Uma resposta à falsa teoria do neo-paganismo islâmico

Por: Ahmad Ismail

Em alguns textos reproduzidos na internet, há uma bizarra teoria que tenta estabelecer uma herança pagã presente no Islamismo. Utilizando informações esparsas e superficiais, o autor ou autores de tais textos levanta suposições que, como veremos, não se sustentam diante dos registros históricos e das evidências constantes no Alcorão Sagrado e na própria história dos primeiros muçulmanos.

Resumidamente, esses textos afirmam os seguintes pontos:

– Allah seria a divindade principal do panteão dos pagãos pré-islâmicos; (Allah uma divindade lunar). A suposta “prova histórica” seria o culto dos pagãos na Caaba.

– As tradições islâmicas seriam, literalmente cópias das tradições pagãs.

– A Lua crescente adotada como símbolo e o próprio calendário lunar seriam “provas” do caráter pagão do Islam.

Allah, uma divindade lunar? O que realmente era o paganismo pré-islâmico?

O povo árabe descende de duas principais vertentes raciais:

– Os árabes de forma genérica, de ramos variados originados ou descendentes de Qahtan, que habitavam a península arábica e que formaram à sul da península a civilização yemenita.

– Os árabes do norte da Arábia, descendentes de Abraão e Ismael, denominados “must’ariba”.

Esta segunda vertente é a de maior importância quando analisamos a origem do monoteísmo islâmico. Nesta vertente, o monoteísmo (hanafyyah) precedeu o paganismo, o que em si já é uma prova em contrário àquilo que os textos mencionados afirmam.

A história desse monoteísmo original entre os árabes é atestada pelo Alcorão Sagrado, ao mencionar a história de Abraão (A.S.) e de Ismael (A.S.), e a construção da Caaba onde mais tarde viria a existir a cidade sagrada de Makka: “E quando estabelecemos a Casa, lugar de reunião e segurança para a humanidade (dissemos): Adotai o lugar de Abraão por oratório. E determinamos a Abraão e a Ismael: “Purificai Minha Casa, para os circundantes (da Caaba), os que estão em retiro, os que genufletem e se prostram. E quando Abraão disse: Ó senhor meu, faze com que esta  cidade seja segura, e agracia com frutos os seus habitantes que crerem em Deus e no dia do Juízo. Deus disse: Quanto aos descrentes, concederei a eles um gozo transitório e depois os enviarei ao castigo do Fogo. Que terrível destino! E quando Abraão e Ismael levantaram os alicerces da Casa, exclamaram: Ó Senhor nosso, aceita-a de nós! Porque Tu és O que tudo ouve, O Onisciente. Senhor nosso, faze com que nos submetamos a Ti, e que surja de nossa descendência uma nação submissa à Ti. Mostra-nos os nossos rituais e volta-Te para nós com clemência. Em verdade, És O Perdoador, O Misericordioso. Senhor nosso, faze surgir dentre eles, um Mensageiro, que lhes recite os Teus versículos e ensine o Livro e a sabedoria; e os purifique. Decerto que És O Poderoso, O Prudente. E quem rejeitaria a doutrina de Abraão, a não ser o insensato? Certamente o escolhemos (Abraão) neste mundo e, no outro, estará entre os virtuosos. E quando o seu Senhor disse: Sê submisso a Mim!, respondeu: Eu me submeto ao Senhor dos Mundos! Abraão legou essa crença aos seus filhos, e Jacó aos seus, dizendo: Ó filhos meus, Deus escolheu para vós esta religião; apegai-vos a ela e não morrais senão como muçulmanos (submissos). (Alcorão Sagrado 2:126 a 132)

Os ayats deixam evidente que o culto a Allah, o Deus de Abraão (A.S.), precedeu toda e qualquer manifestação pagã naquela região, uma vez que não existia população alguma ali, Ismael e seus descendentes foram os primeiros habitantes de Makka. O texto também deixa claro de modo inequívoco que a Caaba foi construída e consagrada ao Deus de Abraão (A.S.).

Sobre o Paganismo árabe e seu Panteão

Segundo a tradições mais confiáveis, Ismael (A.S.) viveu 130 anos e ao morrer, a liderança de seu povo e a guarda da Caaba foi legada a seu filho Adnan. Nas gerações subsequentes, a vasta gama de culturas e crenças existentes por todo o Oriente próximo influenciou as tribos árabes produzindo um amálgama de superstições e cultos que formaram o paganismo árabe.

O panteão de divindades pagãs cultuadas pelos árabes refletia essa vasta rede de influências – Aqui, o primeiro erro crasso dos textos anônimos da internet: Hubal (e não Allah) era a principal divindade do panteão do paganismo árabe. A divindade lunar entre os árabes era AlLati (e não Allah) – a confusão entre os dois nomes (seja por ignorância ou por desonestidade intelectual) também não se sustenta racionalmente. Quanto a possibilidade dos árabes pagãos terem confundido os dois termos ou as duas divindades distintas (O Deus de Abraão e a divindade lunar) é de praticamente zero.

O idioma árabe é muito preciso no que diz respeito à etimologia das palavras. Quanto às regras do idioma, as duas palavras pertencem a grupos diversos (de fontes distintas) -.

Allat, a deusa da lua – alif –lam- lam- alif ta

Allah, O Deus Criador (cultuado por Abraão e Ismael) Allāh,- alif –lam- lam- há

Como vemos, não há possiblidade racional de se confundir as duas palavras. A palavra al lát deusa lua não pode ser confundida com ALLAH (Deus), são palavras, segundo a gramática totalmente diferentes, de fontes diferentes, e possuem significados diversos. Allah é a palavra árabe para Deus, é possível usar ilah – como divindade, (plural- ilaha). Já Alát ou Al láti é um substantivo (nome próprio) não tem plural.

Sobre as crenças e práticas dos árabes pagãos (pre-islâmicos)

Os registros históricos acerca desse período pré-islâmico atestam que as crenças e práticas dos pagãos árabes abrangiam superstições, costumes e práticas muito variadas, a influência dos cultos mágicos, das religiões persas e semíticas e também de crenças judaicas e cristãs. Contudo, até onde sabemos não havia qualquer sentido de unificação dessas crenças e práticas para que possamos apontar qualquer traço de similaridade entre tais práticas e crenças com as práticas e crenças do Islam. Ainda que possamos admitir que alguns indivíduos ou grupos do paganismo tenham praticado o jejum, por exemplo, o fizeram influenciados pelas crenças cristãs ou judaicas, mas a seu modo peculiar, sem qualquer fundamento doutrinário.

O paganismo árabe pré-islâmico era, na realidade, uma ampla reunião de crenças e práticas não sistematizadas – e entre essas crenças e práticas havia também as tradições abraâmicas por razões óbvias. Assim, os árabes pagãos conheciam perfeitamente o culto monoteísta dos patriarcas do povo árabe (Abraão e Ismael), conheciam (e alguns também cultuavam) o Deus de Abraão (Allah), por isso o Alcorão os denomina de Muxriqin (politeístas – que associavam falsas divindades à Deus). De modo que, sem sombra de dúvida os pagãos árabes sabiam que Allah era o Deus cultuado por Abraão e que Al Lat era a deusa Lunar. Não existe qualquer indício ou prova histórica que contrarie esse fato. Concluo que os autores dos textos jamais pesquisaram sobre o assunto, limitaram-se às suas hipóteses pessoais (equivocadas).

As tradições islâmicas seriam uma cópia das tradições pagãs?

As práticas e cultos dos pagãos pré-islâmicos na Caaba não são provas de alguma ligação histórica e religiosa entre tais práticas e tradições com o Islam. Os árabes pré-islâmicos tinham Makka como importante centro comercial onde as diferentes tribos interagiam – a adoção da Kaaba como centro de culto tinha um sentido prático e político.

No que se refere às tradições islâmicas, se fundamentam na tradição e nas práticas abraâmicas, por isso negam e contradizem inteiramente os costumes e práticas dos árabes da jahillyaah (era do paganismo). A prova histórica disso está no próprio Alcorão Sagrado e em grande parte das fontes da sunna autêntica do Profeta (S.A.A.S.).  Há um grande número de versículos do Alcorão Sagrado abolindo costumes, crenças e práticas da era do paganismo. O Islam, por meio do Profeta (S.A.A.S.) extinguiu o paganismo em toda península arábica.

Ao entrar em Makka como vencedor, o primeiro ato do Profeta (S.A.A.S.) foi destruir todos os ídolos que os pagãos haviam colocado dentro da Kaaba; se o Islam fosse uma continuidade do paganismo, isso não teria acontecido. Uma das suras alcorânicas mais conhecidas, cuja revelação foi por si só, uma negação do paganismo, diz: “Dize: Ó descrentes, Não adoro o que adorais, Nem adorais o que adoro. E nunca adorarei o que adorais, Nem vós adorareis o que adoro. Tendes a vossa religião e eu tenho a minha”. A revelação dessa Sura ocorreu justamente num momento em que os líderes pagãos propuseram ao Profeta (S.A.A.S.) algum tipo de meio-termo ou tolerância com seus cultos idolátricos.

Um outro equívoco apresentado nos textos anônimos da internet, supostamente como “prova do neo-paganismo islâmico”, é o dos nomes compostos (com o nome Allah) adotados pelos árabes pagãos. Como vimos antes, os árabes não só conheciam o Deus de Abraão e Ismael como o incluíam em seu panteão, e mesmo o cultuavam ao seu modo. Não é de surpreender que alguns adotavam nomes ligados a Allah. Mas, isso não é prova de coisa alguma. Muitos cristãos árabes do Século II em diante possuíam nomes como Abdullah, Obeidullah, etc. Alguns dos mártires cristãos e líderes das igrejas cristãs árabes possuíam nomes compostos com Allah. Acaso tais sacerdotes e eminentes devotos cristãos teriam sido pagãos? Até hoje árabes cristãos batizam seus filhos com esses nomes.

A Lua crescente adotada como símbolo e o próprio calendário lunar seriam “provas” do caráter pagão do Islam?

A lua foi adotada pelos turcos otomanos como símbolo do estado muçulmano cerca de 400 anos depois do Profeta (S.A.A.S.)! Não existe qualquer citação da lua como símbolo religioso nem no Alcorão Sagrado nem na Sunna autêntica – as duas fontes da lei e da teologia islâmica. Em suma, o símbolo lunar é um símbolo político do Islam, entendido pelos historiadores como “uma força ou poder em ascensão” – os califas do império turco escolheram esse símbolo por razões puramente culturais e políticas, a tribo otomana já utilizava o símbolo em batalhas, assim como os exércitos persas; uma vez que os exércitos bizantinos adotavam a cruz ou os romanos a águia, os exércitos islâmicos adotaram a lua. A perpetuação do símbolo da lua nas mesquitas e nas bandeiras de países islâmicos é uma referência cultural (à cultura islâmica) e não exatamente religiosa.

Sobre o Calendário Lunar

O calendário lunar era o calendário predominante entre todos os povos do oriente próximo. Será que os judeus também seriam pagãos? Vejamos o que eles próprios tem a dizer sobre o calendário lunar: “Diferentemente do Gregoriano, o calendário judaico é baseado no movimento lunar (com uma leve alteração de cálculo), onde a cada lua nova temos um novo mês. Cada ciclo lunar dura aproximadamente 29 dias e 12 horas e os meses judaicos variam entre 29 e 30 dias, como também ocorre no calendário Gregoriano, onde há meses com 28, 29, 30 e 31 dias. (Fonte – site https://cronologiadabiblia.wordpress.com/2011/01/04/o-calendario-judaico/). Parece que os autores dos textos em questão não sabiam que os judeus também utilizam o calendário lunar, e que isso não faz de povo algum, adepto de algum tipo de paganismo ou culto a deuses lunares.

 

 

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