Por Ahmed Ismail
Uma das questões polêmicas no diálogo entre a cultura ocidental moderna e o mundo islâmico é o tema dos direitos humanos. Há uma divergência fundamental no que se refere à concepção filosófica desses direitos. Neste artigo, naturalmente, não temos a pretensão de abordar o tema em toda sua amplitude. Pretendemos apenas explicar em linhas gerais a visão islâmica sobre os direitos humanos, esclarecendo as razões para o impasse conceitual estabelecido.
Lamentavelmente, o tema em questão com freqüência tem servido como instrumento de pressão política nas relações internacionais. Ao se aceitar o perigoso e falso pressuposto que contrapõe “sociedades modernas e democráticas” ou “a civilização contemporânea” ao mundo supostamente “incivilizado”, “retrógrado” e não-democrático, se elimina toda a possibilidade de diálogo sério. Ao se adjetivar as sociedades do mundo islâmico que optam por sua própria cultura e organização política, que não se pautam pelos modelos ocidentais, de “sociedades atrasadas” se escolhe uma solução reducionista que justifica o conflito. Na base desse conflito filosófico, a meu ver, se encontra o propósito do ocidente de fazer prevalecer “os seus valores”, a “sua própria cultura” a todas as demais. Ao considerar os seus valores, sua própria cultura e sua visão particular sobre os direitos humanos, universais e superiores, o ocidente leva a discussão a um beco sem saída.
O princípio humanista, que no decorrer dos últimos séculos no ocidente inspirou a formulação do que hoje chamamos de “direitos fundamentais do homem”, não é algo surgido ou nascido no próprio ocidente; não pertence a uma construção histórica isolada que segundo alguns teria suas sementes na herança do chamado “berço da civilização ocidental”, isto é, da civilização grega, e especificamente, em seu caráter político, na jurisprudência romana. Esta análise acadêmica da história nada mais é do que a visão eurocêntrica do mundo, a qual, não deveria mais ser considerada. A imensa riqueza nos campos da ética, da filosofia e do direito presente em outras civilizações antigas, dentre elas a civilização islâmica, foi simplesmente ignorada por essa visão eurocêntrica que, negando as evidências da própria história, pretendeu reivindicar para si a exclusividade sobre o conceito de “civilização”.
Portanto, a discussão sobre a divergência entre a cultura moderna ocidental e o Islam acerca do tema dos direitos humanos deve partir de um posicionamento livre de preconceitos ou pressupostos infundados.
O Conceito de Direitos Humanos e o Islam
Muito antes do renascimento europeu e das primeiras formulações filosóficas sobre os direitos do homem, o Islam estabeleceu princípios perfeitamente claros sobre os direitos fundamentais. Pelo menos seis séculos antes do pensamento europeu o Islam tratou dos direitos da mulher, por exemplo, negando a posição inferiorizada que a Igreja lhe destinou durante a Idade Média. A esse respeito, sabemos que enquanto a mulher no ocidente só adquiriu o direito de propriedade em fins do século XIX, este direito já fora especificado no próprio Livro Sagrado do Islam cerca de mil e trezentos anos antes.
Entretanto, a concepção desses direitos não tem correspondência com a concepção clássica desenvolvida no ocidente sobre direitos humanos.
O primeiro ponto a se destacar é que a expressão “direitos humanos” ou o termo “direito” não são encontrados no Qur’an, na acepção a eles conferida na cultura ocidental. O termo “direito” nas fontes islâmicas, isto é, no Qur’an e nas tradições possui o sentido de “aquilo que é devido ou que cabe a” em virtude de uma ordem hierárquica universal. O importante a ser entendido aqui é que, as duas concepções de direito (a islâmica e a ocidental) partem de fundamentos diversos.
Quando falamos de “direitos humanos” na visão ocidental, falamos de um conjunto de direitos, desenvolvido a partir de diferentes idéias pelos teóricos políticos e sociais; o que na verdade constitui um conjunto em que há muita controvérsia. Podemos aceitar que muito do que há nessas idéias se origina das fontes clássicas greco-romanas, uma vez que, a partir dessas fontes todos os principais pensadores ocidentais, dentre eles Locke e Hobbes, desenvolveram o tema. Nesse sentido, é possível dizer que o conceito de “direitos humanos”, tal como se desenvolveu no ocidente, não é um conceito islâmico. O que não quer dizer que a concepção islâmica de “direito” necessariamente seja contrária ao espírito de todos esses direitos. Em suma, nem todos os juízos de valor estabelecidos com base na visão ocidental de direitos humanos devem ser considerados não-islâmicos.
No que diz respeito ao Islam, o conceito de direito, surge de uma Ordem Divina. E se estabelece como um conjunto de deveres. É precisamente esse princípio que diferencia o conceito islâmico de direito do conceito de direitos humanos desenvolvido no ocidente. Toda a atribuição de “direito” no Islam tem origem nos preceitos e ordens de Deus, não numa condição natural de direito, tal como o pensamento clássico liberal interpreta.
Assim, é possível dizer que no Islam, há o direito dos indivíduos, o direito da comunidade, o direito da criança, do idoso ou da mulher; o direito do trabalhador e do proprietário, etc. Porém, não há o reconhecimento do direito humano de forma genérica, justificado pela mera condição humana.
A Vida Humana e a Escala de Valor dos Direitos na Concepção Islâmica
A inviolabilidade da vida humana, no Islam, não é um conceito filosófico, mas uma ordem divina; expressa no Livro de Allah e na tradição profética. Como ordem divina, possui sua aplicação, suas condições e as circunstâncias de exceção. O seguinte versículo, por exemplo, apresenta implicitamente a inviolabilidade da vida humana e explicitamente duas circunstâncias de exceção:
… Quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade; quem a salvar, será reputado como se tivesse salvo toda a humanidade… (sura 5 vers. 32)
Dois pontos podem ser prontamente inferidos do que é dito no versículo:
1. O reconhecimento do valor da vida humana.
2. A evidência de que o valor da vida humana não é absoluto; que como valor, está inserido numa ordem hierárquica de valores.
Qualquer concepção sobre direitos depende do critério sobre o valor da vida humana. Ainda que não exista uma divergência sobre esse ponto, há um entendimento diferente entre o pensamento liberal do ocidente e o Islam sobre as deduções possíveis disso. Para o pensamento liberal, o reconhecimento do direito a vida justifica automaticamente o reconhecimento de todos os demais direitos constantes nas declarações universais de direitos humanos.
Para o Islam, porém, não há, no reconhecimento do direito a vida uma dedução implícita dos demais direitos. Da mesma maneira que não há um caráter absoluto no valor da vida, todo e qualquer direito é condicional e limitado. Ambas as afirmações, naturalmente, são inaceitáveis para os proponentes da causa dos direitos humanos, tal como são entendidos no mundo ocidental.
Entretanto, o fato do Islam não reconhecer que o direito a vida forneça um suporte automático aos direitos e proteções reconhecidas no ocidente, nada impede que a jurisprudência islâmica atue no sentido de inferir, a partir da shari’ah (lei divina) os direitos autênticos. Ou seja, os direitos que se conformem às condições da lei islâmica. O mesmo ocorre no que diz respeito ao não-reconhecimento de direitos absolutos. Há uma vasta gama de direitos que o pensamento liberal defende, que são perfeitamente reconhecidos pelo Islam, sem que com isso sejam considerados absolutos ou incondicionais.
Direitos Individuais e Direitos Coletivos
Não há no Islam, base ou evidência jurídica para que se estabeleçam direitos individuais de forma precedente aos direitos coletivos. De fato, a principal razão para os direitos individuais serem considerados condicionais e limitados se encontra na importância dada, no Islam, aos direitos coletivos. Tomemos por exemplo, o direito a propriedade privada. A jurisprudência islâmica afirma o direito a propriedade. No entanto, esse direito não significa total liberdade; o indivíduo não tem o direito de utilizar sua propriedade para lesar os direitos coletivos.
Essa prioridade do espírito coletivo impede que ocorra, numa sociedade regida pela shari’ah, a ascensão de uma mentalidade radicalmente individualista. Na qual, cada indivíduo ou grupo pleiteia seus próprios interesses, quer sejam legítimos ou não, em nome de “direitos”. A confusão entre “interesses” e “direitos” produz imediatamente o possível desvirtuamento do próprio sentido da noção de direito, permitindo muitas vezes que, por vias legais e políticas, um grupo se beneficie lesando os direitos de toda a sociedade.
O Islam e a Crença Numa Escala de Valor Suprema
Mencionamos a existência de uma ordem hierárquica de valores. Falamos do caráter condicional e limitado do valor dos direitos. Por conseguinte, a rejeição do Islam à noção do pensamento liberal de direitos absolutos ou universais. A base para essa rejeição são as fontes da lei e da fé islâmica: o Qur’an e a Sunna profética.
O Qur’an afirma o direito de Allah sobre as criaturas, e este direito ocupa a posição superior na escala de valores que deve ser acatada por todos os muçulmanos. Trata-se de um direito incondicional, pois Allah, Exaltado Seja, é o Supremo Legislador, o Único Dono de todas as coisas, Criador de todas as coisas. Sua Palavra é a fonte da Lei divina e Ele é Quem confere direitos e deveres.
Todos os direitos mencionados ou inferidos das fontes islâmicas, no sentido expresso de “o que é devido à” e não no sentido dado pelos filósofos políticos do ocidente, seguem essa ordem hierárquica de valor. Ou seja, não se estabelecem por si mesmos, mas pela determinação de Allah. Logo, não existe o direito legítimo que contrarie a vontade de Allah.
Enquanto na perspectiva dos defensores contemporâneos dos direitos humanos, reivindicações diversas ocupam o mesmo status, valor e legitimidade, para o Islam, a medida básica de avaliação para as reivindicações de direitos é a sua conformidade com a shari’ah (lei divina).
Do ponto de vista islâmico, a avaliação homogênea do vasto conjunto de garantias e direitos reivindicados no mundo moderno, artificialmente rotulados de “direitos humanos”, é absurda e inaceitável. Se por um lado, o Islam, por exemplo, acata como legítima a reivindicação dos trabalhadores por um trabalho dignamente remunerado, com garantias legais de segurança no exercício de suas funções, por outro, rejeita inteiramente reivindicações como a de grupos organizados em vários países de reconhecimento da prostituição como profissão legalizada.
Enquanto o primeiro exemplo se trata de uma reivindicação legítima para o Islam, o segundo é absolutamente ilegítimo, pois não há direito para a transgressão da Lei Divina.
O Desafio da Nação Islâmica
A crescente pressão política e diplomática das potências e das organizações humanitárias do ocidente sobre o mundo islâmico, para que o programa ideológico dos direitos humanos seja implementado em seus países faz parte da lógica de ampliação de uma visão de mundo particular. A idéia de uma globalização econômica naturalmente é acompanhada de uma globalização cultural, que não significa outra coisa senão a imposição de valores e crenças convenientemente nomeados de “universais”. Os valores e crenças consagrados pelo pensamento liberal são exatamente aqueles que asseguram a continuidade da grande máquina do Mercado. O pensamento humanista e as inclinações humanitárias que são apresentadas como bases para a causa dos direitos humanos, não dão as cartas nas relações políticas e nas decisões de poder nem no mundo político tampouco no sistema econômico mundial. Na realidade, é a visão e o interesse do Mercado que determina até que ponto uma reivindicação deve ser consagrada como “direito.”
As nações que se apresentam como líderes na defesa dos direitos humanos, são as primeiras a violá-los, sempre que seus interesses estejam em jogo. Não faltam justificativas práticas para calar as vozes contrárias que se levantam em seus próprios países. Não raro a causa dos direitos humanos é grosseiramente posta a serviço de interesses geopolíticos. Governos são estigmatizados como “regimes inimigos da liberdade” pela simples razão de se oporem aos interesses das potências mundiais. Campanhas midiáticas são desencadeadas, não somente contra países muçulmanos, com o intuito de alimentar o descrédito contra esses governos. Ao mesmo tempo, regimes que colaboram com os interesses das potências, ainda que cometam desmandos ainda mais graves, são tolerados e seu desrespeito aos direitos humanos passa a não merecer a atenção da grande mídia internacional.
Uma nação poderosa economicamente como a China supera com facilidade as críticas a seu sistema penal rigoroso; a pena de morte praticada em trinta e cinco estados norte-americanos ou na Arábia Saudita, uma tradicional aliada dos EUA, não desperta grande indignação da mídia, quando o mesmo não pode ser afirmado sobre o regime islâmico do Irã. Um regime aliado dos EUA na América Latina como o colombiano, pode aplicar políticas de eliminação e perseguição de populações indígenas, em nome da luta contra o narcotráfico, sem que desperte a mínima atenção da grande mídia do ocidente. No entanto, seus vizinhos não aliados aos interesses norte-americanos estarão constantemente na mira da mídia internacional, não importando realmente até que ponto respeitem as liberdades individuais ou não.
Entretanto, a crítica acima não significa em absoluto que discordar do conceito ocidental de direitos humanos seja concordar com a violação dos direitos legítimos em qualquer parte do mundo.