraria o Alcorão e a sunna autêntica do Profeta (saas), assim como nenhum hadith deve ser levado em consideração se contrariar o Alcorão, assim como nenhuma interpretação de uma passagem do Livro de Allah pode ser tomada como aceitável até que se saiba que seja proveniente de uma autoridade capacitada para tal (um mujtahid) ou de uma fonte tradicional comprovada.
Queira Allah aceitar nosso esforço e apiedar-se dos tementes.