Por: Ahmed Ismail
O profundo agravamento do conflito palestino-israelense aponta para a necessidade moral de que a comunidade internacional venha a promover uma intervenção efetiva; de que se reconheça que foi a omissão internacional que possibilitou que esse conflito tomasse as atuais proporções.
O fato é que o cinismo regeu as ações até aqui. A comunidade internacional se entregou à cômoda posição de observadores, delegando aos EUA o encargo de mediador no conflito. Aceitou-se com passividade toda e qualquer posição da Casa Branca mesmo sendo de conhecimento público o apoio irrestrito dos EUA a Israel, o que significou nesses meses todos um endosso a política criminosa de Ariel Sharon.
Washington limitou-se a expressar discordâncias com algumas medidas do governo de Israel e evidentemente, Sharon jamais deixou de fazer o que pretendia a despeito disso. Portanto, aos que crêem que os EUA estão se omitindo de sua responsabilidade eu respondo que não. O governo americano está a cumprir parte importante em uma traiçoeira estratégia para inviabilizar um Estado palestino.
Desde que EUA e Israel jamais permitiram que a questão fosse arbitrada por qualquer órgão da comunidade internacional e desde que Bush dá carta branca a Sharon então só podemos concluir que, o que está ocorrendo é uma estratégia arquitetada para garantir os interesses do governo sionista. Outro aspecto desta “encenação onde Bush e Sharon ludibriam a opinião pública mundial” é o flagrante objetivo americano de retardar ao máximo qualquer intervenção efetiva na ocupação militar de modo a que Sharon faça o “trabalho sujo” eliminando o máximo de militantes palestinos. É evidente que esta eliminação não distingue os chamados terroristas da população civil, ou seja, uma macabra reedição do que se fez no Afeganistão, o já bem conhecido desprezo americano pela vida humana.
De tal proporção é a hipocrisia de Bush, que depois de quase um mês de discursos dúbios finalmente há o envio de Collin Powell (quando a ocupação dos territórios já adquirem um inegável caráter bárbaro) e este inicia sua “turneé” pelo Marrocos, passa pelo Egito e só então segue para a Palestina dando uma perfeita dimensão do descaso americano para com a gravidade da situação nos territórios ocupados.
Esse processo criminoso que se iniciou na visita de Sharon à esplanada das mesquitas, atinge agora um importante objetivo: a despeito do protesto internacional Sharon pode decidir “eliminar” ou “exilar” Arafat. A investida atual das forças israelenses nos territórios palestinos sob o pretexto de “combater o terror”, já conseguiu destruir toda estrutura de um possível estado palestino. Ao eliminar a Autoridade Palestina Sharon pretende ceifar qualquer possibilidade de um futuro estado, e isso ele está fazendo sob os auspícios da maior potência do mundo. Urge que a pressão internacional abandone o jogo de palavras e torne-se uma força efetiva e esta é a única atitude honesta a se esperar.
É momento de se desfazer o terrível equívoco da “imparcialidade diplomática”. O princípio de imparcialidade pode ser um princípio de imprensa nunca um princípio de decisão política e diplomática. Os governantes das nações e os órgãos da comunidade internacional não podem adotar posições imparciais em situações como a do Oriente Médio. Não se trata de dois estados soberanos em guerra ou dois exércitos regulares em combate. Há de um lado um Estado constituído, munido de um poderoso aparato bélico invadindo territórios de outro povo, combatendo civis e dizimando-os com o uso de armamentos de guerra.
Eu digo que o “princípio da imparcialidade” em semelhante situação é uma prova flagrante de hipocrisia. Não foi o princípio de imparcialidade que determinou as condições que permitem aos EUA destinar bilhões de dólares ao Estado de Israel (empregados em seu aparato bélico) enquanto qualquer auxílio em armamentos para os palestinos é entendido como criminoso e terrorista.
Este princípio de imparcialidade que a diplomacia internacional adota há décadas com respeito a questão palestina tem sido de fato mais um fator favorável à perpetuação da injustiça. Quem entenderia como moral um “princípio de imparcialidade” diante das atrocidades nazistas contra suas vítimas? Ou entre o antigo estado racista sul-africano e os ativistas negros? Guardadas as devidas proporções, hoje o Exército de Israel conta com total liberdade para prender, torturar, eliminar sem prévio julgamento a quem quer que seja nos territórios ocupados. É um clamoroso erro adotar critérios clássicos do confronto entre estados para tratar conflitos dessa natureza. Os fatos concretos prevalecem sobre as nossas interpretações. Quando tanques e helicópteros são utilizados contra casas e civis (sob qualquer argumento) o resultado lógico é o massacre. Ou será que o Estado de Israel está expulsando os jornalistas e os ativistas de organizações humanitárias das áreas de conflito por mero capricho?
O argumento de que a intervenção militar nos territórios palestinos é justificada pela “morte de civis inocentes nos atentados” se torna inaceitável na medida que esta intervenção resulte igualmente na “morte de civis inocentes”. Este fato inclusive, põe em dúvida não exatamente a definição de terror, mas sim a definição do que não seja. O barbarismo sionista que hoje se verifica nas cidades palestinas e que é denunciado pela própria atitude hostil do governo israelense em relação a jornalistas, ativistas e pacifistas, nos parece suficiente para que a opinião pública mundial repudie os argumentos de Bush e de Sharon. É preciso que se diga que as normas internacionais as quais todos os estados devem se submeter em situações semelhantes têm sido ignoradas por Israel há décadas, e os países que têm a obrigação de fazê-las respeitadas não o fazem.
Nas últimas semanas na ONU ressurgiu a discussão sobre uma definição mais clara do conceito de terrorismo. Esta discussão está centrada mais especificamente nas ações dos homens-bomba palestinos. A posição honesta a meu ver é a que partindo da realidade vivida pelo povo palestino por décadas é que não pode ser negado a nenhum povo o direito de luta e resistência a um processo de invasão e usurpação territorial. Ainda que as ações suicidas não possam ser moralmente defendidas, não se pode de modo algum utilizá-las como pretexto para condenar a causa palestina e a resistência armada. Acrescentemos a isso o evidente desequilíbrio de forças, em que o invasor conta com todos os recursos de destruição enquanto o povo palestino não conta sequer com um exército regular. Em tais condições, é natural que diante da total falta de perspectiva de solução (vontade política da comunidade internacional) sempre existam jovens dispostos a ações extremas. O fato é que há uma forte inclinação, cuidadosamente fabricada no ocidente a aceitar a usurpação dos territórios palestinos como “direito do mais forte”, o que é sem dúvida lamentável. Sendo assim, então rasguemos todas as cartas universais dos direitos dos povos e das nações e nos abandonemos à barbárie do direito adquirido pela força.
É também lamentável que, justamente quando esta discussão é considerada na ONU, a conferência islâmica reunida em Kuala Lumpur delibera de modo desastrado que as ações dos radicais palestinos não podem ser entendidas como resistência e reitera o sofisma de Bush: “o vago repúdio ao terrorismo”. A meu ver esta posição dúbia e inconsistente adotada pela maioria dos estados islâmicos está contaminada por interesses políticos e econômicos que demonstram quem realmente são os atuais dirigentes dessas nações. A conseqüência lógica a se esperar deles seria, já que segundo os mesmos os palestinos devem resistir de outra maneira, um efetivo apoio militar e bélico a estes. E, no entanto, a tal conferência islâmica assiste, enquanto em vários países há um clamor popular exigindo intervenção efetiva a favor do povo palestino. A causa palestina durante décadas tem sido o mote preferido dos demagogos do mundo árabe-islâmico, entretanto, eu espero que o atual agravamento da crise promova uma mudança real em tudo isso. Se por um lado seja inaceitável imputar à resistência palestina o rótulo de “terrorismo puro e simples”, por outro, uma ainda maior demonstração de hipocrisia é esta amnésia histórica que permite análises sobre a questão sem qualquer consideração aos fatos que envolveram a própria criação do Estado de Israel. Irgun, Haganah e Stern não são apenas nomes nos livros de história, foram agentes desse processo que exerceram o terror tanto contra os palestinos e árabes como também contra os antigos aliados de Israel, sempre que os meios justificassem os fins.
Como então o chefe de um Estado erguido pelo uso sistemático de ações terroristas pode reivindicar a posição de “paladino do mundo livre e da democracia contra o terrorismo?” O discurso de Sharon imputando a Arafat “toda a culpa pelo conflito” pode servir para ludibriar seus eleitores mas, é certo que a cada dia tem menos aceitação pela opinião pública mundial. Na realidade, a estratégia a qual Sharon e Bush há meses tem utilizado de “destruir a importância política de Arafat tem uma lógica bastante primária mas que de um modo ou de outro, tem surtido efeito prático. Com ou sem apoio da opinião pública mundial, Arafat hoje lidera uma autoridade nacional Palestina reduzida a nada. Enquanto a direita americana rosna para Bush clamando “deixar as mãos de Sharon livres para agir” a situação no momento é no mínimo surrealista: Sharon tem o líder autêntico de um povo (eleito democraticamente) cativo em seu próprio território; e pode livremente decidir se o deixa vivo, se o mata ou se o expulsa da Palestina.
Novamente nos vemos diante do direito internacional e novamente nos deparamos com o fato de a própria comunidade internacional estar de joelhos diante de Sharon, aguardando qual será sua decisão. É muito preocupante que em duas semanas a ONU tenha aprovado três resoluções exigindo que Israel cessasse imediatamente sua atual ofensiva e se retirasse dos territórios e que nenhuma dessas resoluções tenha tido qualquer efeito. Também é preocupante constatarmos com tudo isso que a vontade de Sharon prevalece sobre a vontade expressa nessas resoluções assinadas por várias nações. O que se depreende disso é uma forte sensação que estamos assistindo a uma pantomima prestes a tomar feições trágicas. Se o Estado de Israel pode fazer o que quiser com o povo palestino sem que as demais nações possam pará-lo como é que isso terminará? Qualquer tentativa de resposta a essa pergunta me assusta. Se Sharon permanecerá irredutível em sua campanha sanguinária e mais do que isso, irredutível em sua rejeição a qualquer acordo que proponha devolução de territórios e a volta de milhares de palestinos expulsos, e se ninguém o forçará a aceitar então sabemos que o conflito permanecerá insolúvel e num ponto do qual não haverá retorno.