Por: Ahmed Ismail
A aceitação da poligamia dentro de limites, circunstâncias e regras estabelecidas é uma das características do Islam que acende debates e críticas no mundo ocidental. Condições históricas, políticas e culturais concorreram para que esta prática não permanecesse na civilização ocidental. Contudo, não se pode afirmar que o abandono da poligamia no Ocidente tenha sido o resultado de qualquer aprimoramento dos costumes, ou ainda, que tenha sucedido em razão de algum tipo de emancipação da mulher. A história da mulher no mundo ocidental, até muito recentemente, aponta para uma total ausência de direitos, não obstante a monogamia seja milenar nessa cultura.
De fato, o forte preconceito do ocidente em relação a poligamia tem raízes em sua formação histórica e religiosa. A Igreja participou decisivamente na determinação do casamento monogâmico, ainda que razões econômicas e culturais também tenha concorrido para isso.
A poligamia é uma prática muito anterior ao Islam. Se verificou em muitas culturas e sociedades e em muitas partes do mundo por milênios. Pesquisadores e sociólogos apontaram para diversas razões que justificaram seu surgimento nas sociedades. O mais comumente aceito é que um conjunto de razões econômicas e sociais interligadas que justificavam a prática da poligamia nas sociedades primitivas. Havia de modo geral, a necessidade de um alto índice de natalidade. Guerras, epidemias, a baixa expectativa de vida, demandavam a formação social tendo por base a poligamia.
À época do advento do Islam, naturalmente, a poligamia era praticada por muitos povos no oriente. O Islam, portanto, criou uma nova situação: não a aboliu, antes, produziu um código de limites e regras, e estabeleceu conjuntamente um novo padrão de relação matrimonial. O status da mulher nas sociedades anteriores ao Islam seguia um único e definitivo padrão: a mulher não era senão uma propriedade do homem, ou uma serva deste. Antes de qualquer outro sistema social o Islam foi o primeiro a emancipar a mulher. Pela primeira vez, a mulher adquiria direitos e uma posição digna diante do homem. Com isso, a poligamia ainda que mantida, se inseria numa perspectiva renovada em que os direitos e a dignidade da mulher deveriam ser assegurados.
Entretanto, a poligamia, segundo o Islam, só se justificaria à medida que respondesse a uma necessidade social. Exatamente por isso é que a poligamia foi mantida. Ao contrário do que os muitos opositores do Islam no ocidente e no oriente acreditam, a poligamia não está inserida no quadro de direitos do homem. Na realidade, a admissão à poligamia está relacionada a uma necessidade circunstancial da sociedade. Como tal, ela não pode ser avaliada como fator que diferencie os direitos do homem e da mulher.
Essa admissão não é senão a existência de um dispositivo prático para um problema da sociedade humana: o desequilíbrio numérico entre homens e mulheres na idade núbil. Quer seja nas sociedades tribais ou nas sociedades modernas é um fato reconhecido esse desequilíbrio existir como regra. Não obstante a taxa de natalidade de homens e mulheres não representa de modo geral uma grande discrepância, por vários fatores a regra predominante é de que nas faixas etárias aptas para o casamento, o número de mulheres é sempre muito superior ao de homens. A ocorrência contínua de guerras na história da humanidade, guerras que na atualidade vitimam um número de pessoas muito maior do que no passado, é sem dúvida o fator preponderante, uma vez que o número de homens jovens entre os mortos e inválidos é sempre superior.
Como resultado, salvo raríssimas exceções, no passado ou no presente, a realidade das sociedades humanas é a existência de um imenso excedente de mulheres na idade núbil.
Eis é a razão pela qual o Islam manteve a permissão à poligamia. Portanto, esta não está relacionada a esfera dos direitos do homem, não se trata de nenhum tipo de privilégio do homem em detrimento do direito da mulher, como equivocadamente, alguns críticos do Islam afirmam. A admissão da poligamia atende uma necessidade social. Mantém uma solução possível para os sérios problemas que surgem devido a esse desequilíbrio. Problemas que o ocidente conhece muito bem e que infelizmente ao coibir a poligamia, apenas os viu se agravarem no decorrer dos séculos.
A função que a poligamia pode desempenhar na resolução desses problemas também responde a uma outra crítica dirigida pelos que se opõem ao Islam. Alguns argumentam que em nome da igualdade de direitos, o Islam deveria permitir igualmente a poliandria (o casamento de uma mulher com mais de um homem).
Duas razões respondem de modo definitivo a este argumento:
1) Como já frisamos, a questão da poligamia não está relacionada a esfera dos direitos. Por conseguinte, uma discussão sobre direitos não tem qualquer razão para ser estabelecida com base nela.
2) A poligamia pode cumprir um papel de resolução de um problema social; a poliandria por sua vez, não só não pode resolver qualquer um desses problemas, como também pode dar origem a problemas ainda piores na sociedade. Por qual razão ela se justificaria, se a necessidade em questão é um excedente de mulheres nas sociedades e não o contrário?
Não pretendo aqui, caminhar pelos meandros das muitas questões e possíveis consequências da poliandria. As duas razões acima são suficientes para justificar a permissão à poligamia e não à poliandria.
A admissão da Poligamia dentro de Limites Estabelecidos
Entretanto, a mera manutenção da poligamia não seria a solução. A poligamia tal como existia no mundo pré-islâmico em diversas sociedades estava fundamentada no privilégio e no interesse do homem. Não reconhecendo os direitos da mulher como pessoa humana, a poligamia era então, somente uma forma de posse do homem sobre a mulher, sem que isso significasse qualquer comprometimento responsável da parte dele.
Assim, o Islam manteve a sua permissão, porém, estabeleceu restrições e condições que impedissem que seu exercício se tornasse uma forma de opressão sobre a mulher, ou que ferisse sua dignidade. Estabeleceu:
1- Que o homem casado que desejasse ter outra esposa, deveria, comprovadamente, estar apto a sustentar e tratar esta nova companheira, com as mesmas condições oferecidas a primeira. O Livro Sagrado afirma esta condição com ênfase, e diz: SE TEMERDES NÃO PODER SER EQUITATIVOS PARA COM ELAS, CASAI, ENTÃO COM UMA SÓ, OU CONFORMAI-VOS COM O QUE TENDES À MÃO. ISSO É O MAIS ADEQUADO PARA EVITAR QUE COMETAIS INJUSTIÇAS. (4:3)
Esta condição em si, pode ser considerada uma difícil missão para a maioria dos homens. Os juristas do Islam são quase unânimes em afirmar que a discriminação ou o favorecimento entre uma esposa e outra é Haram (proibido). Logo, esta é uma condição que incapacita uma grande parte dos homens a praticar a poligamia segundo o Islam ordena.
É importante notar também que, no mesmo versículo sagrado, em sua primeira parte diz: SE TEMERDES SER INJUSTOS NO TRATO COM OS ORFÃOS, PODEREIS DESPOSAR DUAS, TRÊS OU QUATRO DAS QUE VOS APROUVER DENTRE AS MULHERES… demonstrando uma das circunstâncias que justificaram a admissão da poligamia. Na ocasião da revelação, após a batalha de Uhud, a comunidade muçulmana se encontrava às voltas com um grande número de órfãos e viúvas. O amparo destas viúvas e de seus filhos dependia pois, dos laços do casamento que garantissem a todos segurança e bem-estar.
Ademais, o Islam estabeleceu a igualdade no status de toda esposa e de seus filhos, abolindo os costumes dos povos pagãos, que praticavam a poligamia de modo a tornar as esposas, servas da primeira, e negavam aos seus filhos os mesmos direitos dados aos filhos da primeira.
Se um homem não for capaz de garantir o sustento, o bem-estar, o bom trato e cumprir todos os seus deveres de marido para com uma segunda esposa com absoluta justiça, ele não tem o direito de estabelecer um segundo casamento.
2. Que o número máximo de esposas, em quaisquer circunstâncias, é o de quatro (com o cumprimento da mesma condição já exposta).
3. Que em virtude do casamento se estabelecer por um contrato, é reservado à esposa o direito de incluir como cláusula sua condição de única esposa. Se o marido acatar em contrato essa cláusula, não poderá tomar outra mulher por esposa.
É possível relacionar Poligamia e Promiscuidade?
Dentre as frequentes objeções e críticas que os opositores do Islam levantam à admissão da poligamia, há a que pretende relacioná-la à promiscuidade. Tendo em mente as histórias dos califas e seus haréns, muitos ocidentais, que pouco ou nada conhecem do Islam, costumam atribuir à poligamia a existência de haréns nas cortes do mundo islâmico do passado. O fato é que a poligamia, tal como é estabelecida pela Lei Islâmica nada tem a ver com o comportamento imoral e lascivo dos déspotas que, em nome do Islam, abusaram de seu poder e praticaram tantos atos vis. O Islam, de sua parte, como já explicamos, não permite qualquer coisa semelhante a haréns. Se o objetivo do Islam tivesse sido franquear ao homem a licensiosidade sexual, não teria criado limites à poligamia já existente. Não instituiria deveres para com a mulher. Aliás, sequer teria restringido as relações sexuais ao casamento. Ao contrário, teria dado ao homem absoluta liberdade para satisfazer seus desejos sexuais sem qualquer consideração a dignidade e os direitos da mulher.
A questão da promiscuidade está sim, relacionada a imposição irracional da monogamia no mundo ocidental. A monogamia restrita não é, como pensam, uma herança da tradição religiosa judaico-cristã. Muitos dos profetas bíblicos foram polígamos e não há uma proibição explícita à poligamia em nenhuma passagem do texto bíblico. A monogamia restrita foi uma imposição da Igreja, diante dos excessos cometidos por muitos cristãos que praticavam a poligamia, sem qualquer limite ou consideração aos direitos da mulher ou responsabilidade para com ela e os filhos de suas relações.
Entretanto, com a imposição do casamento monogâmico, e com a situação natural da maioria das sociedades humanas, ou seja, o número desproporcional entre mulheres e homens na idade adulta, o que se verificou foi um alastramento das relações ilícitas, da prostituição e dos filhos ilegítimos. A história do ocidente tem sido marcada sobretudo, pela difusão de todas essas formas de promiscuidade. A tal ponto, que no modo de pensar do cidadão médio do ocidente, a existência numa sociedade, de uma grande massa de mulheres, com uma chance mínima ou nenhuma de se casar e constituir família, não parece significar muito. E menos ainda, existe para ele, uma ligação com este fato e a crescente onda de adultério, de mães solteiras e filhos sem pai, de prostituição (numa faixa etária cada vez mais baixa).
Murtada Motahhari em sua obra “Os Direitos das Mulheres no Islam”, cita um fato ocorrido no período pós-guerra na Alemanha: “Um considerável número de alemãs solteiras, que, devido o grande número de mortos da Segunda Guerra Mundial se viram privadas de arranjar marido legalmente e de constituir família, dirigiram um apelo oficial ao Governo para que anulasse a lei da monogamia e permitisse a poligamia. O governo alemão, com base neste pedido oficial, pediu a Universidade Islâmica de Al Azhar para que lhes fornecesse um esquema para implementação dessa medida. Chegou-nos depois a informação de que a Igreja se opusera categoricamente a mesma. A Igreja preferia que as mulheres ficassem frustradas e que a promiscuidade aumentasse ao invés de estabelecer a poligamia, só porque se tratava de uma receita Islâmica e oriental.”
Com o advento da era moderna, e com ela, o relaxamento moral e o enfraquecimento da influência da religião, o casamento no Ocidente entrou numa crise ainda mais aguda. Evidentemente, um conjunto de fatores contribuiu para essa situação. Porém, a abundância de mulheres núbeis se encontra entre estes fatores, sem dúvida. Nas sociedades modernas, onde o sexo se tornou uma mercadoria, onde o homem desfruta de tantas possibilidades de conseguir gratificação sexual e as ligações ilícitas (fornicação) se tornou um elemento adaptado ao estilo de vida, não é de surpreender que o casamento se encontre em semelhante crise. Na realidade, a tentativa de impor o casamento monogâmico como única forma legal de união, gerou nas sociedades modernas exatamente a situação que o Islam tencionava sanar, quando adotou a permissibilidade da poligamia.
Uma Palavra Final
A permissão à poligamia no Islam é uma medida racional, voltada para estabelecer um equilíbrio na sociedade. É óbvio que, como em todas as formas de relação humana, ela apresenta uma margem de situações nas quais ocorrem excessos, situações injustas e mesmo cruéis contra a mulher. Porém, nestes casos, não é a poligamia o mal, mas sim, o elemento humano, atuando de maneira injusta. Tais problemas são em essência, os mesmos verificados em sociedades monogâmicas, sempre que o homem excede os seus direitos e fere os direitos de sua esposa. As varas de família de todos os países se deparam diariamente com tais situações. Não há qualquer base para se afirmar que a forma de casamento (monogamia ou poligamia) determine o bem estar ou o a ausência disso à mulher ou à família.