Palavra da Dra. Charlyane Silva de Souza no Encontro Islâmico no Brasil

Os Desafios Enfrentados pelas Comunidades Muçulmanas no Ocidente

Em nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso! Louvado seja Deus, o Senhor dos Mundos! Louvado seja o Profeta Mohammad e sua abençoada família!

Quando falamos desses desafios estamos centralizando as questões enfrentadas no Brasil, e os reflexos de tudo giram em torno de acontecimentos mundiais. E sabemos que, essa onda de intolerância que temos enfrentado como comunidade muçulmana, em sua maioria, se resume em desconhecimento, e consequentemente, o desconhecimento traz intolerância e o preconceito.

O Alcorão Sagrado, na Surata 96, diz: “Lê, em nome do teu Senhor que te criou. Que ensinou através da pena. Ensinou ao homem o que este não sabia”.

Ou seja, para nós, muçulmanos, buscar o conhecimento, além de ser obrigatório, é alcorânico e nos traz a verdade que precisamos.

Hoje, ouve-se e lê-se, na mídia e nas redes sociais do Brasil: “Os muçulmanos estão chegando no Brasil; os Islâmicos querem dominar o Brasil para implantar as suas leis; o islâmico é terrorista; os árabes são terroristas…” Pois bem, neste breve espaço, necessito fazer uma caminhada na História do Brasil, História essa que, acredito, até que em nossa totalidade, não tivemos conhecimento quando estivemos na escola. A História que tivemos acesso é que o Brasil foi colonizado por portugueses, em seguida chegaram os espanhóis, os franceses, e etc. Mas, outra face da História nos remete que, Pedro Álvares Cabral, em sua expedição de 1.500, foi acompanhado pelos muçulmanos Chuhabidin Bin Májid e Mussa Bin Sáte, seu navegador. Além de que no início da colonização, muçulmanos portugueses e espanhóis, embora em número reduzido, também vieram ao Brasil. Sua presença é denunciada ao final do século XVI, com a chegada da Santa Inquisição da Igreja Católica. Onde, processos e relatos do Santo Ofício, referem-se à presença destes muçulmanos, descrevendo suas práticas e seus costumes. Como referência temos os documentos: Primeiras Visitações do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações de Pernambuco, 1593 – 1595, do Visitador Heitor de Mendonça; Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartório da Inquisição; dentre outros.

A Inquisição atuou forçando a conversão dos muçulmanos ao Cristianismo, inclusive a mudança de seus nomes. Os Tribunais Inquisitórios puniram os praticantes de cultos considerados heréticos e os que se recusavam a aceitar a Nova Ordem. E por conta disso poucos registros restaram da presença destes muçulmanos na fase inicial da Colonização.

O maior contingente de muçulmanos que chegaram ao Brasil foram os escravos negros, a partir do início do Tráfico Negreiro, em meados do século XVI. Através do Tráfico de Escravos, estima-se que de 3 a 4 milhões de negros foram trazidos da África ao Brasil. Dessa forma, os muçulmanos entre eles, trouxeram consigo tradições, conhecimento, modo de vida e anseios de liberdade inerentes a Religião do Islam. Quando os escravos começaram a se organizar em Quilombos, temos como grande exemplo histórico, o Quilombo de Palmares, com mais de 20 mil habitantes, e tendo como Karim Ibn Ali Saifudin o construtor das grandes fortificações deste Quilombo. Além disso, Palmares tinha o ideal de liberdade e segurança. Liberdade de culto e religião, política, ciência, aplicação de leis, trazidos por esses estudiosos islâmicos de origem africana. Assediado, Palmares sofreu diversos ataques organizados pelo governo português. Palmares foi totalmente destruído por volta de 1695 e, após isso, milhares de quilombos foram surgindo, e espalhando-se pelo território brasileiro, mas, nenhum com a proporção de Palmares.

A continuidade do Tráfico Negreiro fez com que, a partir dos séculos XVIII e XIX, em que houve expressiva representatividade de pessoas oriundas do Sudão Central, chegassem ao Brasil novas levas de muçulmanos, alfabetizados e instruídos. Os negros muçulmanos sudaneses são assim descritos pelo autor Arthur Ramos em sua obra, “Introdução à Antropologia Brasileira”: “Eram altos, robustos, fortes e trabalhadores. Usavam como os outros negros muçulmanos, um pequeno cavanhaque, de vida regular e austera, não se misturavam com os outros escravos”. Eram os denominados “Malês”. Organizavam a recuperação da religião do Islam entre os escravos, a partir do registro em memória do Alcorão e das tradições do Profeta Mohammad (S.A.A.S.). Que, mesmo enfrentando oposição e perseguição, praticavam suas crenças em segredo e se comunicavam em árabe entre eles.

Em 25 de janeiro de 1835 estourou a Revolta dos Malês com grandes manifestações na capital da Bahia e a partir daí a religião do Islam passou a sofrer uma severa repressão. Foi taxada como religião selvagem que incitava a revolta dos negros escravos, considerados seres sem alma. Para a mentalidade da época, não havia que se pensar, para seres sem alma, em direito à liberdade, à justiça, à vida, à religião ou à dignidade.

No final do século XIX e início do século XX, chega ao Brasil um novo contingente de muçulmanos, sendo estes de origem árabe. Os primeiros árabes de origem síria a imigrarem para o Brasil eram Cristãos, buscando novas oportunidades de vida, afastando-se do Império Otomano. Devido ao fato de seu passaporte identifica-los como turcos, ficaram conhecidos, no Brasil, como turcos.

E somente a partir do século XX, começaram a chegar os árabes muçulmanos no Brasil. E entre esses se destacavam os muçulmanos árabes de origem palestina, após a criação de Israel. E posteriormente, libaneses, egípcios, marroquinos, nigerianos, iraquianos, dentre outros.

Os imigrantes muçulmanos que chegaram ao país no início do século XX, embora tenham sido recebidos com hospitalidade e liberdade pelos brasileiros, encontraram situações diversas para a prática de sua religião. Como exemplo, o fato de o Brasil ser de maioria Cristã, não haviam Mesquitas e Centros Islâmicos para as Orações, nem Escolas Islâmicas. E, devido à árdua rotina para uma adaptação, os valores religiosos estavam se dispersando na nova cultura e o idioma se perdendo. Por isso, em um esforço de preocupação e reação a perda de identidade religiosa e cultural, a comunidade árabe inicia a fundação de Centros Religiosos, Associações Beneficentes e Escolas Islâmicas. Tendo como polo inicial a cidade de São Paulo.

Sendo assim, queridos irmãos, a partir deste momento, minha fala sai do contexto histórico e direciona-se um pouco mais para a atualidade e aproxima meu trabalho voltado para o Direito da Liberdade Religiosa no Brasil.

Primeiramente, não posso deixar de mencionar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, regido por um conjunto de normas constitucionais e legais, onde, as religiões não as sobrepõem, mas, é instituída a Liberdade Religiosa. Temos, então, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Temos também, no mesmo Texto constitucional, o inciso VIII: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”.

E por fim o artigo 18 da Declaração Universal de Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à Liberdade de pensamento, consciência e religião, este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

Além dos textos constitucionais e da Declaração Universal de Direitos Humanos, temos campanhas nacionais e projetos de Leis que também celebram a Liberdade Religiosa no Brasil, a exemplo podemos citar o Projeto de Lei Nº 979 de 2015 do Deputado Federal Wadson Ribeiro, onde, pune os que discriminam as pessoas pelo uso de indumentárias religiosas.

Temos campanhas contra intolerância promovidas pelo governo brasileiro, pela Ordem dos Advogados do Brasil, em especial a Seccional de São Paulo com a Comissão Especial de Direito e Liberdade Religiosa, da qual sou membro ativo. Além das escolas, universidades, organizações não governamentais.

E recentemente, foi promulgada a Lei de Imigração, Lei Nº 13.445 de 2017, com o objetivo de definir direitos e deveres do migrante e do visitante estrangeiro no Brasil, regula a entrada e permanência de estrangeiros, e estabelece normas de proteção ao brasileiro no exterior. Substituição do Estatuto do Estrangeiro durante do regime militar.

O anúncio da promulgação da Lei, causou uma série de manifestações contra o Islam, nas redes sociais principalmente, discurso de ódio em passeatas nas grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, dificuldade em especial para as mulheres muçulmanas, por conta da sua vestimenta religiosa.

Por fim, como citado no início desta palestra, o conhecimento é o nosso instrumento de defesa, pois, como muçulmanos, sabemos que o Islam não é a religião dos árabes. O Alcorão não é dirigido para os árabes particularmente, para uma nação específica, assim como uma Escola Islâmica não é direcionada apenas para alunos muçulmanos, mas à Nações e também sociedades não islâmicas como um todo.

O Alcorão Sagrado, na Surata 68, versículo 52, diz: “Este Alcorão não é mais do que uma mensagem para o MUNDO”.

Assim como na Surata 31, versículo 27, temos: “Ainda que todas as árvores da terra se convertessem em calamos, e o oceano em tinta, e lhes fossem somados mais sete oceanos, isso não iria esgotar as palavras de Deus, porque Deus é Poderoso, Prudentíssimo”.

Obrigada pela oportunidade que me foi cedida com o convite em palestrar na presença de nosso Ilustre e Eminente Ayatullah Mohsen Araki e pelo convite do Centro Islâmico do Brasil, oriundo pelo Sr. Nasser al-Khazraji e o Eminente Sheik Taleb Hussein al-Khazraji, e parabéns pela organização e recepção do evento.

Que a Paz de Deus esteja com todos nós!

Charlyane Silva de Souza – Comissão Especial de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de São Paulo.
Encontro Islâmico no Brasil – São Paulo, 29 de julho de 2017.

 

 

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