Por: Ahmad Ismail
Há um debate mundial sobre o tema do casamento infantil e sua perpetuação em vários países, sobretudo em países de maioria islâmica. De acordo com estimativas do UNICEF, 15 milhões de meninas se casam todos os anos antes de completarem 18 anos de idade – algumas delas pouco depois do décimo ano de vida.
Ressalte-se que metade desses casamentos são realizados de forma ilegal. Em muitos países de maioria islâmica por exemplo, já existem leis estabelecendo idades mínimas para o casamento, porém a resistência cultural a uma mudança de costumes (em áreas rurais) faz com que a ocorrência de tais casamentos persista.
Entre 2015 e 2017, Chade, Malawi, Zimbabwe, Costa Rica, Equador e Guatemala elevaram a idade mínima de casamento para 18 anos. Além disso, aboliram as exceções que validavam casamentos infantis pelos pais ou por um juiz.
No caso específico dos países de maioria muçulmana é preciso reconhecer que sim, um número considerável de clérigos e juristas dificultam e não incentivam o combate ao costume do casamento infantil. Com tal atitude assumem responsabilidade indireta sobre os muitos e graves problemas que o casamento infantil causa às jovens. A crítica, todavia, não significa uma condenação ao Islam, mas à forma como esses líderes religiosos têm se comportado em relação ao assunto.
Aqui, há uma importante distinção a se fazer: o Islam, em suas fontes essenciais (o Alcorão e as tradições fidedignas) não menciona, não recomenda, não incentiva o casamento infantil – o costume tem origem na tradição tribal e existiu por milênios no Mundo Antigo.
Nas sociedades antigas e medievais, as meninas podiam ser noivas antes ou durante a puberdade. Na Grécia, o casamento e a maternidade precoces eram incentivados. Na Roma Antiga meninas se casavam antes dos 12 anos.
Se não existe um vínculo real entre Islam e casamento infantil, mas somente a interpretação de clérigos que julgam o costume aceitável para os muçulmanos, onde e como é possível condenar o Islam nesse assunto? Deveríamos acaso, condenar o Cristianismo pela interpretação predominante do Clero (católicos e protestantes) que por séculos acatou e em alguns momentos apoiou e justificou o sistema escravista?
Portanto, a crítica aos clérigos islâmicos se fundamenta na constatação das consequências deletérias do costume, não na (falsa) objeção moral que tem servido de arma ideológica aos fanáticos anti-islam para tentar “criminalizar” uma religião e todos os seus seguidores. A “falsa objeção moral” desses grupos, que nada mais é do que “ódio disfarçado de indignação moral” constrói o discurso proto-fascista que tem por objetivo reforçar ideias de “civilização contra o barbarismo” ou “uma nova cruzada” como se todos vivêssemos no mundo atual numa lógica de “idade média”.
Na campanha ou guerra ideológica proposta por esses grupos, segundo o que acreditam, todas as armas são válidas.
Com o auxílio de pessoas (muçulmanos e não-muçulmanos) na internet conseguimos identificar a fonte de dezenas de fotos e imagens utilizadas nos muitos vídeos veiculados “contra a pedofilia islâmica”, fotos e imagens de pais abraçando suas filhas, apresentadas ou sugeridas à opinião pública como “cenas de pedofilia islâmica”. Ao menos um caso de “farsa ou fake News” resultou em processo ao responsável pela postagem: “O Casamento coletivo promovido pelo Hamas”, sites sensacionalistas e de cristãos difamadores lançaram a notícia de um suposto casamento coletivo promovido pelo HAMAS entre homens e meninas menores de 10 anos. A foto dos rapazes entrando no local da cerimônia acompanhados de suas “noivinhas” foi replicada por toda WEB, mas a falsa notícia foi esclarecida após algum tempo: tratava-se de um casamento entre as viúvas e os cunhados dos falecidos no combate contra Israel. As meninas que aparecem na foto são apenas as daminhas de honra, a maioria filhas das viúvas. Como em Israel no Antigo Testamento, na Palestina também existe a tradição da lei do Levirato, ou seja, o casamento do irmão do falecido com a cunhada.
Assim, a crítica aos clérigos muçulmanos que não colaboram o quanto deviam para erradicar o casamento infantil nada tem a ver com a argumentação fanatizada dos movimentos anti-islam. Movimentos estes, que só merecem por parte dos muçulmanos e das pessoas sensatas o absoluto e total desprezo.
Essa (falsa) objeção moral impede uma correta compreensão do problema e das razões para sua perpetuação em muitas sociedades. Susane Schroter, pesquisadora alemã dedicada ao assunto enfatiza que o fenômeno é uma questão de gênero que independe da afiliação religiosa. De fato, os costumes e as estruturas sociais patriarcais são determinantes para a perpetuação da prática – o que não depende de crença religiosa. Susane aponta que é a pobreza extrema que mantém o casamento infantil em muitos países. “Os pais nem sempre casam suas filhas porque querem”, afirma. Por razões econômicas os pais se veem forçados a casar suas filhas com homens mais velhos. De fato, a pobreza produz esse mal tanto quanto nos países em que o casamento infantil é incomum (como no Brasil) produz a prostituição consentida de crianças e também altos índices de gravidez precoce. Além dos aspectos econômicos, as guerras promovem casamentos precoces, aponta Schröter. É o que ocorre na Síria, por exemplo, assolada por uma guerra civil. “Após o início do conflito e especialmente após o fluxo de refugiados, o número de casamentos infantis aumentou muito”, afirma. “Meninas foram forçadas a se casar aos 11 ou 12 anos de idade, com a premissa de que isso iria protegê-las de abuso sexual, por exemplo. A fuga sempre gera uma maior necessidade de segurança. Por isso, muitos se agarram às tradições que lhes dão segurança”.