Autoria de Ahmed Ismail
O modo de vida islâmico tem sido abordado e compreendido sob diversos pontos de vista por muçulmanos e não-muçulmanos, especialmente nas últimas décadas em que o Islam tem surgido como uma crença em franca ascensão no mundo.
O fato da aderência ao Islam por parte de pessoas das mais variadas culturas e povos tem despertado atenção de pesquisadores e intelectuais que ressaltam o caráter da simplicidade dessa crença, o que do seu ponto de vista, explica a sua expansão. Entretanto, o aspecto referido, o modo de vida islâmico, não é considerado um fator que concorra para essa tendência devido às profundas diferenças que possui em relação aos costumes ocidentais.
Podemos mesmo dizer que as várias idéias correntes sobre o que seria “um modo de vida islâmico” por serem mais fruto de preconceito do que conhecimento constituem barreiras para uma maior e mais rápida aceitação do Islam. Se no mundo não-muçulmano “o modo de vida islâmico” aparenta ser oposto a vida moderna (e esta idéia é fruto mais da desinformação e do preconceito), nos meios islâmicos podemos identificar também idéias distorcidas sobre o que realmente seja um modo de vida islâmico.
Identificamos duas tendências distintas de compreensão e prática do que se entende como modo de vida islâmico que estão presentes em todas as comunidades islâmicas. Essas duas tendências se originaram de diversos fatores históricos e políticos que de modo semelhante abalaram a verdadeira identidade islâmica dos povos e culturas integradas na Ummah (Nação Islâmica).
Podemos mesmo entendê-las como sintomas do desequilíbrio e como tais agem um em função do outro, se opõem entre si numa oposição histórica que remonta os primeiros séculos da Hijra) e que surgiram quase que simultaneamente, durante os primeiros choques culturais que se processaram, com a forte probabilidade de que isso tenha ocorrido ainda nos dias do Profeta (SAAS).
A primeira tendência eu a denomino de tendência de distensão. Se caracteriza por uma aderência mais nominal ao Islam, que tende a compreender e aplicar o din sem desenvolver uma forte identidade islâmica sobre as bases da prática. Essa tendência leva a uma aderência quase superficial, suscetível a costumes não-islâmicos (bons e ruins), mantendo-se grande parte das tradições e costumes tribais ou estrangeiros ainda que nominalmente a identidade ao Islam permaneça.
Uma segunda tendência a qual eu denomino de “integrista” surgiu também nos primeiros tempos e fortaleceu-se sobremaneira, quase como uma reação ao crescimento da primeira. Caracteriza-se por uma compreensão e aplicação literal do din. Diversos grupos de sábios dos primeiros tempos (embora com divergências entre si) preconizavam esse princípio de integrismo como uma alternativa para manter o Islam e os muçulmanos livres da decadência espiritual e moral. Seus defensores argumentam com base numa interpretação literal do Alcorão e da Sunnah buscando definir o verdadeiro modo islâmico (tal como o entendem). Essas duas tendências estiveram presentes em todos os momentos da história islâmica em todas as comunidades muçulmanas, e tornaram-se mais visíveis e ativas após a colonização européia.
Por um lado, a tendência de distensão avançou para uma progressiva perda de identidade com a chegada da cultura e dos costumes europeus, diluindo-se em meio a uma onda de aculturação, de tal maneira que hoje podemos ver muçulmanos lotando as danceterias do Cairo, muçulmanas trajando roupas provocantes nas ruas de Istambul (este é um fenômeno presente em algumas das grandes cidades do mundo islâmico). Por outro lado, a tendência integrista também pode ser considerada como uma força presente, inúmeros movimentos de re-vivificação do Islam surgiram nos últimos 300 anos em várias partes do mundo islâmico tendo por base a crença integrista de rejeição radical aos costumes ocidentais e uma interpretação literal da religião e da prática.
Denomino aqui como “tendência”, porém é preciso compreender que esta abrange diversos movimentos divergentes entre si, alguns engajados em luta armada ou em movimentos nacionalistas, outros ligados a estados e governos estabelecidos e outros ainda meramente integrados como grupos religiosos. Logo, também a compreensão quanto à aplicação da Shariah e dos costumes islâmicos na vida diária variam bastante entre eles.
Todavia, nenhuma dessas duas tendências pode ser denominada de “verdadeira”, foram na realidade duas distorções produzidas entre os muçulmanos que não correspondem ao autêntico modo de vida islâmico tal como o Profeta (SAAS) aplicou e recomendou e que foi aplicado e recomendado pelos Imames de sua Casa (AS), que detinham a melhor compreensão do Alcorão, de suas aplicações gerais e do contexto e da abrangência de cada recomendação da Sunnah autêntica.
Uma análise cuidadosa quanto a aplicação do Din e do modo de vida islâmico tal como o Profeta (SAAS) e os Imames (AS) preconizaram nos permite identificar um caráter de equilíbrio e de aplicação da razão como um fator determinante. A escola xiita demonstra esse senso de equilíbrio que a distingue de todas as outras escolas de jurisprudência e esse senso está presente no cerne de sua instituição do Ijtihad. A compreensão do din correspondente (legada do Profeta (SAAS) e de seus Imames (AS)) parte do princípio que é perfeitamente possível firmar-se ao Alcorão sem ceder a excessos, a aderência ao din se estabelece em diversos níveis de compreensão e prática, sem que isso signifique também ceder a inovações e a costumes deletérios à moral e o abandono dos preceitos fundamentais do din.
De fato, as duas tendências opostas são errôneas: a primeira (a da distensão) corrompe os muçulmanos, enfraquece neles os laços da fé e do temor e a identidade islâmica, a segunda (a integrista) parte de uma equivocada e literal compreensão do Alcorão e da Sunnah e freqüentemente toma por base tradições inapropriadas para suas deduções.
O modo de vida islâmico, de acordo com os ensinamentos do Alcorão, do Profeta (SAAS) e de seus Imames (AS), está firmemente estabelecido naquilo que é inerente ao ser humano, ou seja, em acordo com a sua natureza, portanto dá a cada situação uma medida exata de aplicação.
Tomemos por exemplo o pilar da prece. O Alcorão ordena o cumprimento de cinco preces diárias, que sendo obrigatórias devem ser cumpridas por todos. Esta ordem divina está assim estabelecida por que o seu cumprimento é perfeitamente factível, está ao alcance de todos (do contrário não seria uma ordem geral). Ao mesmo tempo, o Alcorão nos exorta como recomendação e o Profeta (SAAS) e os Imames dos Ahlul Bait (AS) adotaram-na firmemente como prática recomendada no decorrer de suas vidas as preces voluntárias (durante o dia ou a noite), portanto, também as recomendaram aos fiéis. De modo diferente dos cinco Salawat obrigatórios estas são recomendações mustahabb (meritórias) que se cumpridas granjeiam recompensas e que do contrário não acarreta castigo. Assim, serão os diferentes níveis de aderência e de compreensão do din (ou até mesmo a disponibilidade de tempo) é que determinarão entre os fiéis o seu cumprimento ou não, a adoção como um hábito freqüente ou esporádico.
No aspecto do correto discernimento do Haram e do Halal dois princípios são determinantes: o conhecimento daquilo que Allah (Deus) tenha decretado de modo evidente como Haram e Halal no Alcorão e das confirmadas tradições do Profeta (SAAS) que tenham sido determinantes na definição de um de outro. O segundo princípio é o recorrer ao parecer de um capacitado Mujtahid, seja quanto aos detalhes específicos das injunções do Alcorão e da Tradição como também (e principalmente) quanto as questões entendidas como duvidosas (que não sejam evidentes), as quais se requer Ijtihad para definição de seu caráter Halal ou Haram.
Seguindo estes dois princípios evita-se a prática do erro e ao mesmo tempo não se pratica excessos e nem se propaga o que não é correto aplicando-se um costume, prática ou proibição que não seja verdadeiramente do Islam; e não se comete abstenção de algo que o Islam não proíbe nem define como indesejável.
Nesse aspecto residem grande parte das distorções atribuídas como “modo de vida islâmico”: por não adotarem esses dois princípios vemos muçulmanos ora praticando o Haram como se fosse Halal, ora entendendo o Halal como Haram, distorções decorrentes seja do desconhecimento das Evidências do Alcorão, das proibições e permissões autênticas do Profeta (SAAS) ou porque recorrem ao parecer de pessoas que exercem o Ijtihad sem o correto conhecimento.
O Ponto de Equilíbrio
Livre das distorções, dos excessos e das inovações o autêntico modo de vida islâmico reflete o senso de equilíbrio racional que se encontra evidente nos versículos do Alcorão e nas recomendações e ensinamentos do Mensageiro de Allah (SAAS) e dos Imames de sua Casa (AS).
Diz Allah, Exaltado seja, no Alcorão:
“… jamais impomos a alguém uma carga maior do que suas forças …” (C.7 – V.42)
E diz ainda:
“E Allah deseja aliviar-vos o fardo, porque o homem foi criado frágil.” (C.4 – V.28)
Os versículos sagrados nos esclarecem o fato de que este Din foi estabelecido em absoluta consonância com a natureza e o potencial da criatura humana; nada nele sejam suas práticas, suas proibições ou qualquer outro de seus aspectos está acima da capacidade do homem e não o sobrecarrega de nenhum modo. A mesma verdade que lhe imprime o que seja compulsório, similarmente prevê as abstenções e as exceções onde e quando se fazem necessárias.
Tudo o que proporciona o bem estar do homem neste mundo sem que acarrete ou o exponha ao risco das más conseqüências nesta vida ou no além, está no âmbito do lícito e tudo o que cause a corrupção do homem neste mundo e más conseqüências nesta ou na outra existência (Akhirah) está no âmbito do Haram (vedado por Allah ao ser humano). Tudo o que tenha sido permitido ou proporciona o bem estar (seja efêmero ou que tenha boas conseqüências também no Akhirah) ou o foi permitido ou tolerado por Allah em vista de sua bondade para com o ser humano. E tudo o que tenha sido vedado conduz o homem ao sofrimento e a perversão de sua própria natureza, isto é, nada foi vedado que não resulte na infelicidade do homem, com conseqüências visíveis neste mundo ou apenas no Akhirah.
Sob estas bases de racionalidade e equilíbrio o verdadeiro modo de vida islâmico é factível em qualquer sociedade, época ou cultura porque é inerente e compatível à natureza do ser humano. Seja nas questões de culto, nas práticas, nas relações sociais, familiares ou profissionais esse modo de vida islâmico não requer dos fiéis nada que possa ser considerado exagero ou impropriedade, será a medida de sua sincera aderência que determinará a intensidade de sua fé e religiosidade nas grandes e pequenas atitudes.
O conjunto de suas atitudes nas questões acima citadas são precedentes sobre todas as formas externas (que infelizmente muitos superestimam invertendo os valores). Isto é, o verdadeiro modo de vida islâmico não pode ser confundido com o conjunto de costumes tradicionais que são meros adereços. A aderência a prática e as atitudes dignas estão acima de tudo isso; estes valores islâmicos não se apóiam em imitação nem aparência externa e isso é compreender o Islam corretamente.
É lamentável que muitos muçulmanos identifiquem o “modo de vida islâmico” como o conjunto de certos costumes árabes (costumes que muitas vezes se opõem ao din) tais pessoas tratam o din como um mero adereço cultural, vazio de seu verdadeiro sentido e propagam a outros essa grave distorção, alimentando o equívoco de que isso seria “o modo de vida islâmico”. Qualquer pessoa que pesquise atentamente o modo de vida do Profeta (SAAS) e dos Imames de sua Casa (AS) concluirá que nada está mais longe disso.
Um dos aspectos mais notáveis do estilo de vida islâmico sob o modelo do Mensageiro (SAAS) e dos Imames (AS) é a simplicidade como regra geral. Esta característica estava imprimida em suas vidas em todos os níveis: nos hábitos, no trato com as pessoas, nos trajes, no ambiente doméstico, no falar e no agir. Todos os relatos de todas as fontes concordam que o Profeta (SAAS) foi um constante exemplo de modéstia e de total rejeição a aparências ostensivas, aos cerimoniais, aos costumes do luxo e da sofisticação aos quais as pessoas se entregam com tanta freqüência.
Assim, o verdadeiro modo de vida islâmico apela para essa simplicidade interior e exterior e é incompatível com as ostentações e a soberba diante das outras pessoas. No trato e nas relações sociais este modo de vida islâmico prima pelo respeito a todos e cada um, não fazendo distinção entre ricos e pobres, não exaltando a uns e rebaixando a outros porque o Profeta (SAAS) nos ensinou a tratar a todos com dignidade e respeito. Outro aspecto notável no que podemos compreender como sendo o autêntico modo de vida islâmico é a priorização do essencial em todas as questões da vida, o que leva ao bom muçulmano a afastar-se da leviandade e das futilidades concentrando-se no que proporcione o bem, no amor ao conhecimento e o aperfeiçoamento da fé.
Esse modo de vida demonstra um perfeito equilíbrio no qual há lugar para o culto a Allah, aos cuidados familiares e o zelo com os amigos, o estudo, o ganho da vida e o lazer lícito. Evidentemente, são tantos os aspectos do modo de vida islâmico de considerável relevância que um simples ensaio não seria suficiente para uma exposição mais detalhada. Porém, o objetivo deste trabalho foi dissertar sobre uma série de princípios e características que distinguem o “verdadeiro modo de vida islâmico” das muitas idéias preconcebidas e distorções que ou o apresentam como um “modo de vida restrito e difícil” ou como “um conjunto convencional de costumes”, visões que de modo algum correspondem à realidade do Islam.